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venerdì 31 maggio 2013

decido confessar tudo

Giro de parada em parada
não encontro a veia do mármore, nem a veia do Lethes
mas encontro ar.

mais ar, mais ar, mais ar
tua pele é macia, me diz a moça,
teus ossos ainda não se entregaram aos elementos,
ele fala, com as mãos deslizando nas minhas costas
no meio da noite

decido confessar tudo: sou errado e voraz
mas meu erro consome minha voracidade
ao invés de faze-la ficar abusada
minha voz nunca chegou no meu pescoço
nem desceu pelos meus chacras
nem deslizou pelas minhas vísceras
estrangeiro e devorador, de carne viva e de bruços.

corro na emergência do hospital
já que não consigo mais respirar
eles me dão uma pílula
já não paro mais.

lunedì 27 maggio 2013

futuro fortuito

passo a madrugada orando em um santuário inventado
aos prantos, e sem nada senão uma fé sem conceitos,
a intuição de uma deusa da sorte, que rege o que encontra e não quem procura
cega, muda
nem eu sei onde fica sua morada, ou sua biblioteca,
sonâmbulo, eu olho o pequeno, eu olho as estrelas que clareiam;
encontrar um futuro, entrego meu esqueleto ao chão
um bicho me pica no calcanhar,
é evidente que o que não tem nome subverte

mercoledì 22 maggio 2013

Ontologia do gingado (bruto!)

Pequenos acidentes da matéria
por exemplo, as genitálias.

A matéria, ela anti-social,
sozinha, desinteressada, descrente, sem ânsias
e, ainda assim, nunca completamente sideral.

Ela, domadora de tudo o que arrebita
das quinas, das quinas, dos cones.

Vejam, estes pequenos acidentes da matéria,
por exemplo, a voz.

A matéria pare e para.

Ela tem um gingado que vem do fundo do poço
cheio de mais matéria,
mais pequenos acidentes.

Um suplício: toda sua extensão lânguida
oferecida ao meu alcance
e escorregadia por toda a minha vida
em que só lhe toco a pele.

Meus pequenos acidentes da matéria
consomem meu corpo de sede
à beira de um lago Tântalo
de águas de flor de laranjeiras,
de cerejas, de rosas em pétalas.

E ela esvai, densa, tesuda, atávica,
amando esconder-se e vestida de noite,
esvoaçante, carnuda, letal, esquecida
- a fêmea de todas as esquivas.

martedì 14 maggio 2013

Nanomanias - os delírios do pequeno e os pequenos delírios (o texto para a ação de quinta feira)



Nanomanias:
os pequenos delírios e os delírios do pequeno
Hilan Bensusan

Ai meu Deus, o que está me pinicando? O que está me fazendo coçar? Toda esta coceira, todas estas coisas miúdas, invisíveis, que fogem dos olhos e me pinicam, me arrepiam. Elas me controlam, controlam o movimento da minha mão, preenchem meus poros, infectam minha língua, se abrigam no meu nariz, ocupam o espaço debaixo das minhas unhas. Quem são? Quem vive dentro de mim? Quem espreita pelos meus olhos? Quem se abriga nos meus pelos? Que orgias de micromachos e microfêmeas, de homúnculos, de femúnculas, que nanobacanais têm lugar a cada segundo nas minhas carnes? Sou transportadora de bicho-do-pé, e mais, de bicho-da-tripa, da-língua, da-barba, da bochecha, de micróbio, de microfungo, de microflora, de partícula – sou um veículo, uma malha rodoviária ambulante. E, no entanto, são esses demônios minúsculos que me carregam, que me manobram, eu sou um habitat para elas, sou sua paisagem, sua biosfera, seu nicho. Sou títere desta classe política em miniatura. Você também, cheio de vales e becos e morros e países que se formam e se dissolvem a cada suspiro. Olha a Dilmícula! O microobama, o sarney virando sarna... E todas estes nanodéspotas todo-poderosos, partículas de deuses, deusóns, fazem questão de insinuar toda hora que são eles que me governam. E me impelem a coçar. Uma compulsão. Uma convulsão. É esta minha coceira que não para. São eles, os pequenos déspotas, me dizendo que estão aqui. Que comandam meus ímpetos, meus impulsos, meus humores. Dizem que são os espíritos animais. E eles coçam. Pinicam. Sempre tem uma partícula solta rondando minha vizinhança. Eu achei que era o chifrudo. O pequeno lúcifer. O demônio. Demons. Daimons.

