Visualizzazioni totali

giovedì 15 settembre 2016

Erotex e Dyonisina

Meu texto para o evento de amanhã no MAR
Erotex e Dyonisina:
amor e sexualidade na farmácia contemporânea
Hilan Bensusan


Sim, há o alarido. Eu escuto barulhos. Pessoas gargalhando, convulsões, compulsões, pessoas gemendo. De perto, parece alguma coisa contagiante, um rio que arrasta as bordas com ele. De longe, dos quilômetros incontáveis que um consultório tem da coisa, eles parecem um surto, ou uma condição, ou uma pulsação do corpo, ou um caso. De perto, é coisa que está na medida de quem ri, de quem geme, de quem ri e geme ou de quem acompanha o contágio. O contágio é assunto de intensidades: para quem geme ou ri, não há terceira pessoa que contempla o excitante e o engraçado. Não há um vão entre o erótico e o corpo, entre o dionisíaco e o corpo, eles estão lado a lado, perto. É certo que Eros e Dyonisos são afeitos às máscaras, a tirar roupas quando querem, a se esconder na moita quando precisam, a provocar fingimentos – Eros e Dyonisos, são como toda physis e tem disfarces e esconderijos: kriptestai philei, como disse Heráclito. As máscaras também gemem e gargalham, porque suas caras gemem e gargalham. De longe, elas são episódios da história do corpo. De longe, quantos quilômetros? Na lonjura de um consultório, mesmo de um consultório cheio de gemidos e gargalhadas. Que perto é esse? Que lonjura é essa? O rio que arrasta as bordas com ele não é o rio do mapa – talvez seja apenas o rio da minha aldeia – mas seria possível fazer um mapa de cada pedaço de borda que é arrastado por cada pedaço do rio, mesmo que ele nunca seja o mesmo duas vezes, basta que alguma aproximação de repetição possa ser detectada. Um mapa não precisa que haja permanência, basta a ele focar em um ponto fixo – e ele alavanca uma permanência. Se permanência não há, ele consegue inventá-la. De longe, mais longe que qualquer distância perto por perto, todo corpo tem uma anatomia. E toda anatomia guarda destino.

Sim, há o alarido: anatomia é destino – o DNA que rege órgão por órgão, a coisa epigenética que rege superfície por superfície, os hormônios que regem cutícula por cutícula. O corpo erotizado e o corpo divertido tem anatomias. Anatomias que cabem em mapas. Eros e Dyonisos, se amam esconder-se, se escondem nas entranhas das anatomias, nas suas concavidades, nos seus segredos e secreções. Onde quer que eles se escondam, se eles estão em algum lugar do mapa da anatomia, eles estão embrenhados no meandro dos fatos. É um meandro tortuoso, turbulento, movediço, truculento, mas é um meandro dos fatos. Fatos podem ser encontrados, contemplados, descritos – ainda que eles escapem das nossas mãos pois eles são feitos do que é feita a descrição de uma terceira pessoa que, já não de perto, os contempla. Se Eros e Dyonisos se embrenham no meio dos fatos, eles estão em algum lugar e fazem alguma coisa – estão disponíveis para serem relatados em um boletim de ocorrência; ou como se diz mais frequentemente, seu paradeiro pode ser descoberto já que responde a… questões de fato. Eles não estão enroscados em situações, em gestos, em momentos, e nem sequer em ritmos, em badaladas, em baladas – eles são questões de fato. Há algum lugar dentro da cartografia dos fatos em que eles ficam: Eros e Dyonisos, junto dos neurônios, trepados sobre os hormônios, como um demônio que, dizem as más línguas, mora lá longe e trabalha e chacoalha no trem da central. Eros e Dyonisos anatomizados, cartografados. Anatomia é destino; há fatos anatômicos e é por isso que eles carregam o destino, trata-se de fado, de estar fadado. O fato não é apenas o que passou, é o que passou e que vai continuar passando porque fatos enfatuam, deixam as coisas enfatuadas. Os meandros dos fatos enfatuam Eros e Dyonisos, eles passam a ter endereço certo e assim ficam à disposição. Quanto à cultura contemporânea de Eros e Dyonisos, ela é fatista. A cultura contemporânea é a farmácia contemporânea. Ou, pelo menos, a porta de entrada da farmácia.

