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giovedì 26 dicembre 2013

Semêntica

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O Desarmado

(Para uma estátua na explanada)

As revoluções viraram
golpes de estado.
A polícia protege os governos
contra o eleitorado.

Sobraram os arsenais contratados
E os desarmados.

lunedì 16 dicembre 2013

Todesfuge (Celan)

Todesfuge

"There is nothing in the world for which a poet will give up writing, not even when he is a Jew and the language of his poems is German." says Celan.

domenica 15 dicembre 2013

L'hospitalité divine (morceaux du Livre de l'Hospitalité, de Jabès)

Choisir son lieu mais encore faut-il que ce lieu nous tolère, disait-il.

La notion d'hospitalité est étrangère a Dieu. Ève ne l'ignorait point.
Elle mit Dieu à l'épreuve.

"De ses deux créatures rebelles, Dieu exigeait obéissance et soumission.
La réponse d'Ève a Adam fut sans doute: Ne sommes-nous pas, ici, chez nous?
Vous êtes, ici chez Dieu fut, probablement la réponse du Seigneur.
N'aurons-nous jamais notre propre lieu?
Ne serons-nous jamais libres chez nous?

Je suis votre liberté, comme Je suis votre lieu fut, vraisemblablement, la réponse du Maître du monde.
Ève et Adam se prirent, alors, à rêver d'un univers à leur dimension. Il faisait nuit.
Ils levèrent les yeux et découvrirent le ciel. Et, dans le ciel constellé, une étoile proche qu'Adam surnomma l'étoile de l'échappée.
Son étoile.
Tel est le récit qu'un sage fit, une fois, à ses disciples.

Divine est la clarté de l'aube; humaine, l'ombre du chemin.

Ce récit, comme il fallait s'y attendre, fut vigoureusement contesté par un savant formaliste.
Vérité contre imposture.
Lorsque le sage fut informé, il sourit, car il ne s'agissait point, pour lui, de remettre en question ce qui nous a été transmis de pére en fils, mais de réfléchir sur l'une des raisons qui opposent parfois la créature au Créateur.
Et Dieu a Dieu.

[...]

Dieu a l'éternité pour accomplir Son oeuvre; l'homme à peine quelques instants.
Qui hasarderait, après cela, à parler d'accomplissement? disait-il.

[...]

La totale disponibilité débouche sur l'hospitalité.

Note: ici on retrouve les idées de anarchéologie et de dexistence dans un cadre d'immanence.

mercoledì 11 dicembre 2013

Um estudo

Um dia acordei gosma.
Minhas partes eram independentes e suspiravam umas pelas outras
Meu corpo todo havia transbordado.
Nenhuma lembrança é inocente.
No outro dia dormi na prisão
- havia sonhado.
Me torturaram jogando gatos na minha boca
eles mordiam meus lábios
enrugavam meus beiços
e cuspiam hidratos de carbono com sabor de frango.
Eu não como frango.
Eu confessei um sonho e outro e outro.
Disse até que sonhei que desbravava todas as peles
e expunha todas elas como um fingimento.
Um figmento. Inventei também uns sonhos
que não tinham razão.

martedì 10 dicembre 2013

buca l'ombrello: toda pele é um fingimento




Uma imagem da imagem de D. H. Lawrence - compor um poema é rasgar o guarda-chuva que encobre o caos.
(De Carles Llonch. Enviada por Manuel de Pinedo)






lunedì 2 dicembre 2013

Não são só palavras


Cheiro a cabelo queimado. Tem no dicionário ou na tabela periódica a pitada que me sara. Não tenho a dose. Me arrasto no chão. Venham fúrias, carreguem-me. As coisas querem ser vistas de azul-sangue. Que palavras, que enxofre, que titânio vão curar minhas tripas que engoliram as fúrias meladas, deixaram elas em banho-maria na minha saliva, apararam-lhes as garras, arrancaram-lhes os dentes. Sobrou um molusco. Prendo meu braço no armário. Amarro minha língua. Uma palavra furiosa mora em mim. Mas não são só palavras. É toda uma tabela periódica de elementos insuspeitos e que contaminariam o universo de uma vez por todas com meus germes atormentados se eu os deixasse sair. São os elementos de todas as negações, de todas as diferenças e de todas a vertigens que eu viro do avesso para fingir que eu tenho pele. Toda pele é fingimento. Toda pele é feita daquilo que, virada do avesso, seria o fervor contra o horizonte, contra a crueldade fria e vulgar dos minutos, contra os crepúsculos, contra a vida de cachorro velho caçando rato morto. Contra ser alguém com uma pele. Todo este inverso do universo sai com uma palavra furiosa. Por isso eu não coloco minhas mãos no enxofre, nem meus olhos no titânio: junto meus humores às palavras para procurar um berro - que sara, por um segundo. Me espeto com pregos nas mãos, vejo o sangue sair pelas dobras enferrujadas e minha garganta continua longe de ficar gutural. Mas o súbito chega: meu monstro vocal. Inapresentável. Irrepresentável. Torto. Feito de palavras sem símbolo. Só a forma bruta das minhas entranhas. Uivo. Não tem lua. Tem um planeta sem órbita no céu cheio de nuvens. Toco com minhas unhas curtas as órbitas e tiro elas do meu caminho. Aquele que não tem estrela, aquele que não tem juízo, aquele que não tem barbitúricos. Nunca estive assim tão lúcido, e no escuro. A força dos elementos periódicos me corroem o ventre, me corroem. Bato com a cabeça na quina da mesa. Sai mais sangue, mais vermelho, mais adúltero. Entro debaixo d'água. Para baixo, para baixo.

venerdì 29 novembre 2013

Ter uma voz (sobre umas entrelinhas da Orgia de Pasolini)

Quase tudo é supérfluo. O que escrevemos nas quadros das salas de aula,
o que decoramos, a cara que temos, os entorpecentes (arroz, lágrimas, instintos de sobrevivência).
Folhas caídas no leito do rio dos de repentes (um rio curto, fino e incisivo).
O advento.
Uma ilha superpovoada no meio do mar sem mapa ou então a distração das leis do universo.

Falo do advento com a garganta.
Não aprendi a falar - mas quero aprender a ter uma voz.

venerdì 22 novembre 2013

Quem vai me salvar da salvação?

A vida ela mesma corrói a vida,
Descolore os dias, abafa os anos.

Deus explica aos seus beduínos-que-vêm
porque morrer:
- Para que as horas não fiquem mais fanadas a cada minuto,
já que em cada ponteiro tem um Sinai.

Aqueles que vão chegar aos Novos Minutos,
têm já esquecidos os Egitos.
Toda pompa, luxúria, deleite e aconchego
fazem os grotões federem à míngua,
as abundâncias insuficientes,
as plenitudes parcas.
Mas é o minuto que liberta.




mercoledì 20 novembre 2013

Casar com o poema - e Texto da Monica Udler para o casamento


O casamento.

A pedidos, o texto da Monica Udler para o e meu casamento com O lugar onde temos razão:

- Estamos aqui reunidos para celebrar a união entre estas duas criaturas retro-predestinadas:
Hilan Bensusan, de autoria desconhecida, composto por algum deus nunca antes inventado,
e o poema “O Lugar onde temos Razão”, de autoria bem conhecida, o poeta israelense Yehuda Amihai.
O encontro entre eles dois se deu de uma forma inusitada. Ela, a noiva poema, estava em uma página de jornal e ele do lado de fora do jornal. Foi amor à primeira vista. No entanto, ele a perdeu de vista. E nem sabia que vivia desesperado até encontrá-la novamente, na boca de um quase desconhecido. Resgatou-a para nunca mais largá-la. Sua fotografia esteve todos estes anos na porta de sua sala de trabalho, para que todos a admirassem. E viveu todos estes anos com vontade de desposá-la. Hoje, finalmente, estamos aqui. Para realizar o sonho destes dois pombinhos, pombinhos da mesma espécie que o pombo que trouxe o ramo de oliveira para Noé. O pombo que o trouxe do lugar onde não queremos ter razão. Toda a terra foi arrasada depois que virou um pátio, pisoteado por tantas ideologias e crenças. Mas a tempestade acabou com todas as certezas, acabou com o colo que a razão vinha dar ao homem. Abençoado dilúvio! E abençoado o fim do dilúvio! Cujo término a pomba veio anunciar! E aqui temos estes pombinhos! Que, se os deuses e os desdeuses quiserem, serão os anunciadores de um novo mundo, um mundo de terra fofa, um mundo de sussurros.
Para aqueles que ainda não conhecem a noiva e a noiva, eu os posso apresentar. Não sem antes apresentar-me a mim mesma, sacerdotisa do templo do Sem Nome, aquele que nem de Deus pode ser chamado. Blasfemam aqueles que o chamam de Deus. Que o chamem de transcendência ou de imanência, que o chamem de Ser ou de Nada. Blasfemam aqueles que dêem nome ao Mistério.
[toca meu celular. Levo uma conversa com um interlocutor imaginário, que me chama para oficiar um enterro. Um tratado filosófico teria falecido. Eu nego com gentileza, explicando que estarei comemorando o casamento de Hilan com outro poema.]
- Desculpem! Continuemos então as apresentações e passemos à noiva da esquerda:
Ha makom shebo anu tzodekim.
[a sacerdotisa recita em hebraico o poema]
Voce pode pronunciar o nome da noiva em português, senhora hilan?
[hilan recita em português o poema, de forma lenta, como se as palavras estivessem pegajosas de tanto mel. Recita-as cheio de desejo por elas.]
Agora apresentemos a outra noiva, Hilan Bensusan:
Sua autoria é desconhecida. É um poema com carne, com osso, com cheiros e com sons. Não possui rima e jamais foi analisado por qualquer crítico literário, que nunca o reconheceram sua forma literária. Seu lirismo é tão evidente e público, que escapa à percepção de muitos humanos. Sua poeticidade é literal: o sentido poético de seus gestos e ditos coincide com a facticidade de seus gestos e ditos. E nada nele é livre de nonsense. E por isso nada do que faz é sem sentido. Alguns mitólogos afirmam que nasceu do amor que há entre Deus e o Diabo.
Hilan possui estrofes. Muitas, muitas. Hilan as coleciona. Mas o que separa uma estrofe da outra não são linhas: são abismos. Hilan e suas mil vidas. E quantas mais tem, mais fiel é a sua noiva. E mais pronto se torna para o a vida de casado. Su esquizofrenia sempre foi sua prova de amor pela noiva que aqui está...
Antes de celebrar definitivamente este matrimônio, gostaria de perguntar se alguém aqui tem algo a dizer que impeça que esta união se realize? Tem alguém algo contra este casamento?
... JANINE
RESPOSTA DE CHUANG TZU ....
- Mais alguém tem algo a declarar que desabone esta celebração?
- Eu! [diz uma voz em meio à turba]
- Qual o desabono?
- Hilan já é casado!
- Voce tem certeza disso?
- Tenho.
- Pois então teu desabono não procede. Pois ao casar-se com Bamakomshebô, Hilan divorcia-se de toda certeza.
Algo mais? Mais alguém?
[aguarda-se algum comentário espontâneo da plateia. Improvisa-se a partir do que vier. Ou, caso ningém diga nada, prossegue-se a celebração]