Vim para a universidade tentar curar minha nanomania. Tentar parar com este tique de coçar. Era tique, me disseram. Ou era TOC. Tique ou TOC. TOC ou Tique. Transtorno obsessivo-compulsivo. Ou um tique. A cada segundo um novo tique. E quando cheguei aqui me explicaram: há coisas maiores, eis da natureza, planetas e galáxias, há Gaia superpovoada, mas para explicar como as coisas são mesmo, no seu substrato, temos que olhar para dentro delas, mais para dentro, mais para dentro, mais para dentro, até chegar nos neutrons, nos quarks, no bóson de Higgs, que compõe a harmonia das partículas e nos elude: a partícula de Deus – arredia e poderosa, ou talvez apenas trapaceira. De todo modo, presente no íntimo, no mais recôndito dos fóruns, nas cavidades mais profundas, dentro do dentro do dentro. O piloto de tudo. Curvei-me a este bóson. Reverenciei com minhas organelas, com meus corpúsculos, com minhas vísceras ajoelhadas esse bóson, o início e o fim de todo esse adentramento interminável: aquela pedra que não tem porta. Mas minha coceira não parou. TOC? Tique? Outro tique? Alguma coisa continuava me pinicando. E esse bóson tão divino não tem também suas glândulas, suas válculas, suas clavículas, suas partículas, como homúnculos que tem homúnculos que tem homúnculos? Feynman já dizia há anos que há muito espaço lá embaixo. Cabem bósons nos bósons. Coceira. Eu me coço. Decidi não me ajoelhar e me tornar a própria Tripa do Bóson, o Cisco do Quark, este Profeta das Grandezas do Ínfimo, que se coça. Uma nanomania. Tentaram me internar, me levar mais para dentro, para dentro, onde os olhos não chegam, onde as mãos não ousam tocar. Mas eu escapo, aprendi com os bósons. Delirar com o pequeno não é mais do que um pequeno delírio. Todo mundo tem suas delicadezas, suas miudezas, sua sutileza, sua alteza. Sua beleza interior. Quer ver?

*

Coça. Tudo coça. Pinica. São esses bichos microescrotos que fixaram residência em minhas dobras, em minha pele, em minhas tripas, em meus beiços, dentro do meu nariz, nos meus cabelos. Eles me impelem a me arranhar, a me unhar, a me roçar. Compulsivos. Convulsivos. Melhor lavar as mãos. Alguém tem uma bacia? Gosto quando minhas mãos estão limpas, a gente nunca sabe onde toca. Dizem que os indianos comem com uma mão e limpam o cú com a outra. Cada mão tem seu microambiente, eu prefiro assim, mas ai, quando cruzo as mãos, é um encontro de microculturas. E tem mais, tocamos a cara em média 2 a 3 vezes por minuto. Da mão pra cara, da cara pra mão – do cu pra cara, da cara pro cu. Transportadora de bicho. Da mão pra cara... TOC? Tiques, tiques, tiques. E de tique em TOC, os contágios chegam. Melhor ler uma carta de Tiny Tarot [lê carta, tira outra, lê outra...]. Dentro de mim moram trilhões de arcanos maiores, dentro deles arcanos menores, e menores, e menores, homúnculos-reis, rainhas, sacerdotizas, loucos, eremitas, micro-enforcados... Tudo o que disserem as cartas ressoa em alguma parte da minha microbiota – e da microbiota da minha microbiota. De perto, nada está errado já que cada verdade está composta de montanhas de mentiras. De dentro, tudo é diferente do que aparece de fora. Minha cara ou minha predileção por tomates amarelos não parece uma espiral, mas talvez esteja tudo lá, na espiral de DNA, tudo, comprimido e condensado, e talvez requerendo apenas um expediente de tradução – ah, a tradução também depende de outras minúcias, de outras enxurradas em minuatura – mas nem elas parecem com meu gosto por azeitonas (as miudinhas). Dentro de um rei tem um enforcado, dentro de um enforcado uma sacerdotisa, dentro dela uma torre, uma estrela, uma lua. Somos todas colecionadores de destinos em miniaturas, de oráculos que roçam em outros oráculos, de componentes intrusos. Nossas manivelas são giradas por populações de sais, de cristais, de elementais. Por alianças demoníacas em pequena escala, acopladas a sociedades de células, a precárias diplomacias de imigração e de contrabando.