[tirando o jaleco] Mas é muito agressivo falar de fatos. É como comparecer ao encontro dos deuses ou dos vermes, dos pedidos, dos imaginados e dos futuros contingentes sempre armado. Não seria melhor ir de mãos vazias? [bota o jaleco]

Sim, há um alarido. Eu escuto. Parece uma coisa, uma coisa muito perto e ao mesmo tempo sem lugar certo. Alguma coisa fora dos fatos, alguma nódoa. Como um Eros que não está fadado, um Dyonisos que não é uma questão de fato, uma sombra como se a vida, o prazer e o gozo pudessem ser outra coisa, uma coisa, como uma coisa que morre e que leva para o chão o que carrega um rio que arrasta suas bordas com ele. Já no tempo do fatismo, não há outra cultura e nem outra farmácia senão a contemporânea – a história é a história dos fatos; ou então a história da descoberta dos fatos. Os hormônios e neurônios sempre foram o endereço de Eros, Dyonisos. Só que Eros visto de perto cega, é preciso que entre em cena um consultório, um observatório de fatos, para que ele já não possa mais se esconder quando bem entender. Só que Dyonisos misturado na embriaguez pode dar no pé como um Zé Pilintra, é preciso que ele possa ser posto em fatos, dissecado em reações inexoráveis. O tempo fatista procura puxar o fio de um inexorável; por as coisas em um nexo em que elas não possam sair – Jabés escreveu que um sábio dizia que uma necessidade leva sempre a uma outra necessidade. É de fatos acerca da anatomia que é feito todo Eros, todo Dyonisos. E há alaridos, alaridos de perto, como os últimos dos vaga-lumes que Pasolini uma vez escreveu que desapareciam da Itália. Seu desaparecimento significou o fim de qualquer outra Lebensformen, ele usa a palavra de Wittgenstein, que se contrapusesse ao fascismo – como se subitamente em algum momento de uma arqueologia do que é contemporâneo – que ele encontra em algum ponto da primeira metade dos anos 1960 – o fascismo tivesse se tornado inexorável, não mais como uma máscara, mas como uma anatomia.

Heidegger escreveu na terceira das conferências do seu Einblick in was das ist acerca daquilo que procura fazer com que as coisas estejam sempre à mostra. Aquilo que não deixa que elas se escondam ainda que mantivessem sempre um vão com quem as trata – um Abstand. Trata-se de um impulso de perseguir as coisas, de torná-las cativas, controladas. Quem está perseguido, está em perigo. O perigo é regime do ser que prepondera diante de uma pulsão posicionadora, de um arranjo, de um dispositivo. O ser é aquele que está perseguido, como Eros e Dyonisos postos a se embrenharem nos meandros dos fatos. Ele começa assim: Das Ge-Stell bestellt den Bestand. O que poderia ser: o dispositivo dispõe (d)a disponibilidade. Alguma coisa, uma coisa?, dispõe a disponibilidade, dispõe que é talvez fazer uso, ocupar, poder des-por, poder imperar como um déspota – ter prevalência. Dispõe também é instaurar – como quando uma lei dispõe – faz com que seja, promove um começo. Dispor é assim comandar alguma coisa, e começar alguma coisa. Um parente insuspeito da arché – governo e origem. A disponibilidade é aquilo que pode ou não ocorrer, o que está disponível é o que está posto para jogo, o que está à disposição. Entre uma potência e sua atualização há um vão, o vão da disponibilidade, para que algo venha e faça ou não a atualização. Entre a coisa e sua coisação – como diz Heidegger, com sua expressão de que a coisa coisa – há um Abstand. É nele que pode haver uma interferência de quem dispõe, de quem pode dispor. Porém quem dispõe a disponibilidade? O dispositivo, Ge-Stell. Aquilo que está disponível é como um recurso, algo que pode ser usado já que está guardado – como Eros e Dyonisos no endereço certo, prontos para uso. Assim, o erótico e o dionisíaco estão armazenados nos meandros de fatos que compõem o corpo – e se estão, são como recursos, prontos para serem postos em atividade, prontos para o trabalho, en-ergeia, o termo de Aristóteles para ato: em serviço. Corpos, vistos pela anatomia, são recursos e é dessa maneira que neles há o erótico e o dionisíaco. Uma vez que os recursos podem ser encontrados, já há, segundo Heidegger, um dispositivo uma vez que o que virou recurso já está à disposição, controlado, governado, domesticado e fora do âmbito em que a coisa coisa – do âmbito do rio que arrasta as bordas com ele. É assim Ge-Stell: o dispositivo que dispõe dos recursos. Não ainda o dispositivo, mas sua essência, aquilo que torna-o possível.