- Hilan Bensusan, aceita ser fiel a tua esposa em todos os momentos de tua vida?
Sim.
- Aceita esforçar-se por nunca pisotear a terra em que pisas?
- Sim.
- Aceita esforçar-te por ser sempre consciente de que tudo é mistério?
- Sim.
- Aceita dar sempre as boas vindas às férteis incertezas?
- Sim.
- Aceita não confundir isso com “não se comprometer com nada”?
- Sim.
- Tem certeza?
Não!
{A sacerdotisa olha para a noiva. E diz:}
- A noiva não gostou desta resposta.
- Mas como se ela mesma ensinou-me a não ter certeza alguma?
(A sacerdotisa vai até a boca da noiva que lhe fala ao ouvido. A sac. volta ao púlpito e diz:}
- A noiva quer te dizer que as certezas também são belas quando são provisórias. Ela pede para que você aceite certezas provisórias de quem brinca de acreditar. Você aceita?
-- Sim.
- Sabes como fazer para comprometer-te com aquilo que fazes?
- Não.
- Tua noiva te aconselhará.
Senhora noiva, podes aconselhá-lo nesse assunto?
[Só a sacerdotisa escuta a noiva, que pede para falar-lhe no ouvido. A sacerdotisa sobe num banquinho e escuta o que diz a noiva. A sacerdotisa volta a seu palanque e diz:]
- A noiva disse que para comprometer-te com o que fazes, sem que tenhas certeza de nada, deves fazer de conta, emular, fingir crer naquilo de que brincas. Aceitas brincar de faz de conta pela vida a fora?
- Sim.
- Aceitas fingir que a vida tem um sentido? Um a cada dia?
- Sim.
- Aceitas assim, descer do muro, e descer da amoreira? Descer da amoreira sem jamais esquecê-la?
- Sim.
- Senhora noiva, promete sempre aconselhares a noiva Hilan nos momentos de muita certeza, nos momentos de muita força e de muita coerência?
A noiva aceita.
- Muito bom. Prometes também paciência quando ele te usar para se isentar? Quando ele colocar a culpa em ti por sua ausência?
A noiva aceita.
- Ótimo. Promete repreendê-lo com doçura quando ele se impacientar e quiser dinamitar casas que são de brinquedo?
A noiva aceita.
- Então eu os declaro Poemante e Poemada. Podem unir vossas estrofes...
[os noivos se beijam.

lunedì 18 novembre 2013

Um adeus à disponibilidade aceleracionista

Corro para terminar de ler e ir para frente da televisão. Me dissipar no oceano de singularidades de estar ouvindo sons, vendo imagens. Ou corro para conversar, para olhar as pétalas rosas da unha-de-vaca da rua, tomar elas na mão, esquecer que a mão é mais minha do que a matéria rosa da pétalas. Ou corro para terminar de fazer uma prova - e assinar - e poder pedalar pelas mangueiras e chupar mangas verdes com gosto de limão. Sempre fugi de ser indivíduo. Sempre me forçaram a isso: tínhamos que ser algo na vida, e ser algo significava ser alguém. Eu tinha que ser um alguém e não antes um amontoado. Um animal individual capaz de fazer promessas, as minhas promessas. Responder pelo meu nome, quando a polícia me chama, quando eu digo que amo, quando eu dou minhas opiniões, quando eu mostro a cara. Fazer de todas as compatibilidades que atravessam as pessoas, instrumentos da vida de pessoas. Separar em cada torrão de casa de pensão humana um indivíduo, e outro, e outro. Ser escolhido, poder escolher - se submeter à escolha, não mais, diz o Reb Ildé de Jabès. Todo um aparato para deixar indivíduos parecerem prontos, como se eles não dependessem de toda uma biopolítica aterrorizante para não se confundirem de novo nas massas, nos entulhos, nas paisagens, nos prazeres sem nome. É que operações, singularidades, acontecimentos e tramas é que aram o chão como uma toupeira. As coisas de que são feitas as vidas das pessoas - que, segregadas, competem para estarem na governança do que as produz, mas nunca estão. Depois, o cuidado de si: ser responsável pela sobrevivência, pelo seu próprio corpo, pelos seus órgãos. Tudo isso fastia e estiola. Se apropriar em um Currículo de tudo o que me aconteceu, de tudo o que alguma parte de mim operou, de tudo em que posso por o nome. Eu fico sendo governante da meu quinhão de mundo. Assim, claro, nada fica desgovernado.

Aceleracionismo. Eu formulo assim: o capital foi um agente revolucionário, há que se aprender com ele a acelerar para destituir, subverter, desconstruir, desintegrar, descristalizar. Há que se aprender com ele, não que se aderir a ele. Aceleracionismo não é crescimento capitalista, nem neoliberalismo, nem comunismo liberal. Marx, no Manifesto, demora-se em dizer como a burguesia mudou a Europa com as armas do capital. Ele destruiu tradições, segue destruindo comunidades, começou a destruir a família, talvez tenha dificuldades em exorcizar o Édipo. Terá dificuldades porque o Édipo, em seu familialismo, é centrípeto. Ele é concentrador. Como o capital quer que seus agentes sejam. O capital, como diz Nick Land, é um agente infeccioso vindo de fora da vida humana conhecida (Costa-Gravas mostra isso em Le Capital.) Sim, mas esta predação depende impreterivelmente dos dispositivos que fabricam indivíduos na forma de pessoas humanas, que os tomam como os agentes últimos de toda ação (de toda política, de toda autoria, de todo gesto, de toda acumulação, de toda riqueza, de toda economia). Ou seja, este é o limite revolucionário do capital: ele precisa de indivíduos, ele precisa de um bolso e de outro, para que o capital flua entre eles. Ele precisa destes pontos, é um fluxo de bolso a bolso. Ou seja, o baluarte de todas as formas de capitalismo é o indivíduo. Terminem com ele - ele é o carrasco. O melhor do que acontece no mundo é alagmático - pré-individual, feito de operações e charmes e conexões soltas feitas por elas mesmas, e não por nós indivíduos (como dizia sobre o erótico Audre Lorde) - ou é de massas - pós-individual, feito de dádivas comunitárias e ações públicas anônimas. O capital zela para que cada coisa destas esteja no quinhão de alguém. Não suporta anonimidade, black blocks, Luther Blisset, pirataria, obra sem autor. A luta biopolítica contra o capital é a luta contra os dispositivos tão cotidianos que patrocinam os indivíduos. Eles se embrenham nas artimanhas do desejo, das vocações, do cuidado, do dom. Contra eles, as singularidades dispersas, comunais, alheias ao que é de quem. As singularidades que são agentes transitórios, passageiros, nômades. Massas, multidões, contaminações. Direito dos miasmas. Acelerar significa desmoronar o indivíduo, desmoronar o concêntrico, desmoronar o bolso. Uma aliança aceleracionista é uma confederação de práticas de economia alternativa, de situacionismo, de anonimidade, de buen vivires, de esquizos contra o indivíduo, feito indivisível pelo fluxo do capital. Este é o território da máquina capitalista: a revolução é o que cria um fluxo mais rápido, aquele entre outros fragmentos, entre um corpos sem donos, entre compatibilidades, disponibilidades, disposições. O aceleracionismo é a vocação da esquizerda: criar campos de ímpeto que passem ao largo das pessoas sacramentadas. Em seu último texto, Deleuze fala de "uma vida...". Nem da vida de alguém (digno de ser preservado, de Riderhood), nem da vida em geral. Nem mesmo precisa o aceleracionismo estar comprometido com a vida, está comprometido com "uma". Uma comunidade de singularidades - uma comunidade qualquer. O comunismo dos episódios soltos... Não prender o capital, correr mais do que ele, de singularidade em singularidade - indiferente aos bolsos, que sempre pareceram grilhões.

venerdì 15 novembre 2013

Com as veias nas coisas


Quero eu também tomar partido pelas coisas. Tomar partido pelo alpendre, pelo engradado, pelo cabo de guarda-chuva quebrado e pelo micro-ondas com um auto-falante dentro. É uma solidariedade gentil com os escravos que tem a cada dia seus cinco minutos de senhorio, mas é também porque também eu vou ser coisa. É uma responsabilidade por toda coisa que carrega os talismãs do ser (com as bolhas de nada), mas é também porque também eu vou ser coisa. É minha hospitalidade e é recíproca – dou a elas abrigo já que elas me abrigaram, mas é também porque também eu vou ser coisa. Ataúde, e matéria des-orgânica, fazendo alianças com minhas beiras e minha solturas. Me preparo para dissipar meus ossos em uma coisa qualquer. Rugas são linhas que apagam – apagam eu e apagam nós. Meus pertencimentos em torno de uma fronteira: meu país e o país dos vermes. As linhas de fronteiras são as apagadas pelas rugas. O estrangeiro me rói. São as coisas que não falam a minha língua, incompreensíveis, irreconhecíveis e pagãs que fazem minha carne e as imagens dos meus sonhos. Tomo o partido das operações escondidas que produzem o sangue do meu âmago. Elas, as operações, coisas por trás das coisas, me sustentam mesmo quando viajo sentado e elas vão de pé.

Também as coisas se acostumam a mim. Deixo meus sucos cheios dos meus hóspedes pelo chão, e o chão, que transforma qualquer coisa em outra coisa, é que vai me hospedar para que eu vire outra coisa. O chão choca as coisas. Vou fertilizando ele com minhas seivas feitas de outras coisas. As coisas terminam as viragens que eu comecei. Assim, eu me misturo nelas. Coisifico. São elas que me envelhecem, que me exilam, me arrancam as raízes. Elas se acostumam a mim e eu me acostumo a elas. A cada lufada de ar, a cada mordida. As coisas são portanto os velhos mais velhos que os velhos. E eles me chamam.

martedì 5 novembre 2013

A lua em leão

Hoje topei com Cris Moreira num sarau a luz da lua (da ACLAC) e a sombra de um Zumbi. E ela leu um poema que ela fez pra mim quando eu passei de Rellena de Jalapeño falando de etiologia do pansexualismo entre os corpos vadios:


Gosto da tua poesia que nao prescreve
Da tua figura ambígua nos céus do minhocão
Pequizeiro florido na neve da academia
Comendo egos quadrados e vomitando ratos
Gosto de tua língua na palavra
De tuas palavras nos meus ouvidos
Eixo monumental e rodoviário se cruzando
Na babel de caldo de cana e pastel
Gosto da tua filosofia transgressora da academia
Poesia verde nas linhas de concreto
Concretismo heterodoxo nos prédios e calçadas do Darcy
Poeta do absurdo
de estar ali.


Obrigado, Cris, que fera.

sabato 2 novembre 2013

Conficção. Teses sobre a demagogia de si.

(Esboço para a mesa de bioficção)

Conficção
Teses sobre a demagogia de si


1. Com a minha imagem no espelho, vejo alguém que eu aprendi a reconhecer. Como aprendi a reconhecer meus vizinhos. Minha imagem é uma companhia. Nem sempre é a companhia que eu desejo já que ela demanda que eu esteja a sua altura. Por vezes eu faço-lhe caras e torço-me o rosto para ter outra imagem da minha imagem.

2. Aqui, em mim. Aqui começa o exercício de confissão. A confissão é um testemunho. Em toda palavra estão penduradas mil mentiras (escreveu Dieter Roos). O testemunho de mim é confiável – eu ponho em risco minha reputação de mim mesmo para defende-la. E só pode testemunhar quem pode inventar. Mas ainda assim, eu testemunho. Em cada mentira estão penduradas mil verdades (continua Dieter Roos).

3. Eu mesmo. Aqui começa toda ficção. Fazer surgir no meu corpo uma voz. Fazer habitar em meu corpo uma responsabilidade. Fazer com que em meu corpo haja alguém e não antes ninguém.

4. Lévinas detecta assim a ficção de Zvi Kolitz: é verdadeira como só a ficção pode ser. E depois fala de vertigem. A vertigem de se reconhecer naquilo que ninguém confessou. Só o outro, o que tateia entre as mentiras, pode confessar de mim.

5. De onde faltam verdades, surge, entre outras coisas, sinceridade.

6. Quem quer dizer o que sente / Não sabe o que há de dizer. / Fala: parece que mente... /Cala: parece esquecer. Fernando Pessoa escreveu estes versos em 1928 e consta que escreveu também assim: Vaga história comezinha, que pela voz das vozes, era a minha. Minha voz carrega a autoridade de um governo central – as vezes distante como um fato súbito. Comezinha e tortuosa. Sem essa voz acoplada a mim, instalada em mim, eu não teria nada a dizer.

7. O corpo. Mas do que é que o corpo não mente? Ele dissimula e emite sinais em profusão. Treme. Geme. Fica doente. Fica a cara da minha alma. Minha bexiga despejando meus remorsos, meu fígado armazenando minha ira. Meus fios de cabelo balançam com o vento das minhas descrenças, meus cheiros tem a forma da minha inquietação e minhas unhas crescem o conteúdo da minha angústia. Meus germes são agentes infiltrados de quem eu amo e me machuco––me adoeço de receios. Meu corpo transparente. E minha alma nua, escondida debaixo dos panos. Nele transparece o que eu poderia ter vivido e o que eu imaginei que poderia ter vivido. Talvez ele expresse em demasia o avesso da mentira.


8. Uma palavra pode salvar o mundo (por um segundo). Eu escrevo para meus olhos não serem a única testemunha.

9. Minhas palavras sobre mim têm também seus subterrâneos. Meus sub-acontecimentos, minhas verdades que não suportei, meus clandestinos e ilegais. As fantasias de mim fizeram meus gestos, me deram coragens, me impediram de errar. Minhas fantasias se costuram na minha pele. A imaginação cava pelas endodermes, soltam furúnculos, fazem suar.