De dentro, tudo pode ser diferente. Eddington, há quase noventa anos atrás, falava que, diante de uma mesa, estava diante de duas: a mesa substancial e a mesa científica. A segunda mesa é feita de nacos menores que qualquer naco de madeira, é quase vazia e contém partículas sem cor, sem cheiro e insossas ao roçar de uma língua. Na segunda mesa não há nada de sólido, nada que tenha a forma de mesa, nada de substancial. Eddington aludia a nanomania de ver na mesa substancial uma população de partículas errantes. Mas é certo que não há apenas duas mesas, nem três, nem quatro. Mas há um foco de cada vez. A micromesa, por exemplo, é feita do que está dentro da mesa em suas partes 10-6 vezes menores. A nanomesa de partes 10-9 menores. A picomesa de partes 10-12 menores. A femtomesa de partes 10-15 menores. A atomesa de partes 10-18 menores. A zeptomesa de partes 10-21 menores. A yoctomesa de partes 10-24 menores. E as outras multidões de mesa, uma cabendo dentro da outra como matryoshkas encalacradas. Mas as mesas não se parecem – elas ficam menos substanciais a cada mergulho no mais ínfimo, mais estranhas, mais irreconhecíveis, menos mesas. Há um sentido em que elas não estão todas aqui ao mesmo tempo, que ninguém as pode espionar todas de uma vez. Elas habitam os dentros – não mais como as matryoshkas que podem ser enfileiradas uma do lado da outra, como se elas formassem uma paisagem composta de partes independentes que foi arranjada de modo a estarem uma dentro da outra, mas como roupas vestidas uma sobre a outra: impossível vê-las todas vestidas, ainda que possamos vê-las todas no armário. É que o que está dentro, o que está escondido, chegando mais perto, perdemos o que está mais longe. Duas mesas, diz Eddington. Muitas mesas. Heráclito, renascido por um delírio anarqueológico recente, diz no seu fragmento 204:

Se estamos em um exercício de voyerismo das coisas (mesmas), como parece que tanta gente anda pensando, essas coisas também agem decidindo o que permitirão que seja visto. Raramente as coisas são apenas espionadas. Elas estão em uma sala de onde as vemos, mas elas estão fazendo um peep-show. Elas decidem como as vemos – e vão para casa depois do horário de trabalho.

Quando se vê o bóson, já não se vê os micróbios que eles constituem e nem a madeira em que habitam. Para ver por dentro é preciso entrar – quando se entra, não se fica do lado de fora. Estar em qualquer lugar, mesmo para um olho, é estar em um lugar particular, como estar em uma encruzilhada onde há um horizonte – qualquer olho só vê até onde vai a vista, até onde vai o foco, todo o resto fica aturdido, fica indistinto, como as brumas para além do horizonte, como a noite. Para focar em alguma coisa, é preciso deixar indistinto todo o resto – pomos os olhos em tudo, pomos os olhos no que está para além do que conseguimos focar, mas não vemos nada no que vemos. O ínfimo também ama esconder-se – esconde-se às vezes no imenso. O ínfimo se fantasia, mas a fantasia é que faz com que o ínfimo, disfarçando seu íntimo, apareça, fantasiado, ao olho nu.