Já que a cultura contemporânea é cada vez mais a farmácia contemporânea, e é um fatismo que a molda, os humores, as atrações, as excitações e os prazeres do corpo são cada vez mais recursos para dispositivos. A anatomia é talvez o corpo-Ge-Stell. A farmácia contemporânea é para onde se transferiram, como em uma campanha de remoção de favelas para construir bairros com endereços certos, os estados de espírito, as disposições do corpo e também os géneros. Sim, o trabalho de Paul B. Preciado sugere que a diferença sexual ela mesma é farmacológica. A experiência trans é empurrada para uma quadro fatista – por exemplo: um fato é que eu sou uma mulher em um corpo de homem, como poderia ser um catador de lixo com roupa de consultório (ou de laboratório). Empurrada assim, a experiência trans pode ser monitorada por profissionais – os entendidos dos fatos – e é uma questão de acesso aos recursos. Dito de outra maneira, ela é empurrada para a farmácia contemporânea, junto com Eros e Dyonisos. A cultura? Ela é algo imaterial, dizem. Como por exemplo
o vapor / a fumaça
que é aspergido / que exala
dos frascos / dos defumadores
nessa sala. E o que exala? Pois precisamente Eros e Dyonisos; na forma de anti-depressivos, estrogênio e viagra. Eles dispõem de uma disponibilidade nos meandros dos corpos aqui presentes. E eles são o que são – e vendidos nas farmácias contemporâneas de toda esquina – por causa do fatismo que rege sobre Eros e Dyonisos. E é assim que tratamos a nós mesmos cada vez mais: fazemos com que a coisa coise, controlamos os nossos corpos porque nossos corpos estão controláveis, estão à disposição – nós os governamos, mas apenas porque eles são tidos como governáveis. Quem governa os corpos governáveis? Talvez quem exale / aspirja as proporções de Eros e Dyonisos inseridos no ar.

[tirando o jaleco] Mas nem sempre esses dispositivos vem inteiros, em uma peça só, como uma substância aristotélica feita tanto de matéria como de forma. Nas farmácias contemporâneas eu entendo que os anti-depressivos, o estrogênio e o viagra vem embalados em caixas e dentro delas vem uma bula – uma posologia. Porém nos lixões contemporâneos, nos aterros sanitários contemporâneos, nos esgotos contemporâneos, eles vem em pedaços – matéria já desprovida de forma. Ali um pedaço de maçã apodrece com um anti-depressivo, uma cerveja choca dissolve um estrogênio, uma poça de água dilui um viagra. Os dispositivos se tornam ali uma materialidade; uma materialidade ela mesma disponível mas que não alcança a disponibilidade de coisa alguma – é como um dispositivo sem anatomia, sem mapa, sem eira nem beira. Um dispositivo sem posição. E ali, a cultura contemporânea se torna uma constituinte de corpos que são afetados, mas sem tê-los à disposição. O lixo é o nada contemporâneo, porque os fatos ali se tornam o completamente outro do recurso, o avesso do disponível, o rejeitado, o entulho que é colocado à disposição do desaparecimento. E como completamente outro do recurso, também está disposto porém sem endereço certo, sem posologia, sem mapa. Estamira não encontra fatos no lixão, esbarra quem sabe com o avesso dos fatos – ela navega pelo escorregadio das gambiarras já que é como se o chorume produzisse o avesso das condições normais dos laboratórios. Estamira não trabalha com condições ceteris paribus. Achar um pedaço de pílula no lixão é encontrar também o avesso da farmácia contemporânea; nada está a disposição para aquele dispositivo sem posição. E no entanto, sem caixa, sem plástico, sem forma definida, a matéria fica perto – desprovida da distância e, mais ainda, da lonjura do sem-distância de Ge-Stell. Aqui a pílula simplesmente pilula, o pedaço se despedaça, o solúvel se dissolve e a coisa coisa.