10. Demagogia? Meu corpo é um palanque de demagogos. Eu acredito neles todos. Eles aprendem a cada dia como me convencer. Eu trabalho para eles, ajuda a campanha.

Eu sou uma casa de pensão.

Eles me pagam pelo meu voto.

11. Os personagens de ficção são como fingimentos. Mesmo se não forem tudo aquilo que dizemos deles, eles existem. Kripke pensa que eles não são entidades abstratas independentes – eles dependem de quem os instaura, de quem os cria, de quem os instala na existência. Frankenstein, desde 1818, existe desde 1771. Eu, desde o dia em que aprendi que nasci, nasci no dia do meu registro civil. Ter me convencido disso me tornou gente – todo mundo é natal – e selou alguns destinos da minhas saúde e das minhas doenças.

12. Cesar Aira em Cómo me hice monja: a menina César Aira narra como falava com ela o homem de branco no hospital – Como está hoje don César? Sua aparência está ótima don César. E afundava os dedos nos seus órgãos em busca de testemunho, de testemunho da voz. Dói aqui? Sim. Dói aqui? Não. Ele escreve: Começava tudo de novo, desorientado. Procurava os lugares onde fosse impossível que não me doesse. Mas não os encontrava, não encontrava o impossível, de que eu era dona e senhora. Eu tinha as chaves da dor... Ele, César Aira, inventava a ela, a si mesma.

13. Escrevo para escapar de mim. Algumas mentiras me carregam e me preservam. Já reinventei meu passado por conveniência ou por demagogia. Os passados reinventados arrancaram ritmos muito escondidos dentro de mim. Há pedaços de mim que só afloram na falsidade.

14. Ter um lugar de fala pronto. O prêmio.

Falar de um lugar de preconceitos e aproximações.

Há apenas uma dose pequena de verdades que o reconhecimento pode suportar. E pode reconhecer.

mercoledì 30 ottobre 2013

Galatzia me dando força na peruca ontem nos Corpos Diversos

Corpos Diversos, Rio, Casa de Rui. Evento concebido por Ana Chiara e sua super turma. Falei assim:

Elementos para uma dermatologia especulativa:
A erótica, a política e a ontologia da pele


O interior. O endereço da especulação e talvez o avesso da vida se Nietzsche tinha razão em recomendar um modo de viver (grego) que para corajosamente na superfície, na dobra, na pele e adora a aparência – todo o Olimpo da aparência. Mas a aparência, e o sensível, e o sensual, também tem seus interiores. Schelling se pergunta (em Ideen) que é aquilo que origina a sensação? Algo de interior, uma característica interna da matéria [...] Pois onde se encontra este interior da matéria? Podeis dividir até o fim da matéria e nunca passareis das superfícies dos corpos. O interior é a pedra, interlocutora de Szymborska e que diz mesmo que você me queber em pedaços, nós ainda vamos estar fechadas para você, você pode nos triturar em areia e, ainda assim, nós não deixaremos você entrar. Mas dentro da superfície da pedra há a superfície da areia, a superfície dos grãos, a superfície espaço entre os grãos. Estar dentro é também estar às voltas com as peles que recobrem já que nada pode ser sensível sem ter a sensualidade de uma superfície que pode ser sentida.

É que pelo menos no sensível, existir é poder ser encontrado. Nada fica no sensível sem poder ser sentido. Nada fica sem pele já que tudo fica em uma superfície. Fica exposto. Ficar posto no espaço é ficar exposto, posto para fora, ser afetável. Existir é estar em uma encruzilhada. É estar a mercê do que mais existe já que se existe tendo uma pele, onde se começa e onde se termina. A encruzilhada dos existentes, a encruzilhada do que existe. Do que existe também. Porque existir é coexistir. Ser é estar em companhia. (Do que mais seja). Existir é estar no meio das coisas que existem, expostas a ela, com uma pele. A pele é exposição. É disposição. E é disponibilidade. E é à disposição. Pela pele entram os bárbaros, os bacilos, os desejos, os ventos, os acasos. A substancialidade do sensível é dermatológica – é sobre isso que eu quero especular. Especular com a epiderme virada para os estratos subcutâneos, entrelaçada na endoderme, adentrada no stratum spinosum, membranas adentro. Pelo interior da pele, sem sair da soleira, sem sair da soleira senão para entrar em outra soleira já que toda coisa que existe e persiste tem fronteiras. Todo indivíduo é também refém de sua pele já que existir é coexistir. Especular sobre o que faz parecer que no sensível tudo corre – tudo corre porque tudo é susceptível a tudo. Tudo está a mercê. O sensível, que é domínio dos contágios, das infusões, do que toca, do que se toca, do tocante, das insinuações, do contato, do trato, da flor da pele, é muito sensível. Qualquer desatenção, pode ser a gota d’água.

O sensível também tem ele todo uma pele. Se ele pode ser encontrado, ele pode ser tocado. Ele todo não pode existir sem se exibir. Ele todo é um horizonte de insinuações – e é por isso que o desejo está espalhado por todas as peles que eu posso esfregar. O sensível está para ser sentido, está a disposição, está aberto a quem chega. O sensível é o que tem uma aparência. E tem uma presença independente de todas as suas qualidades – tudo o que é sensível pode ser apontado: aquela ali. Esta capacidade de ser espiada sem ter suas qualidades inspecionadas é o que faz uma coisa sensível ter o que Duns Scotus chamava de haecceitas. A presença é um assunto de peles, de membranas, de máculas. Quem esbarra, não esbarra em profundezas antes de esbarrar na pele – é nela que se toca. Posso não saber nada da pele que eu toco – posso não me tocar do que toco, mas toco. Nada pode estar presente sem estar em exibição. O trato – o contato – não é uma questão de conhecimento do interior, é uma questão de notar o que se exibe. Não é uma questão de entranhas, mas uma questão de nervuras. Ser sensível é também poder tocar, poder afetar. Os eleatas diziam: provocar e ser provocado.

O sensível é sensível porque carrega uma virtualidade – por isso parece que nele tudo corre. Nele, tudo depende das circunstâncias. Deleuze, em Le Pli, entende o contingente como sendo imerso na virtualidade: que o vinho seja doce ou que Adão peque depende de todo o resto do mundo. É que o sensível está a mercê de tudo o mais, de tudo o mais sensível. Porque existir é co-existir, parece que tudo corre – minha pele exposta aos elementos. Nada traz em si as rédeas de sua substancialidade. Já que tudo tem que ter pele. Toda estabilidade é perdida e reconquistada. Como a saúde – esvaída e recuperada. Não é por si mesmo que as coisas são estáveis, mas pelo que elas encontram pele afora. Simondon chamava isso de meta-estabilidade: a capacidade não de persistir, mas de recobrar, de voltar a ser. O sensível é dermatológico: aquilo que individua cada coisa é a pele que deixa passar o que está fora para manter a forma do que está dentro. Mas tudo se deixa levar pelas aparências, e pelas aparências das aparências. O cristal captura materiais para se sobre-cristalizar. Sua forma não é estável. É meta-estável. As aparências são meta-estáveis. O sensível: virtual e meta-estável. A mercê de todo o resto para permanecer o que é. Pele: o emblema do que está a mercê. O emblema da vulnerabilidade – do que por estar presente é capaz de ser outro. É por isso que as aparências carregam profundidades: elas são pele do que está dentro, e também pele do que está de fora. Individua, mas também permite todas as perturbações. Tudo corre por elas. E ainda assim, elas seguem sendo a aparência. Já a pele, é onde todo o sensível ressoa. Eis a dermatologia especulativa: tudo tem uma medida de pele. As coisas vivas são uma plataforma de lançamento especulativo que chega a todas as aparências das coisas, vulneráveis, virtuais, meta-estáveis e entregues às insinuações da co-existência. Tudo está exposto ao toque.

As aparências são aquilo que esconde – não é que tudo corre nas aparências, é que elas amam esconder-se. Aparências por trás de aparências. A matrioshka das peles é também um biombo, roupa tirada sobre roupa. As aparências são afetadas. Aparências escondem aparências – não há a última roupa, nem há a última pele. Porque há pele, as aparências é que são hábitos, as aparências é que habituam. Tudo o que é sensível se habitua com as aparências. E nas aparências habita a política. O Heráclito recente, o caquético objeto de uma anarqueologia selvagem diz:

215. A política ama esconder-se em moitas de natureza.

Ele parece pensar que também o pensamento do sensível pode exorcizar o conhecimento de coisas últimas. Pensar é mais do que desvelar o último véu. Ele entende que muitas vezes pensa-se

277b. [...] como se estivéssemos descortinando alguma coisa. [...] Tiramos as roupas, mas apenas para mostrar alguma coisa que estava escondida e que vai voltar a se esconder para que outra coisa possa ser despida – não há a última pele. Physis ama esconder-se: ninguém vai desmascará-la de uma vez por todas. Nenhum corpo pode ficar completamente vestido, nem completamente pelado – o pensamento não tem nada que ver com o universo nu. [...]

As aparências escondem aparências – a evidência é uma artimanha de ocultação. Mas não há o não aparente subjacente, aquilo que, substrato do sensível, é indiferente aos ires e vires do sensível. Há, é claro, pele sobre pele, pele sob pele – mas as aparências não são sustentadas por nada que não seja aparência. Porque existir é co-existir. Mas sensibilidade, pele, afetação não é estar todo aparente. Aquilo que se revela, se revela porque se esconde. E isto é a do caráter dérmico das coisas: elas revelam só se escondem alguma coisa. E a pele – e não quem a toca – é que decide o que aparece e o que fica recôndito. Heráclito insiste que o sensível não é o disponível à nossa sensibilidade, é antes o que está sensível à disponibilidade (ou, talvez mesmo, sensível à nossa disponibilidade):

204. [...] Se estamos em um exercício de voyerismo das coisas (mesmas), como parece que tanta gente anda pensando, essas coisas também agem decidindo o que permitirão que seja visto. Raramente as coisas são apenas espionadas. Elas estão em uma sala de onde as vemos, mas elas estão fazendo um peep-show. Elas decidem como as vemos – e vão para casa depois do horário de trabalho.

Órgãos, indivíduos, acontecimentos e substâncias que ocupam espaço e persistem no tempo têm superfície que as cobrem. O que há tem pele – poder ser tocado já que existir é co-existir. Dentro das aparências, mais aparências. As voragens nascem das aparências, e se nutrem de fricção. Fricção. Pele é fricção. Touchscreen. De touchscreen. Galatzia diz: mi cuerpo es touchscreen, touchscreen, touchscreen. Acariiicialo. Soy hibrido sexual, todo me provoca. Touchscreen. Toda a metafísica se resolve na touchscreen. Touch, touch, touchscreen. As coisas se afetam. São afetadas. Tudo o que há é afetado. Uma dermicidade onde as coisas são moldadas por suas bordas, por suas membranas que são também suas fronteiras. Touchscreen: afetável. Um toque pode trazer alguma coisa de longe. Os toques acessam. Sintonizam. Programam. Chamam. Touchscreen. Pele é antena tátil: um plano. O plano do que existe. O plano em que o que existe co-existe. Por isso Marcos Vinícius, em Frágil, na transperformance, em dezembro de 2011, se cobriu da etiqueta de frágil. A pele é susceptível a tudo. Touchscreen.

A pele é touchscreen, e por isso os corpos são diversos. Eles estão expostos aos ritmos do sensível. O sensível esculpe os corpos – genes, voragens, batidas, ambiente. E faz isso porque os acontecimentos pulsam. Co-existir – e ter meta-estabilidade – é dançar conforme a música, mas também conforme as outras dobras dos acontecimentos: as articulações dos corpos, as dobraduras, as viragens. A planta transgênica de Eduardo Kac mostra isso: os visitantes manipulam em que claridade a planta vai ficar, se vai ficar na luminosidade de Oslo, de Tóquio, de Nova Iorque ou do Rio agora. Trata-se de uma extensão do sensível – estar esculpido pelo que passa. Esta escultura das coisas tem sua forma geológica expressa de maneira explícita nos ritmitos. Um ritmito é composto por camadas de sedimento que foram depositados com uma certa periodicidade. É como a cristalização que condensa os ritmos dos acontecimentos passados. Alguns se repetem por pouco tempo, outros por um tempo mais longo. Os ritmitos de Brasília registram padrões que são remanescentes de marés e registram um possível mar pré-histórico na área. O mar pode ter estado presente há milhões de anos, mas deixou vestígios rítmicos. A geologia dos ritmitos inspira uma especulação: pedras, montanhas e corpos são moldados e compostos pelos padrões que os circundaram. Os corpos são diversos porque têm pele.

Os corpos são diversos porque tem pele. E tem uma pele que é diversa – cada pele tem suas dobraduras, suas rugas, seus corpúsculos de Pacini, seus estratos, suas endemias, suas endermias, sua biografia de suscetibilidade a miasmas. Touchscreen. Entendo que os miasmas são aquilo que Simondon chama de apport d’information, que fornecem informações, mas tem que ser entendidos através da epidemiologia. Eles podem ter várias formas: microbiota, micropadrões de desejo, pequenas variações de temperatura, cócegas, sanhas, voragens, mas também proteínas, catalizadores, hormônios. Os miasmas são unidades de contaminação. Toda dermatologia é uma epidemiologia: a dermatologia especulativa é uma epidemiologia especulativa. Os miasmas podem ser populações, de genes, de memes, de batidas, de medos. Aquilo que afeta: uma ecosofia – ou seja, articulação das três ecologias de Guattari: as unidades de adaptação e construção do ambiente biológico, das sociedades humanas ou não e da subjetividade. Meta-estabilidade – a produção de diferenças. É que a pele é uma antena local que vai se sintonizando por onde anda, por onde roça. É roçado. É a mágica que faz erguer o gênio da lâmpada. A pele é uma trama que captura miasmas. Os corpos são esculpidos pelos miasmas em sua carnalidade, em sua velocidade, em sua intencionalidade e em sua dermicidade – ou seja em suas dobras, redobras, dobraduras; rugas, rugas nas rugas, rasgos. Os miasmas são como ritmos, eles provocam repetições, mas repetições apenas nas formas já esculpidas – o subcutâneo tem suas geologias. O ritmo contamina, mas a contaminação é diferente nos diversos corpos – alguns batem o ritmo como um xequerê, outros como toda uma bateria. As repetições sempre dependem de quem repete – de que corpo ressoa o que está sendo repetido. O repetidor é contaminado desde quando se habitua à repetição, habita a repetição. Intensidade: o quente contamina o frio. O lento contamina o acelerado. As questões contaminam as soluções – a pele ressoa corpo a dentro.

A pele dos corpos é aquela pele a partir da qual especulamos todas as outras. Ela tem um grau de intensidade que molda as capacidades dos corpos dobra a dobra, camada a camada, estrato a estrato. Uma trama de infiltrações. Nada que é sensível é alheio a pele – ainda que a capacidade de captação de cada coisa sensível seja sempre regional e limitada por uma sintonia. Por uma sintonização. Por uma matriz de diferenças e indiferenças. Nada que é sensível é sensível a tudo. Há um pano de fundo de insensibilidade, de aturdimento, de indiferenciado – como o que está além do horizonte. Um continuum. Do que não alcança a me tocar com suas peles. Como a noite ou o espaço entre as estrelas no céu de noite. Como o som ao redor. Substituir a substância pela derme é também renunciar à possibilidade mesma de uma visão de parte alguma, de um panorama do sensível, de uma paisagem completa de tudo o que é concreto. As antenas, é certo, são resintonizadas, a captura é reorientada. A pele é vulnerável a ter sua vulnerabilidade alterada.

Tudo o que precisa de pele está exposto aos transeuntes, aos que transitam, às transduções, às partículas de intensidade que vão e vêm. Aos pequenos demônios que roem as substâncias. Traças. Vermes. Transmissores microssexuais. Começos de compulsão. Pele é falta de imunidade: é comunidade. A pele está aberta aos desejinhos. Eles se propagam como os vírus, como os germes, como os mosquitos da malária que não reconhecem fronteiras. São forças que moram n’água, ou moram na falta d’água, e não fazem distinção de cor... Por isso há cura gay. Claro, os desejos são infecções. Alguns estão à flor da pele, outros estão recônditos e podem precisar de muito roça-roça para emergir. São disposições. Não são posições fixas. Vão de um lado para outro. Ninguém aprende a ser hetero, mas ninguém nasce sabendo. Por isso há cura hetero. Por isso os desejos são permeáveis – eles são feitos do que é feito a política. Epidemiologia. Escultura de corpos – de acontecimentos, de instituições, de hábitos, de dispositivos.

Já a subversão, ela está na aparência – ela está na evidência. O poder instituído é como um corpo que se apresenta substancial – mas o poder também tem pele. Tem porosidade. Tem membranas. Tem tectônica. Tem camadas. A atenção à pele é a atenção ao que fabrica o poder, e ao que o deixa fabricado. São as questões, a pele de toda solução que é sempre permeada e infectada de questões. A pele é a questão. A pele é a porta de entrada. A solução – como o poder – é não mais do que o interior, pele sobre pele, retorcida, resguardada, retirada. Jabès, no Petit livre de la subversion hors de soupçon, escreve que não podemos interrogar senão o poder, o não-poder é a questão mesma. A questão é pele. As questões iniciam alguma coisa – não estão predestinadas a uma solução e nem sequer a ter uma solução. Elas pertencem à ontologia da pele. E os corpos, touch a screen, são questões.

martedì 22 ottobre 2013

Minha fala no evento Jabès amanhã

Amanhã, no evento Jabès que começa às 14 horas no mezanino do ICC sul, antigo LET, falo sobre subversão, hospitalidade, questões e interrogatórios. A fala se chama "A verdade conhece todas as subversões. O pensamento em uma tonalidade Jabès". O texto:

Amin Maalouf, por exemplo em seu Le premier siècle après Béatrice, destila o temor de que uma era de questões – como o século XX – tenha que ser seguida de uma era de soluções. As questões são para serem cultivadas, elas têm um matiz a ser protegido do inferno das soluções. As questões semeiam e prometem já que são começos, mesmo que sem princípios; as soluções – como a Solução Final – trazem com elas a inflexibilidade dos términos, do terminal, do fim de linha.

Quando uma questão é levantada, quando ela perturba o que já parecia solucionado, o pensamento experimenta uma proliferação em esboço, uma suspensão que se apoia em nada mais do que na virtualidade das respostas; uma inauguração. Peter Handke, que transita pelo material de instabilidade do qual se fazem questões, escreve em sua Geschichte des Bleistifts da busca pelo começo, pela gravidade do começo, da aquisição do começo que ele compara com a brancura encarnada. O branco da aquisição do começo é o que escapa da língua declarativa – o que não cabe nas respostas. Deleuze, em sua dialética do problema (Difference et Répétition, 4), cita Lautman que diz que o problema tem três aspectos: sua diferença em relação às soluções, sua transcendência com respeito às soluções que ele engendra e sua imanência com respeito às soluções que vão encobri-lo. O problemático é o que persiste não porque ele promove uma suspensão do juízo que é a indisponibilidade da resposta, mas porque ele inaugura. E é a inauguração da questão que é o novo no muito antigo: a questão é uma ponte suspensa no ar e todas as questões respondidas guardam ainda sua transcendência já que ela fica recapitulada em todos os esforços para se assimilar a solução. A suspensão do juízo é ainda sucursal do primado da solução, já que a questão aparece como uma falta de resposta. Porém também na falta de resposta insiste a força da questão, a força de um pensamento dos começos. A questão é um vestígio do inacabado. Da incompletude, daquela que não conhece sequer a medida de sua incompletude. A questão aponta para um infinito – não para a medida do tudo e do nada, mas para a medida do inalcançado.

Uma resposta é sem memória, diz Jabès (PLSHS, 29 ), a questão apenas se lembra. Os começos são memoráveis, são eles que prometem sem ainda saberem o que é possível. Na mesma página, Jabès escreve: não podemos interrogar senão o poder, o não-poder é a questão mesma. Este é o endereço da subversão, a questão que fica suspensa – o avesso do interrogatório que já é o momento onde a questão requer resposta. E é o interrogatório que funda um regime de pensamento em que os começos são inícios do que pretende ser completado, em que nos dirigimos aos outros, a nós, a todo o resto como quem tortura (ou como quem busca a quietude das coisas prontas, a ataraxia da clareza). Ainda na mesma página, Jabès escreve: a questão é a sombra, a resposta é a breve claridade. O regime de pensamento que atende à claridade ainda que breve, ao invés de se ater ao movimento das sombras, se fixa nos pontos finais. As sombras, por serem evidência, é aquilo que Jabès entende como o terreno ideal onde opera a subversão. O interrogatório, o avesso da subversão, por outro lado, é o terreno do pensamento apressado. Do pensamento que quer soluções. Talvez a diferença seja entre o pensamento que se dirige ao seus objetos e o pensamento que vaga por entre eles já que não tem residência fixa. Há o pensamento das palavras – da clareza dos preconceitos e, portanto, aquele que invoca o que está consumado nas coisas – e há o pensamento do abismo que bate à porta de Deus, aquele que transita pelo esquecimento de uma palavra. A subversão transita por entre os silêncios e os gestos que inventam uma versão a contrapelo. Jabès encontra a subversão na insistência de começar, no que ainda não é sideral como um furo no guarda-chuva de D. H. Lawrence (em Chaos in Poetry): a ordem que perfurada revela o caos subjacente ao guarda-chuva pintado onde fizemos um nicho. A subversão nem é uma oposição à repetição, já que ela pode ser habitual. Ela não é mesmo oposição alguma, nem contraposição – é um flerte com o nada, é a criação de Deus feita à sua imagem (a imagem de Sua subversão) (31). A arte de viver é que é ela mesma movida pela subversão (32).

Pensar a subversão é um capítulo de um engajamento com um pensamento alheio aos interrogatórios. A verdade, que conhece todas as subversões, não é o que fala um oceano ou uma ameba ao serem torturados, mas é um advérbio. A verdade é um modo como surge alguma coisa: abrigando. Um modo subversivo: que atende à insurreição, que provoca singularidades. A verdade como um advérbio é uma maneira de desencobrir, uma tonalidade do desvelamento – não é nem sequer o que ela revela, mas aquilo que ela torna possível revelar. É que Jabès parece operar em um fôlego no qual é comum passar ofegando como se passa por um beco antes de chegar na avenida iluminada – ou na porta de casa. É o fôlego onde reside um estranhamento que ainda não é tradução, um biombo que ainda não é nudez, uma cadência que ainda não é batida. Fôlego de um instante – um instante que tem a densidade daquilo que reclama nossa plena adesão (10). A subversão é pacto de futuro (11). A subversão é corriqueira como a verdade é habitual – sua força é que é sorrateira. Ela comanda atenção e, como um beco, pode ser apenas um local de passagem, uma transição. Há quem comece para terminar, e há quem comece. Entrar em si é descobrir a subversão (15) já que o eclodir de todo pensamento (de todo pensamento de si) é uma distorção, é uma insurgência, é uma insolência. Interpretar – uma regra, um livro, uma lei, um gesto – é retirar o foco de uma presença plena. Nenhuma resposta pode ser concebida ou entendida sem ficar borrada de questão. E a questão é singular, sem lugar, sombria. O instrumento range para ser afinado, o pensamento atravessa zonas borradas para chegar em alguma narrativa. Zonas borradas, becos, sombras que abrigam a verdade virtual. A verdade não poderia desconhecer alguma subversão – e é por isso que ela talvez não exista já que Jabès escreve: se a verdade existisse, ela seria nosso único adversário; felizmente ela não existe e nós podemos nos inventar inimigos (83). A verdade é a distorção da verdade. Se ela existisse, plena e potenciaria, ela seria a cruz e a espada das salas de interrogatório. Mas ela é sombra, sombra de dúvida. Ela transita pelos sussurros, pelas insinuações – naquilo que uma vez eu disse que só poderia ser pensado de soslaio (E&E, 10). A verdade não existe no meio-dia das presenças plenas, ela apenas insufla como um vento, como uma arruaceira – ela só cabe nas subversões.