O corpo da anatomia é um recurso. Está à disposição. A farmácia contemporânea o explora com seus dispositivos, e assim o patrocina como recurso. Não se trata de deixar o corpo corpar como a coisa coisa, já que há fatos acerca deles aos quais se deve atender – atender aos fatos dos corpos. Atender ao que há de pronto nele e que se acopla ao resto do mundo sem mesmo a intervenção de um qualquer poder de escapar do seu próprio corpo; fato é fado, anatomia é destino. Há uma verdade nos fatos do corpo que pode ser capturada. Se ela for, ela já prescinde de qualquer senhorio que se esforce para domar o corpo uma vez que o corpo mesmo já fica inteiramente governável, à disposição do senhorio, mas sem nada de pessoal que o conecte ao senhorio pois ao invés do corpo estar à mercê do senhorio ele fica à disposição. Como um recurso. O que Heidegger quer com seu diagnóstico acerca do dispositivo? É certo que ele quer anunciar a época do ser em que ele está em perigo, em que ser é ser perseguido. Emmanuel Faye, em seu esforço por associar Heidegger à introdução do nazismo na filosofia, o contrapõe à um pensamento que não perde de vista a dignidade humana. E Faye faz uso precisamente da terceira conferência do Einblick in was das ist, apropriadamente chamada Die Gefahr – O perigo –, para apontar para o modo como Heidegger fala do Lager utilizando a expressão 'fabricação de cadáveres', como se em Birkenau não houvessem pessoas que morrem, mas apenas corpos que desaparecem. Heidegger escreve que no Lager há verenden mas não sterben, termina-se mas não se morre. E ele escreve procurando a essência da morte (como a da dor e da pobreza) – algo que faça da morte uma coisa que coisa. No tempo em que o ser é ser perseguido, a morte ela mesma se transforma em um recurso. E é certo que Heidegger contrapõe a isso não a dignidade humana, mas a coisa que coisa no corpo, sua verdade que não está em fatos capturáveis, mas em sua capacidade de se desenrolar a si mesmo.

Talvez como no lixo onde as coisas se entulham e por isso se aproximam, gostaria de lembrar de um veredicto dado uma vez por Hans-Jürgen Syberberg no seu filme sobre Hitler. Ele dizia que Hitler havia vencido – na Blitzkrieg de corações e mentes. O que poderia significar essa vitória? Penso em um outro filme, de dois anos antes, de Pasolini: Saló. Na república de Saló, o último bastião do fascismo fascista, os corpos eram inteiramente colocados à disposição. Havia os senhores, sombrios ainda que histriónicos, e haviam corpos – os déspotas eram como os dispositivos. Não posso afirmar – que coisa se pode afirmar no lixo? - que a vitória de Hitler é uma vitória de Ge-Stell, ou dos dispositivos. Talvez seja uma vitória de um par opositor: o corpo anatómico à disposição de um lado, o corpo solto de qualquer fato do outro – o corpo mapeado de um lado, o corpo próximo do outro. Nos dois elementos do par, há uma verdade no corpo, uma verdade da qual se pode aproximar ou cartografando ou deixando que ela floresça e, assim, carregue as bordas de seu rio com ela. O corpo se ocupa em ser.