Jabès transita por entre os acordes do pensamento em que ele não interroga, nem responde ao juízo de Deus, nem anda às voltas com completudes. Transita entre acordes em que o pensamento não responde nem cumpre uma tarefa, mas se incumbe de começar. Trata-se de uma tonalidade. Ela talvez tenha sido uma das muitas que foram fertilizadas com a sentença de Heidegger (acerca da sentença de Nietzsche Deus Morreu): O pensar só começará quando tivermos experimentado que a razão, venerada desde há séculos, é a mais obstinada opositora do pensar. No entanto não se trata de se livrar do ímpeto interrogatório que a razão supostamente repete. Trata-se antes de passar ao largo da cartografia do interrogatório e se demorar na incompletude dos começos. Por isso a rapidez dos textos independentes que soam como fragmentos iniciais para todo um pensamento insinuado, que contrasta com a pressa do pensamento que quer completar sua tarefa e chegar a um resultado que dispensa qualquer questão subsequente. É uma tonalidade da demora no começo. É encontrar a densidade das capacidades mesmas de inaugurar que precisam rondar o pensamento. Jabès é o nome mesmo desta tonalidade: uma tonalidade de subversão que é ao mesmo tempo uma tonalidade de hospitalidade. O pensamento da questão é o pensamento da subversão, por isso mesmo é o da hospitalidade – o avesso do interrogatório. O acolhimento é, no pensamento, o momento que tem que anteceder, mas que contrasta com aquele de fechar questão. No acolhimento, a receptividade é um estado diante do que aparece – por isso Jabès a coloca na encruzilhada dos caminhos (LH, 13 ). É uma atitude de um começo. O pensamento que abriga a alegria, a depressão e a maldade como a pensão de Rumi, sabendo que nenhuma delas vai fixar residência para sempre. A hospitalidade não é para quem fixa residência, é para quem chega. Um fôlego, uma maneira de respirar do pensamento, uma tonalidade – aquela da attente. Ela é hospitaleira (22). A espera que insinua o que está a algum alcance e que evoca uma salvação – um suspiro, uma respiração presa. A palavra de Blanchot: ter uma parte de si a disposição. Estar disponível como quem pode ser movido, como quem pode ser afetado, como quem pode ser salvo. A espera traz também a messianicidade em que transita todo pensamento já que mais do que vestígios escritos ou registros sonoros, ele transita entre as garrafas jogadas ao mar. De toda parte pode vir o Messias, estar em attente é o estado Beckettesco e sebastianista de quem respira a incompletude das coisas. A espera é a transcendência, mas a espera do dono da pensão é a transcendência que abriga uma vez que todas as coisas não podem estar juntas a espera de uma salvação pois isto as tornaria prontas. Nós esperamos uns aos outros. De toda parte pode vir aquele que virá. A hospitalidade é também como o rio do horizonte que saúda todos os acontecimentos que chegam. O pensamento da hospitalidade é o pensamento da abertura – aquele que espera um acontecimento qualquer.

Jabès escreve que para aquém da responsabilidade, há a solidariedade; para além dela, há a hospitalidade (56). A hospitalidade é uma abundância e uma dádiva: ela não é calculada e nem contratada (e nem negociada, e nem mesmo medida). Pensar com ela é se demorar nos momentos de proliferação. É preciso cuidar para que as questões não virem interrogações, para que a frutificação não seja contada com parcimônia – questões são abridoras de horizonte. Esta é uma atenção de Jabès: o cuidado com os começos inseguros, que eles fiquem bambos já que eles abrigam toda sorte de peso. A hospitalidade é também abrigo da verdade – já que nela reside quem nunca acaba de chegar. A hospitalidade é um acordo silencioso (21) e talvez seja o outro lado daquilo que Jankélévitch chamou de verdade das verdades que nunca pode ser provada – o je-ne-sais-quoi que faz com que ainda falte chegar, em tudo o que chega. A pensão não se fecha, a espera não acaba, o Messias não aparece ainda. Porém a pensão não se fecha não porque os hóspedes são insatisfatórios e ainda um outro hóspede vai chegar que vai merecer que se feche a pensão. A hospitalidade é para Jabès o primado da atitude diante de qualquer revelação – como a prioridade do outro de Lévinas diante de qualquer pensamento ontológico. Que haja um je-ne-sais-quoi pode prover credenciais à hospitalidade (e a subversão) para que ela continue na cadência da incompletude. Porém Jabés não está a procura do crivo, ele quer se demorar na hospitalidade já que há um exílio mesmo das mais avalizadas verdades reveladas – e todo pensamento ontológico floresce sobre o estrume de um outro dispensado. A hospitalidade é indiferente às revelações como é às decisões. Nem sequer o pensamento da hospitalidade precisa se demorar em escolher seu objeto, seu escopo ou sua direção: a hospitalidade não se direciona um objeto decidido, ela procede sem foco porque habita na espera, mas também porque escuta a prédica do Reb Ildé no Livre des questions: que diferença há entre escolher e ser escolhido já que nós não podemos fazer outra coisa que nos submeter à escolha? A escolha, a decisão é já um acontecimento para aquém da hospitalidade, que pode dar seus contornos, como pode traçar seus limites já que não se trata de sustentar a recomendação para que vivamos no acolhimento e pensemos sempre no tom da hospitalidade. Não se trata de sustentar recomendações, mas antes de tornar visível, denso, sensível a intensidade do pensamento guiado pelo seu ímpeto de ser uma pensão. Tocar no pensamento quando ele carrega as confianças dos começos. Já a escolha, ela pode vir da responsabilidade, assim como a decisão pode ser ter sido feita pela solidariedade, mas elas são alheias à hospitalidade.

O pensamento da hospitalidade é assim talvez um ramo da não-filosofia de Laruelle que pretende romper com a decisão filosófica que determina o escopo do pensamento, deixa-lhe entregue a um foco como quem lhe atribui um quinhão do mundo. A decisão filosófica produz um objeto filosófico, um objeto resguardado, reservado, protegido – é aqui que o pensamento se foca e nenhuma outra diferença pode fazer diferença. Uma Unter-schied que é também o que fica abaixo da diferença, imune a ela. A decisão provoca uma espécie de imunidade, de proteção, de segurança (sine cura) ao pensamento. O pensamento solto é aquele que não é submetido a uma escolha, e nem é aquele que escolhe, mas reside naquilo que acolhe. O pensamento da hospitalidade não quer substituir a filosofia, mas fazer questão daquilo que a precede, daquilo que aparece quando a filosofia ainda não é alguma coisa que possa ser invocada. É que antes de ter casas onde há residências fixas, todo endereço esteve aberto a quem chegasse, a qualquer ocupação, já que o espaço é ele mesmo casa de pensão. Os hóspedes, é certo, podem chegar e sair, podem ir fixar residência alhures. Mas há uma tonalidade que pode aparecer quando eles chegam: são esperados. A espera que é a espera do outro e por isso mesmo a espera do qualquer. A mercê das messianicidades, da messianicidade qualquer. A hospitalidade, então, é silenciosa, é da natureza dos subtons – Jabès a contrasta com a responsabilidade que é filha do diálogo sobre o qual ela ingenuamente se apoia (21). A hospitalidade está na entrelinha onde a questão ressoa, onde a questão fica ecoando e é tratada como uma disponibilidade. Estar a disposição é um silêncio que regenera, que torna possível um ato de começo, que concede permissões. E a hospitalidade se separa sutilmente da imposição, com uma sutileza do que envolve todas as outras coisas ao redor – como em toda diferença entre violência e entrega, entre invasão e recepção. A total disponibilidade, diz Jabès, conduz à hospitalidade. A dis-posição contrasta assim com a dis-puta – a Aus-ein-ander-setzung que, se examinada em sua micro-estrutura, tem um gesto também de hospitalidade, aquele que diz: vem de um outro lugar para cá, vem, chegue – saia do lugar, chegue mais. O acolhimento é sempre espacial, ele está nas posições e também no pouso. Mas ele também tem uma duração, uma memória: que tua memória seja uma casa, diz Jabès (59). Que as memórias abriguem, que elas acolham – mesmo que elas não existam. Jabès escreve: [se tu não te lembras de nada], tu habitas neste Nada, diz o nômade. Assim, a coisa a transmitir não é senão poeira de areia e de livro, poeira de vocábulos. Tudo está para ser reescrito. O nascimento da hospitalidade. (96)

O pensamento da hospitalidade é uma política – paralela à política da subversão. A verdade, que conhece todas as subversões, reside na precariedade dos começos. A realidade, diz Jabès, está do outro lado da parede, basta um furo para surpreendê-la (22). Um furo na parede: a subversão, a hospitalidade, o começo. Ela tem a cadência do tempo das surpresas. O pensamento instaura durações, estados em que os começos são acolhidos e encontram a encruzilhada onde podem proliferar: o pensamento do que surpreende, ainda que não compreenda. A atitude política: receber o que chega. A hospitalidade não é um programa político completo – nem a subversão pode ser mais do que um gesto de fazer questão. A escrita da hospitalidade é uma escrita de feridas, da tonalidade do luto e da tonalidade das insinuações. Um programa político talvez precise de solidariedade e de responsabilidade – a parte da hospitalidade é a da reescrita. Ou talvez um programa político só possa habitar entre as soluções. A tonalidade Jabès é a da política das questões. É aquela que insiste que coisa alguma está pronta. Porque é inacabada, precisa ser começada.



venerdì 18 ottobre 2013

And cummings' Electric Furr

i like my body when it is with your
body. It is so quite new a thing.
Muscles better and nerves more.
i like your body. i like what it does,
i like its hows. i like to feel the spine
of your body and its bones,and the trembling
-firm-smooth ness and which i will
again and again and again
kiss, i like kissing this and that of you,
i like, slowly stroking the,shocking fuzz
of your electric furr,and what-is-it comes
over parting flesh….And eyes big love-crumbs,

and possibly i like the thrill

of under me you so quite new

o breu entre as sílabas

Canso das palavras: cada uma armadilha costurada com fios soltos
das verdades e fios presos das mentiras.
Cansar das palavras é cansar das coisas. Tenho a ânsia.
A ânsia de mata serrada, de uma luxúria oceânica, onde não embrenho.
A carne do indefinido, o pigarro, limpando sempre a boca prenhe.
Sobram-me os urros, os uivos soltos, me engasgo com as palavras.
Aquela coisa sem letras... eterna e provisória, a rima de cummings
sobre o redemoinho de Hölderlin.

sabato 21 settembre 2013

Rala estância

Para Luciana Ferreira

Olho embaixo das ânsias frenéticas,
das pressas e também das tectônicas vagarosas
dos deslocamentos imperceptíveis,
debaixo das rugas e de suas pitonisas,
debaixo dos músculos dos obeliscos
e encontro: umas ralidades.
Me dizem que é monstruosa a pele sem carne,
a aparência com nada por trás,
não com um outro por trás
não com um mesmo por trás
- mais nada a evidenciar.
É flor de plástico plantada na floresta
e sépalas, e caule, e viço.
Tomo um fôlego ouvindo um estorninho de barriga preta,
ele peleja.
Tomo meu fôlego com a cabeça nos monstros
cheios de sombras que não parecem ser coisa alguma,
só assombrações nos condomínios do ser.
Eles se mexem, se espraiam, se espalham,
podem ficar impercebidos
como quem dexiste, como quem vive em um ninho
de arrepios, de capinzais e de lutos.
Eles sussurram o que eu não compreendo.
Nada, nada, nada mais. Não fazem enganos,
nem labirintos, nem substâncias.
Ébria estância. Nadando sob olhos horríveis
sem pés, sem pontas, sem parapeitos.



mercoledì 11 settembre 2013

Uma manhã na velha casa de alguém

Passei anos tentando viver. Parecia que eu estava com todas as minhas válvulas (ou são veias?) entretidas com sangue, com o ronronar dos ossos em gestos, com os elementos mesmo que constituem o âmago das coisas, ainda que eu achasse que coisas não tem âmago e têm não mais que bagaços feitos de outras coisas sem âmagos. Eu escrevia: não há âmagos, desistam, não há âmagos. E, no entanto, parecia que eu respirava âmagos - e, ainda mais âmagos, se o ar era amargo. Procurava o amargo. Queria meus muitos anos de vida, dia após dia. Acreditava que estaria em breve quites com deus - nem ele precisaria me perdoar, nem eu aceitaria seus perdões. Os músculos do mundo teriam provado estarem em completa sintonia com os das minhas entranhas - aqueles tão claros, distintos, grandiosos, perfeitos, decididos e vazios e estes tão retorcidos, íntimos, mal-iluminados e regados a sangue. E, no entanto, não eram válvulas, eram botões de girar de uma máquina que eu podia desmontar, despedaçar e a máquina era uma versão multi-dimensional da tal mola pra adaptar-me. Devia ser que há um ritmo comum a ser dançado entre meus oceanos e as pedras pegando fogo lá fora.

- Eu não sei como é que se vive.

De súbito hoje, numa manhã de fim de inverno, abdiquei. Já nem sei mais o que abdiquei porque passei todo um parágrafo descrevendo o que eu abdicava. E então já mudaram os ares. Abdiquei - vejo bem o que foi que eu abdiquei, mas vejo tanto que já não vejo mais nada além. Era preciso não demorar em dizer não. Mas aquela minha bromélia tinha caule para florir e eu tinha ventre para hesitar. Abdicar. Abdicar das proporcionalidades. Tortuoso. Uma vida não é um acoplamento com o cosmos - é um desajuste. Olho meu ambiente controlado - ou seriam também os becos controlados, as florestas, os desejos insidiosos. Meu ambiente controlado e cheio de catábases, de abridores de excessos, de buracos homicidas entre as aparências domésticas. Não sei mais o que eu acordei abdicando, aperto entre meus dedos uma pedra falsa. Uma pedra. Todas as coisas carregam perigos - os bichos de pelúcia, os gatos, meus sorrisos, os recém-nascidos. Se tudo pode ser outro, há em cada molécula uma interpretação. E neste mundo em que tudo está em desrepouso, ninguém é estrangeiro em particular e nada pousa como um nativo. No momento que eu fui ligado hoje, não tinha ambiente. Sem mais pregos para os meus martelos. Jogar pedras nas moléculas mesmo que elas não sejam minhas. Nem sejam tijolos. Nem possam ser coisa alguma. Nem moléculas.

E ainda assim, nada acontece - de Nuno Oliveira

“Deus salva mas nada acontece”
por Nuno Oliveira


O ESTILO E A PARANÓIA


Sendo contrário à minha forma de estar nas artes, entendo que uma das formas comuns de analisar uma boa de uma má peça de arte, possa ser pela excelência de estilo do executor "le style c'est l'homme même", e também que é o estilo uma coisa de extrema dificuldade de se conseguir, que é o estilo aquilo que é único no executor (autoria) e o define como artista, ou escritor (no caso da escrita).
Só se consegue um estilo, analisando todos os outros autores de um meio, escrita, pintura, escultura, cinema, outros, analisando todos os outros e recriando uma direcção. Um algo que desafogue o mundo de uma infinita repetição que não acrescenta.
Daí dizer-se que um bom escritor é antes de mais um bom leitor. Assim também se entende porque se afirma muitas vezes o grau de acuidade de um autor, analisando o seu rigor como estudante, o seu mérito académico.
Eu por outro lado e apesar de detestar a frustração, inerente à impossibilidade de entrar no meio artístico, percebo que não entro nesta categoria, sei que está acima de mim, a culpa é minha por falta de paciência.
Sei que muitas vezes levado pela ansiedade, o único que me interessa é mesmo o poder existir, poucos são os outros autores que me chamam à atenção, muitas vezes deles me chateio tantas quantas de mim.
Mas tenho que admitir que não tenho estilo, acho que me falta textura e paciência na escrita (neste caso, o meio que uso aqui), a ideia de produção como recriações, uma certa pesquisa de conhecimento, que funciona por busca paciente de um estereotipo comunicante, aborrece-me.

*

Acabei por desembocar numa visão de arte como paranóia por oposição a uma ideia de arte como estilo.
Algo prosaico contrário a uma lógica histórica que defende o estilo como um normal processo evolutivo histórico.
A ideia de paranóia refere-se, a uma resolução de realidade, de entendimento do que é ficção. Um pensamento em paranóia procura antes de mais a verdade da sua imaginação, uma imaginação sem fundo, uma forma de afirmar e aceitar o seu principio de loucura (engano).
A mim parece-me que existimos sempre entre a paranóia e o fantasma da dispersão.
Porque só sabemos o que somos, enquanto exagero imaginativo, em segunda mão, pelo reflexo que o mundo e os outros nos dá. E no esforço de racionalizar essa imaginação (a visão que os outros tem de nós), sempre nos dispersamos também; porque nos adequamos a uma alucinação colectiva que mesmo que refreada não dominamos.
O estilo neste contexto poderá ser contrário à ambição imaginativa, à paranóia, visto que esta não se quer refreada pelo social. No estilo, o -verdadeiro artista- parece antes de mais um dominado e um dominador, refreia a sua paranóia, não a confunde com o seu produto artístico, é um controlador da sua imaginação.
É de referir também que quem trabalha o seu sistema de ficção sobre o real, suportando o erro os excessos da sua mente delirante, tem tendência a viver esta hiperrealidade encontrada, de forma moralista. Porque se desencontra: de um pensamento desinteressado sobre o quotidiano, da negociação social focada na aspereza de um consenso generalista.
A confusão que faz em vida, mistura-se com a abestração que é o social, e repensa-se a ele e o todo como uma coisa só.

*

Estilo é a definição de que um autor é singularidade no social. E aqui teríamos que pensar o que é o social ou que é o espaço publico hoje para as artes, o espaço onde se redefine a representação do que é publico (tenho que ser sincero não faço ideia do que isto seja).
Paranóia é a definição de singularidade de um autor face a si próprio.
Assim a modo de conclusão diria que a paranóia é o que possuimos como certo e que o estilo pouco passará de uma vaidade.

mercoledì 21 agosto 2013

Um vento em forma de espiral: o nada

Um vulto ronda não apenas meus ossos secando
vazios, ou uma ameixeira amaldiçoada,
mas os insetos.
Acho que o sal das pedras também, que as mãos
não ousam tocar. Despropósito. Não aquele que aconchega,
não a hospitalidade sem propósito.
O solo sem portas para abrir.
Sólido.
Taciturno e comiserado e entregue aos acidentes.
Uma perna quebrada, um dente perfurado.
Do alto da árvore onde Pierre Anthon de Janne Teller subiu,
ele come ameixas.
Já na minha frente, caem as folhas rosas.
Não vejo as folhas, vejo o vão.
O vão balança o rabo para mim, rebola, se oferece. Tenta.
Me entregar a ele vai me virar do avesso
já que meus buracos vão virar minha carne,
minhas veias, minha nervura.
Ou será uma entrega boca-a-boca para a qual toda espera é pouca?
O vão que parece grande para não preencher nada, o vão
atrai meu faro que nele há o que não há.
Sinto o cheiro do vulto. Não são ameixas.
Não são passadas.
Para respirar mais forte, cheiro a ponta dos meus dedos.
São gases que carregam a alma, o nada, as reminiscências.
Gases: o vento vazio entre todas as coisas.
Uma árvore que dá ameixas sem caroço
não larga nada pelo chão.



venerdì 16 agosto 2013

Trechos da coisa sobre a pele no Desfazendo Gênero, Natal

Não quero contar a minha história, isto seria contar a história do governo de mim, e portanto de um governante. Contar que pulsões me assujeitaram, que pulsões eu assujeitei. Sou sujeito sujeito a tudo. Contar dos vencedores e vencidos já que onde há governo ha campo de batalha. Minhas compulsões foram algumas crivadas, outras massacradas. Algumas delas me assolam sem eu sequer estender em sua direção vinte centímetros de trela. E aí é que são elas. As compulsões que ficam invisíveis. Que passam desapercebidas. Ainda que movam montanhas, que ajam à distância, que levantem órgãos, que encharquem salões. Foucault diz que na versão de Santo Agostinho, o descontrole da genitália foi a expulsão do paraíso. Mas então foi mesmo é a árvore do conhecimento. E a árvore da errância. Do conhecimento dos agentes do erro que, como traças, roem, roem, roem o sexo bem-nascido. O sexo dos governantes. Mas como contar a história dos governados que não seja a história de como eles foram governados? Uma pista: o desgoverno subjacente dos governados. O que eles fariam se não fossem colocados debaixo de uma matriz de inteligibilidade ou outra? E também quando apesar de toda a dedetização, eles seguem roedores, estraçalham, arrancam pedaços, escapam e não estão, por um lapso, a serviço do soberano que precisa ter a capacidade de sacrificá-los em nome de seu poder. O soberano precisa ter a capacidade de violência, uma capacidade de tirar as coisas do seu curso porque nem todo curso das coisas dá lugar para o soberano. (É este o tal lugar de fala?) O governo das coisas – como o governo de si – requer que seja possível o estado de exceção. Há governo porque há alguma coisa que precisa ser governada – que está sendo governada. Não quero falar de um lugar de fala que governa, queria antes deixar que fale aquilo não ocupa lugares de fala. Ocupa talvez lugar de falha. Lugar de erro. Ato de falha. Contar a história do cu é contar uma contra-história, do que nunca foi, do que se solta, do que elude. O cu é o negro da anatomia. É o subalterno onde se senta, que segura nosso peso e que não merece nem sequer que falemos de suas cagadas como falamos dos banquetes – ainda que as primeiras sejam, por vezes, muito mais baratas. Ele é o sombrio precursor, para nós deuterostômicos. Um ancestral das nossas peles, das nossas dobras, dos nossos orifícios, e nossa primeira relação com alguma coisa que entra e sai. A primeira porta aberta. Dela não esquecemos – mas ela é como Saturno, aquele que precisa ser substituído. Não mais a cagada: a fala.

Falo do que dribla a soberania da história humana – da história genital. Aquilo que pode estar a serviço mas não é o serviço dos roteiros com protagonistas genitais. Quero invocar os ingredientes, os outros pedaços da vida humana – os pedaços desumanos que poderiam ter formado a história de uma pansexualidade que não se fechasse em um apego às formas familiares. Que não fosse proprietária. Os ingredientes que são também precursores sombrios trazidos de um tempo onde não haviam espécies. Não haviam organismos fechados em conspirações de mesmos. De antes deste longo interlúdio darwinista, como chama Carl Woese: o tempo em que a vida se propaga e se transforma na velocidade das espécies. E sem espécies, não haviam gêneros. Os ingredientes que vêm de uma arqueologia profunda de um tempo de indiferenciados – uma arqueologia que precisa ainda ser inventada já que os microeros que herdamos deste tempo não são mais que o rebanho dos governados. A história destes ingredientes. Não de como eles foram governados. Não a minha história. Nem confissão e nem conficção. Não é sobre a noite em que eu troquei uma travesti perfeita por um pepino e uma garrafa de tequila. Não é nem sequer sobre os acontecimentos bêbados das madrugadas meio proscritas, não é mesmo sobre acontecimento algum. É sobre ventos. Os ventos que sopram mesmo que não movam as nervuras. Mas mudam a temperatura delas.

Invocar os ventos. Um pequeno sopro quente – dizia Sappho; da natureza dos contágios, das atrapalhações, das mudanças de temperatura, das intensidades. Ela sabia que assim vinham os microeros, da distância de um outrora que talvez só tenha existido se nunca houve começos. O erótico é um sopro na direção errada. É um pedaço de desgoverno. O desgoverno não é aquilo que escapa de uma mão e chega noutra. É aquilo que não chega. E porque não chega, tem parte com a abundância. Eu disse uma vez aqui no núcleo de germinação de pulsões que é Tirésias: a roupa errada do monge é a farda de Eros. O desgoverno também tem suas linhas de transmissão. Ele é andarilho pela pele. O ímpeto de conexão que tem a pele – a transfusão pela transfusão, de estados, de disposições, de miasmas. Fluxos invisíveis, apenas abertos às antenas xamânicas. A história do que não é visível, do que passa de pele em pele, de poro em poro, de voragem em voragem. Não a história dos corpos com fronteiras, mas o movimento de pulsões entre as linhas divisórias. As transgressões. As clandestinidades que atravessam os limites, como as partículas, os micróbios, os rastros que atravessam os corpos pele por pele, poro por poro. Não a história oficial dos corpos, mas a história friccional paralela das peles. É na fricção que transitam os desejos. Então não quero fazer nem confissão, nem conficção, mas talvez com fricção. É que a voragem tem a vocação das transmissões. Tem o gesto dos encontros cromossomiais. O cheiro da intensidade. É o que passa pela pele – como as pulsações, os calores, os cheiros, os sabores, os pigmentos de cor, as vibrações. A intensidade é como a musiquinha que fica na cabeça, que ressoa nos pensamentos, nas intuições, nos desvarios. É como os ritmos que se transmitem, que infectam – ainda que minhas curvas sejam diferentes das tuas, há micropulsões que se propagam das tuas dobras para as minhas dobras. Não há barreira que barre todas as micropulsões que carregam voragens, nem alfândegas, nem normas sexuais, nem caráter, nem a boa família, nem os bons modos. A intensidade vive das brechas que abre. Ela não é como as quantidades que são como blocos de pedra, ela é como um fluxo, como um líquido, como uma baba, como uma saliva, como uma ejaculação – quem controla ela? Ela abre seus caminhos, é andarilha sem rumo e que está sempre em chegança. Já que não chega. É assim a voragem. Tanto bate até que fura.