Em Quelques réflexions sur la philosophie de l'hitlerisme, escrito em 1934, Levinas associa a filosofia do hitlerismo à prevalência do corpo. Não se trata mais, ele escreve, de que a vida de um agente humano se separe do seu corpo e possa manter com ele uma distância que permita uma decisão, mas o agente se torna não um refém mas um entusiasta e um intensificador, ou um exaltador das verdades do seu corpo. O agente é aquele que decide propagar sua verdade já que sua verdade é sua. (Um pouco como os tantos advogados dos fatos, entusiastas dos fatos que não hesitam em fazer uso deles para terminar qualquer discussão.) O hitlerismo segundo Levinas é a tese de que no corpo – no sangue, na comunidade do solo – há verdades, e há que se ser fiel ao ser. Se trata, como ele escreve anos depois em um pós-escrito, de uma possibilidade que a filosofia ocidental não fez o suficiente para barrar e que se inscreve na prevalência do ser. Há alguma coisa no corpo que é próprio e suficiente, e que de alguma forma demanda um espaço para si, um lugar ao sol – como um recurso que precisa ser utilizado ou guardado ou como uma coisa que precisa ser deixada livre para coisar. Há no corpo uma trama da primazia daquilo que é. [bota o jaleco]

Ouço o alarido todo. Eros e Dyonisos tem uma verdade – uma verdade que está no corpo, nas suas potências, nas suas capacidades, nas suas confabulações. Talvez a contraposição de Heidegger entre a proximidade e a cartografia – entre a coisa que coisa e Ge-Stell – se insira em uma batalha contra o ocidente contemporâneo que Heidegger enxergava no hitlerismo. Na cultura contemporânea – que é cada vez mais a farmácia contemporânea e que é um fascismo fatista – é como dispositivo que aparecem Eros e Dyonisos. Porém eles não se escondem muito bem nos meandros dos fatos – eles deixam marcas em outros lugares por onde eles ficam sendo perseguidos. Deixam alaridos. É que eles não gostam do fastio da escassez que rondam os fatos, do miudinho, dos cercamentos – eles são patrícios da abundância. Perseguidos, eles parecem pandas em cativeiro, incapazes de se acender e desafiando os dispositivos – administram viagra nos pandas, filmam pornografias com os pandas e projetam nas telas dos zoológicos para eles porque eles não se excitam em cativeiro. Die Gefahr, Die Gefahr: escrevi uma vez que o erótico é o avesso do medo. O dionisíaco é talvez o avesso do dispositivo. Mas o que é esse avesso? Eros é filho do expediência. Ele não é algo de próprio e recôndito, é algo que ocorre no contato. Dyonisos é amigo do descontrole. Ele opera nas multidões, no contágio e reside talvez nas garrafas de vinho, mas em nenhuma molécula em particular.

[tirando o jaleco] Nos depósitos de lixo, eu encontro marcas de Eros e Dyonisos como os últimos vaga-lumes. Pasolini fala de um fascismo inexorável e sem precedentes que sucedeu ao fascismo democrata-cristão e o fascismo fascista: um fascismo que não é mais representação através de gesto que agradam os caudilhos, mas corpos à disposição dos caudilhos – como na Repubblica di Saló. Já não há mais outras luzes, não há mais outra forma de vida recôndita. É assim a era da farmácia contemporânea: de um fascismo fatista. No entanto, em “Amor no Lixão”, parte do Breviário de Pornografia Esquizotrans que escrevi com Fabiane Borges, a personagem que vai procurar Eros no depósito de lixo diz: nunca deixei de achar que lixo é relíquia dos exageros. O lixão aparece como um espaço de composição, de gambiarra, de bricolagem e por isso de êxtase. Não é a promiscuidade do lixo, mas a invocação – não o chorume, mas o vento quente de que fala Sappho. Mais que no contágio, talvez os vaga-lumes estejam nos pedidos. O cheiro do lixo se impõe, Eros e Dyonisos tentam. Eros e Dyonisos são agentes da sedução, da saída do caminho, da abundância que se contrapõe à agenda de cada um que se ocupa com um quinhão de ser. Eles tentam. Eros e Dyonisos, feitos de tentação, são interrupções. Se há algum vaga-lume cintilando por meio dos fatismos, é o da interrupção, de uma convocação, de um pedido. Agamben uma vez pensou na potencialidade em termos do que podia Akhmatova quando ela dizia que não tinha capacidade de escrever um poema para uma causa – não tinha dentro dela essa capacidade, essa potencialidade, e é por isso que o faria. O pedido invoca a expediência e a expediência é não é feita do que é feita os fatos, é feita do que provoca os fatos. Os vaga-lumes não estão no mapa, mas há tramas que rasgam o mapa.