Errância. Erótica. É que a pele é uma antena local que vai se sintonizando por onde anda, por onde roça. É roçado. É a mágica que faz erguer o gênio da lâmpada. A trama dos desejos é subreptícia, ela pode ser batizada, trazida a família, colocada na ordem genealógica... mas ela surge da epiderme, da epiderme anal, oral, genital, da disposição de ser roçado, de ser muita pele, de estar à disposição da fricção. Em cada pedaço de pele tem alguns gênios da lâmpada. Tudo o que precisa de pele está exposto aos transeuntes, aos que transitam, às partículas de intensidade que vão e vêm. São os pequenos demônios que roem as substâncias. Traças. Vermes. Transmissores microssexuais. Desejinhos. Começos de compulsão. Eles sustentam as alianças – e as famílias, as instituições, as pátrias. São estes demonúnculos que deixa viva qualquer instituição. Viveiros de Castro contrasta a filiação (e o parentesco) com as alianças intensivas, demoníacas, as alianças que se impõem às leis da filiação – aquelas que se travam sem reconhecer os limites entre o humano – feito de normas – e o cruamente carnal. As alianças demoníacas são as que atravessam as fronteiras, que são impostas por uma microdiplomacia alheia às ordens estabelecidas. Elas se propagam como os vírus, como os germes, como os mosquitos e não reconhecem fronteiras. São forças que moram n’água e não fazem distinção de cor...

Por isso há cura gay. Claro, os desejos são infecções. Alguns estão à flor da pele, outros estão recônditos e podem precisar de muito roça-roça para emergir. São disposições. Não são posições fixas. Vão de um lado para outro. Ninguém aprende a ser gay, mas ninguém nasce sabendo. Errância. Erogênese. Ninguém aprende a ser gay – ou muxe, ou hijra, ou pottai, ou trans, ou nguiu´ – mas ninguém nasce sabendo. Não viemos aqui, diz Baudrillard, para reconhecer e sermos reconhecidas, viemos para receber e sermos recebidas. Recebam-me, ou me deixem receber quem eu tenha gana. O terrorismo é a arte do imprevisto. O errorismo é a arte do não-catalogado. Do que é um disparate e nem tem cabimento. Fora da casinha. O desejo ama esconder-se. A porno-errorista pensou que era sado-masoquista, que era goiabinha, que era travesti, quis ser baranga, boiola, Barbie e babadeira. Tava errada: era errante. O erro é pornô. Aquelas que tentam, tentam e são tentadas. Uma vida de tentação. Tentativa atrás de tentação. A porno-errorista também é terrorista, toca o terror do erro: e se eu não for hetero, quotidiano, fútil e tributável? E se eu não for o contrário de tudo isso, o contrário de qualquer coisa? A pornô-errorista concorda com Feliciano: há a cura gay. E há o contagio gay. E há o contagio hétero. E há a cura hétero. É que a microssexualidade não conhece fronteiras – e é dela, dos trizes que separam querer ter um pau para meter e querer ter um pau que me meta. A microssexualidade é a arte do roçado das peles.

Os espaços trans e os espaços inter são espaços das ligações. Mas a cura gay pornô-errorista não é a cura gay feliciana. Não é feita por especialistas em alguma scientia sexualis. É feita por uma intervenção microssexual sobre os desejos. E sobre a diferença como erogenética. A cura está na erogênese. Mas cura é um processo que vai para todos os lados – o cuidado. Sexo nunca é seguro: é aliança demoníaca. Seguro significa sine cura, sem cuidado, sem cura. A aliança demoníaca é a curadoria das partículas microssexuais. Feliciano sabe que sexo é infecção já que procura construir barreiras e barreiras ao contagio com sua homofobia. A paranoia anti-homossexual é a confissão da vulnerabilidade dos corpos às infecções das partículas de desejo. Em um vídeo recente sobre a violência dos travesticídios no Brasil, Luisa Marilac ameaça: mata um brota dez. A divergência é infecciosa. A diferença não pode ser contida com barreiras porque a natureza da coisa mesma é a fricção, é o contato de barreira com barreira. De pele com pele. Trata-se do conhecimento do erro. E o conhecimento do erro é a errância, é que o desejo é sujeito. A cura, o cuidado, é a prudência no caminho da errância que não encontra a segurança de uma identidade estabelecida como um ponto de repouso. Há cuidado em todo o caminho já que os desejos estão sendo curados, re-arranjados. Há sempre a possibilidade de uma outra configuração de partículas microssexuais – de uma outra articulação de voragens. A cura está na convocação da pele para que comece sua errância de toques. E novas voragens são novas diferenças, novos prazeres, e com eles novas compulsões. A diferença abre o caminho de uma espiral erogenética.

[...]

Ao largo dos órgãos, dos corpos, dos cabimentos e das substâncias que persistem há a superfície que cobre tudo. É pela pele que tudo, por mais substancial que seja, ocupa um espaço. O que há tem pele – pode ser tocado; os objetos carregam sua sensualidade quando se apresentam como uma face, como um pacote. E dentro da pele há mais pele, e mais pele e mais pele. O mais profundo é a pele, dizia Valèry. E se chega ao mais profundo pele por pele. É na interface que as voragens se decidem – e não há voragem que não nasça na aparência das coisas e que não persista sem fricção. Sem touchscreen. Galatzia diz: mi cuerpo es touchscreen, touchscreen, touchscreen. Acaricialo. Soy hibrido sexual, todo me provoca. Touchscreen. Toda a metafísica do porno-errorismo – a metafísica do efeminismo queer – se resolve na touchscreen. Não há mais metafísica do que touchscreen. A ordem substâncial hetero e cis é uma ordem de imagens, de corpos substanciais onde a aparência está carregada de normatividade. A alternativa é focar nas aparências, não nas aparências visuais das coisas, mas nas peles, nos objetos sensuais. Uma coisa pode nunca ser exaurida por nenhuma de suas relações com qualquer outra, mas o que não se exaure na coisa é sua pele – sempre contaminável de algum lado. Exposta. Aberta. Touchscreen. O âmbito do cuidado – e da insegurança. O errático é pele a dentro. Não é apenas que a disputa dos sentidos é uma disputa política, e se é uma disputa há muitas infiltrações – as vezes vemos coisas com as mãos, tocamos peles com os olhos. As palavras são preconceitos, dizia Nietzsche, as coisas também, complementou um Obscuro. A pele é o terreno da errância. E é o país de Eros: porque há pele, as coisas estão em um plano comum (em um p’lano comum, em um f’loor comum). O plano das peles que propicia desejos com outros nomes, compulsões sem etiqueta. Errância – seguir o rastro do erótico. A pele não tem dentro nem fora. Não tem âmago. Não tem essência. Não tem governo e não tem juízo. Por ela se espraiam as nascentes: os impulsos escorregadios.

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martedì 13 agosto 2013

revoada de tarde

Com uma faca de diamante na seca
e um tronco torto como os pensamentos ancestrais
cortei o metal fundido e abri seus lábios
ele cantou louvores claros ao roçado nublado
o barulho de portais galácticos arrombados
de uma só vez partiu a deusarada toda.

Nem eu Prometeu, nem a folha desalmada
me prometeu um caminho sem vestígios.
Mas eu vi a picada.

sabato 3 agosto 2013

O andarilho pelo plateau

Hoje estive andando como andarilho pelo eixo rodoviário sul, Brasília. De pouco antes das 7 até pouco depois das 8 entre a 16 e a 2. Encontrei gravetos, cigarros, camisinhas, anúncios de aulas de hieróglifos e muitos carros. Levei cachaça e água.

O Andarilho no Plano

Plano geral: o andarilho anda pela faixa central do eixo rodoviário do final da asa sul ao final da asa norte com um saco de pano a tiracolo. Camera dentro de um carro em zig-zag, entra no eixo, sai do eixo pela agulhinha, volta pela tesourinha etc. Microfone de bolso no andarilho. O andarilho para as vezes, tira uma toalha de chão do saco de pano e serve uma garrafa térmica e uns biscoitos Maria.

Texto

Um andarilho no plano.
Carrega uma trouxa verde. Traz suas coisas com ele, as coisas que vêm com ele, que não ficam pelo caminho, aquilo que lhe importa. Ele chega. Está chegando. Pisando neste plano. Chegando nesta encruzilhada.
O andarilho não sou eu, ele é um intruso, e também eu sou um intruso nele. Ele me assola. Ele me encontra. Eu topo com ele porque ele deixa raspas, restos, pistas, no meu corpo, que se move por esse plano. Ele está chegando. O plano é uma encruzilhada. Como a encruzilhada do que existe. Imensa.
Que lugar é esse? Que lugar é esse onde tudo o que existe chega? Onde o que existe está – onde o que acontece tem lugar? Um chão. Tudo que tem lugar, tem lugar em um chão – em um endereço, ainda que seja feito apenas de letras e números. Uma encruzilhada de endereços. Uma encruzilhada de chãos. Onde tudo pode ser encontrado - o bloco de apartamentos, o apartamento, o morador que procura pela cozinha alguma coisa para colocar na boca, a bactéria que vive no chão da língua do morador, a outra bactéria que vive na membrana das células da primeira bactéria e que agora se agarra a um cisco, ínfimo e que, talvez, não ame. Todos são andarilhos nesta encruzilhada. Todos existem de alguma maneira porque estão em algum lugar nela. Todos, andarilhos. Todos homens do saco: andarilho eu, andarilho você, andarilhos em carros, em rodas, em pneus, na borracha dos pneus. Andarilhos, mesmo os que não andam porque estar em um lugar existindo de alguma forma, é estar neste plano aberto, exposto ao céu, exposto aos infinitos elementos. Estar exposto. Perambular por sobre o risco deste horizonte aberto. Este plano sem cobertura que é coberto apenas por um céu azul que não cobre porque não é céu e nem é azul. Neste horizonte em que nada é protegido. Nada é coberto. Nada é especialmente protegido. Nem sequer nós de nós mesmos, até às nossas fúrias, nossas próprias fúrias, até à ela estamos expostos. Existir é estar em uma encruzilhada. A encruzilhada dos existentes, a encruzilhada do que existe. Do que existe também. Porque existir é coexistir. Ser é estar em companhia. (Do que mais seja).
No aberto. No horizonte aberto. O aberto é o que deixa entrar. Deixar entrar significa recolher, acolher. Deixar entrar é hospitalidade, hospitalidade silenciosa, uma encruzilhada que não fala; mesmo as cidades muradas, mesmo as fortalezas e as guaritas estão abertas e em silêncio. Porque estão no chão e abaixo do céu – expostas à linha do horizonte. São contamináveis. São infectáveis. Estão à disposição. Pela linha do horizonte sempre podem entrar os forasteiros – os bárbaros, os ratos, os vermes, os mascarados, os refugiados, os visigodos, as moscas, os sarracenos, os turcos, os bacilos, os terroristas. A linha do horizonte – do horizonte da encruzilhada dos existentes – não tem guarita. E tem muitas porteiras. Cada coisa que existe tem as chaves de muitas delas – e pode trazer a tona muitas outras coisas. Cada coisa que há tem chaves para este cofre – cada coisa pode dar lugar a muitas coisas. Tudo o que existe tem vizinhos. Porque existir é coexistir. Não está imune a nada já que basta que alguma coisa adentre este horizonte para estar aqui dentro – dentre as coisas que existem.
De muitas maneiras. De muitas maneiras as coisas existem. Os barulhos, o medo, os corpos, os carros, os volantes, os freios, as pistas, os desvios, a velocidade, o imaginário, o pó, o noumenal. Tudo o que existe, existe de um modo. Mas todos correm riscos – o risco é o interior mesmo desta encruzilhada. O risco está dentro do plano, dentro da pista, está no corpo do andarilho. Eu corro risco. Eu ando no risco. Eu perambulo pelo risco, pé ante pé. Existir é estar na ponta dos dedos.
Um andarilho se apossou de mim quando eu vi este horizonte. Ele me apareceu já morto com seu saco verde nas costas. O andarilho me disse: vá até a encruzilhada – até a grande encruzilhada. Vá pelo caminho estreito, o caminho aberto mas estreito. A estrada de todos os propósitos. Estar na encruzilhada por um mandamento, ou uma compulsão, ou uma escolha. Uma voz que vem de alguma parte do aberto. De alguma parte.
Os caminhos precisam ser abertos. E continuar abertos. Os caminhos que estão marcados no chão. Pelos caminhos alguma coisa pode ser encontrada. O andarilho anda – topa com as coisas, encontra. Tudo o que há pode ser encontrado. Chegar em um lugar onde há alguma coisa, onde alguma coisa tem lugar. Um andarilho não procura, ele anda. Ele não é movido pelo que ele busca, pela necessidade, pela falta. Ele produz um caminho. Ele abre um caminho.
Grita na rua a sabedoria
Nas encruzilhadas, nas pistas, nas ruas
Ela levanta a sua voz: até quando vocês vão amar a necessidade?
O andarilho abro um caminho, mesmo naqueles caminhos já abertos. Andando eu deixo os caminhos abertos. Andar é estar a disposição. Com toda a atenção de quem olha por onde anda.
Insolência, mesmo indolente, insolência.
Andarilhos trazem coisas nas suas trouxas. Têm suas companhias de caminho. Tem seus artefatos. Pequenos artefatos coletados, talismãs, amuletos, escaravelhos, conchas do mar, abridores de horizonte, abridores de latas, observadores do céu, cavadores de chão, fundamentos, estilingues, canivetes. Eles podem fugir porque podem andar. Não procuram. Andam.
Por isso eu ando. E ando a espera. A espera do último longo êxtase desleixado. Eu espero e eu encontro.
É assim que se espera um Messias. Um salvador. Uma segunda vinda. Uma última das vindas. Tudo o que encontramos pode ser um Messias. Há em tudo o que é encontrado uma messianicidade – do tamanho de alguma encruzilhada na encruzilhada de todas as coisas. Um objeto que eu encontro, pode me salvar de alguma coisa. Encontro pão, encontro água, encontro abrigo, encontro o seu afeto, o seu prato de comida, a sua hospitalidade, a tapioca que me ofereces, o café que me dás. Por vezes guardo as coisas no meu saco porque elas podem me servir depois. Ela podem me salvar não sei ainda de que riscos. Meu saco está cheio de messianicidade. Cheio do que eu já encontrei em outros chãos. Andar é encontrar. E se há um risco no interior de tudo o que há pela encruzilhada, há também uma salvação – não uma proteção, mas uma salvação. Cada instante requer um messias. Nem pode um messias que existe salvar alguma coisa a ponto de deixa-la a salvo de todo o resto e para sempre. O todo é aberto. O todo não pode ser trancado. O todo está exposto a tudo. Está sujeito a tudo. E o horizonte não se fecha, quem fecha o horizonte não está mais na encruzilhada – não é do tipo do que existe. Quem me trouxer a imunidade a tudo, me tira da encruzilhada. Tudo está na comunidade do risco. A messianicidade é o cuidado das coisas, um cuidado que não é aquele da segurança ou da proteção, é o cuidado da atenção. De quem olha por onde anda. De quem abriga. Ela vem de onde vem a hospitalidade deste plano aberto. O plano por onde passa tudo.
Tudo é lucidez e tudo absinto. (uma garrafa)
Estar jogado em uma encruzilhada, em uma encruzilhada existencial.
Há por toda parte elementos avulsos, ao léu. Existem espaços à toa no meio de toda ordem – meus olhos encontram estes pontos de fuga.
Eu perdi o amor pelas coisas com nomes. Prefiro os becos, os espaços entre as palavras, as entrelinhas.
Por que nos confortamos com os acontecimentos que recebem nomes (é doença, é roubo, é desmando)? Não fica menos sofrido porque a doença tem nome ou a opressão já foi diagnosticada. Mas as palavras prontas nos consolam quando queremos alguma coisa de mármore em meio às borbulhas do rio. Pelejar pelos bois soltos é abrir outras porteiras, desnomear as coisas pelo menos para que haja mais andarilhos e menos admiradores de estátuas.
O mundo não pode ser abreviado em parte alguma, nem numa coreografia de transformações, nem numa estratégia de combate, nem numa coleção de ordenamentos e menos ainda em um princípio universal de todas as coisas.
Há no mundo muitos pedaços que não se rendem a coisa alguma – nem à água, nem ao fogo, nem à terra, nem ao ar e nem a qualquer elemento da tabela periódica. E estes pedaços aparecem por toda parte. Não se rendem, mas infectam.
É que a encruzilhada não tem constituição, nem tem leis o horizonte, tem talvez muitos retalhos de leis, casuísmos, jurisprudências antagônicas, códigos em conflito. E é a encruzilhada que ama esconder-se entre os retalhos.
Já eu não sou mais que ponte.
No meio das coisas.
No meio.
No centro do eixo: uma personagem? Um andarilho.
Eu ando, eu encontro. Eu encontro carros, eu encontro pistas, eu encontro pedaços do chão. Encontrar uma coisa não é apenas encontrar uma descrição dela. É encontrar um horizonte aberto, algo que pode ser salvo de sua descrição. Algo que pode sair de sua órbita, como um astro desastrado, fora da estrela. Na natureza das coisas todas as órbitas desviam. É que as órbitas, como as descrições, são virtuais. É que delas também as coisas fogem. Tudo está no risco. À beira do acidente. À beira do horizonte de saída – por onde saímos de cena. As descrições são o que nos prende a um roteiro – não encontramos descrições. Nem o motorista descuidado, nem o andarilho incauto, nem o patrão insistente, nem o trabalhador explorado, nem o cobrador do ônibus, nem o germe me infectou. Encontramos tudo tendo um lugar, cada coisa aberta e exposta aos riscos: isto, este, aquele, ela, aquela, aquela que está ali. Apenas um lugar no meio da encruzilhada existencial das coisas. Encontráveis. Por onde eu posso andar. Já que existir é coexistir.
Encontrar.
Apenas as personagens do teatro aparecem para nós como descrições. Protegidas de nós. Imunes a todo o resto. O palco é um outro espaço. Ele sim está protegido: transcende à encruzilhada. O palco é um outro plano, não como este estendido sobre o horizonte existencial, mas planejado, como um plano piloto, como um mapa do plano piloto. No palco há apenas as descrições: caracterizações. Impersonificadas. O que é um palco? É um emaranhado de descrições impersonificadas – é um emaranhado, mas se emaranha estranhamente conosco. Um palco é um espaço outro – escravo de um roteiro, de um autor que embaralha as cartas. Um andarilho, descrito e impersonificado. Mesmo os andarilhos do passado nunca viveram na imunidade de um palco. Eles poderiam sempre ter escapado, parado, poderiam ter sido atropelados, enterrados. Poderiam ter parado de andar. Eles não cumpriam ordens de um único autor. Eles foram obra coletiva. No palco, há o autor – e um jogo de espelhos. No palco, há o autor no princípio e no meio e no fim. Fora dele, estamos a mercê da salvação, da encruzilhada e da messianicidade. E o Messias não pode ser autor já que existir é coexistir.
O homem do saco não é um autor.
O andarilho anda pelo seu plano, pelo seu eixo, pela sua pista. Solto.
Pessoa. Impersonificado.
Solto. Quando saímos soltos pela rua, nós fragmentamos o palco em cacos, espalhamos este espaço especial pela encruzilhada. Eu faço uma coisa existir – fora do espaço seguro, fora das bolhas de plástico, fora dos laboratórios, fora dos palcos.
Solta. No aberto.
No plano, na encruzilhada. Largada.
Eu – solto no horizonte.




giovedì 1 agosto 2013

Desejar o que não vive

"Veillir : la vie commence à m'oublier; la mort, à me reconnaître" Jabès, Le Livre de l'Hospitalité

Envelhecer, olhar o chão.
Ser tocado nos ossos pela solidez das coisas:
elas me rasgam, me quebram, me deformam.
Meu nódo norte: parado, imóvel.
Esquecer os corpos que trepam, que trepidam e
lembrar toda hora de devorar, engolir, deglutir
o inanimado.
Ele começa a ocupar meu pensamento ocupando seus temas
e a ocupar minhas pulsões sintonizando meus tubos digestivos.
A matéria mais bruta me tenta.
A intrepidez do que fica parado,
de um barco ancorado, de uma substância sentada.
O longo adeus: num lampejo, o vento bate em meus cabelos
com a audácia de sempre, e revolve minhas tripas -
desejar o que não vive.




mercoledì 31 luglio 2013

Cena 1 do roteiro de videodança sobre ftonosofia

O texto aparecerá na VIS editada pela Soraia Silva. Escrevi com Carol Barreiro.

Cena 1:
Alpendre. Lá está o primeiro anjo, gordo, com uma roupa de terreiro e com um sorriso de quem deitou-se na rede o dia todo. Ele abre os braços, se alonga com demora e, sorrindo, murmura:

ANJO: Ai que preguiça. Preguiça do amor bom. Preguiça do amor tributável. Preguiça do amor que admira sem arrancar pedaço. Preguiça do amor que é caridade e não dilaceração.

O anjo deita na rede vermelha, trançada, cheia de óleos esparramados e, com a voz de uma heresia gnóstica cáustica:

ANJO: Eu sempre amei essa coisa disforme, fugidia, levada, precária, indisciplinada, transformista, safada e violenta que é a sabedoria.

O anjo se balança na rede enquanto levanta as pernas roçando uma na outra. Aparecem agora apenas suas pernas, seus braços do lado de fora da rede vermelha. Aparecem cinco pernas, cinco braços rodando por cima da rede como um carrossel – o anjo agora é um Nataraja cheio de blasfêmia e de lascívia.
E sua voz é mais distante, como uma sombra:

ANJO: Eu procurei a audácia e com ela tive filhos.

A primeira foi Kakia, a maldade, a que abre descendência para a errância, para a imperfeição, para o mal-comportado – sem elas não vale a pena gerar nada. Ela veste uma saia branca, transparente e um casaco azul ou verde, um casaco de jogging com listras brancas. Ela salta por cima da rede do anjo que segue rodando suas pernas e braços como um carrossel. Kakia não tem fronteiras, seu corpo é uma porta aberta e ela vaga como se seus dedos tocassem facilmente o céu e o piso.
Depois vem Zelos, o zelo. Zelos veste as cores da terra – como um bufão elegante, com detalhes dourados em seus ombros. Ele bate com a ponta dos dedos na cabeça de Kakia, na cabeça do Anjo Nataraja, na sua própria cabeça.
Depois entra Ftono:

FTONO: Não me basta ser eu. Tenho uma ânsia de fome de carne por tudo o que é alheio. Eu não tenho âmago. Tenho ciúmes de vocês todos, desde antes de vocês nascerem. Eu sou a vítima e o carrasco, eu sou o vampiro do meu próprio coração. Héautontimeroumenos!

Ftono pula corda com as outras duas, Erinnys, a fúria, e Epithymia, a luxúria. Os três filhos mais jovens da audácia. De longe aparece Pina Bausch correndo desde fora do enquadramento, corre com determinação e abraça Ftono, Erinnys e Epithymia de uma só vez. A corda que eles pulavam se entrelaça entre eles, passando pelas pernas de Epithymia, pela dorso de Ftono, pelas ancas de Erinnys e pelo quadril de Pina. Pina repete:

PINA BAUSCH: Tudo pode ser considerado pelo avesso, tudo pode ser considerado do avesso, tudo pode ser considerado do avesso, tudo pode ser considerado do avesso.

Ftono tem ciúmes do modo como Epithymia roça seus dedos em Pina. O anjo voa. Erinnys se retira correndo, Epythymia e Pina se deitam na rede vazia. Ftono fica balançando a rede. O pensador de Rodin surge da casa e se senta na mesa do alpendre. Ele não se move, apenas pensa:

RODIN: O ridículo nos engole como crianças.