As mesas de Eddington – e as tantas outras – são diferentes entre si. Nada lembra uma mesa na aparência microscópica dos quarks recônditos nela. Toda coisa é revestida de outra – os aglomerados de populações picoscópicas transvestem-se em corpúsculos nanoscópicos muito diferentes. Trata-se de uma tectônica do pequeno que pulsa as diferenças dos grandes. Mas por vezes o pequeno prefigura o que compõe. Assim com os pequenos insetos que flutuam pelos fluidos dos insetos macroscópicos – ácaros parecem mosquitos, vermes parecem lagartas. As vezes as coisas se pré-produzem em miniaturas. TOC? Uma vez em um desfiladeiro no cerrado encontrei um barranco cercado de flores cor-de-laranja e no meio delas uma poça de água, profunda. Como sou Cisco do Quark, profeta de miudezas, deitei na grama e comecei a colher da água, das folhas dos aguapés em minhas garrafas em miniatura. Ao meu lado, em uma expedição de curiosos pelos becos naturais, um especialista em paineiras em pátios de escolas começou a me contou do trabalho de Rebeca Viana no Jalapão. Ela levou lupas e microscópios, Tripa do Bóson, até as comunidades de artesãos que trabalham com estas plantas. E ele me contava do que viram nas imagens de dentro destes materiais aqueles artesãos. Eu enchendo vidros e vidros de porções de água do barranco, e ele me contando do que viram eles nos interstícios daquele material. Eles enxergaram nos meandros das fibras do capim dourado seus vasos, seus pratos, seus potes, suas mandalas, suas cestas. As formas estavam lá prefiguradas. Ou assim eu imaginei quando cheguei a boca do microscópio com minhas águas de barranco e nelas vi pequenos percevejos, pequenos animalejos, pequenos caranguejos e no meio deles uma sereia cercada de nanoxuns. As coisas se repetem – recapitulam suas formas. O recapitulacionismo é um antigo delírio do retorno: Kielmeyer, Oken, Cuvier, Schelling, Haeckel, Geoffroy St. Hilaire, Goethe, formas vivas recapitulam seus cristais formadores, estados dos embriões recapitulam estágios passados da história da espécie, homúnculos prefiguram as províncias dos humanos, corpos recapitulam protoplasmas, toda a natureza recapitula o germe primário de Novalis, rochas recapitulam microorganismos, células recapitulam átomos, nebulosas recapitulam águias e tarântulas. A longa história dos retornos – micróbios parodiam planetas. O micro-mundo, insubstancial, insinua o calibre da substância.

Eis a nanomania do mundo em miniatura. As miniaturas são leves, condensadas e portáteis. Como as maquetes. Como os mapas dobrados dos grandes territórios das cidades. Vila-Matas escreveu uma história abreviada do delírio da portabilidade: levar dentro de uma valise, como fazia Marcel Duchamp, toda a sua obra, todo o seu universo. Abreviar – esta é a nanomania que mais coça. De tudo isso que há, vastos espaços, cheios de tantos tipos de coisas, e com tantos reentrâncias e protuberâncias em cada uma delas, há que haver algumas poucas que carregam o ônus de fazer tudo acontecer. Há que se achar a coleção certa de miniaturas. Reduzir a uns poucos objetos, eventos, princípios e forças todos os outros. Encontrar as partículas que, como uma mônada esquisita, coordenam e animam todos os ímpetos, toda a patuscada. O gosto pela miniatura das miniaturas – pelo bojo do dentro, pela última das matryoshkas. Encontrar o gene que miniaturiza meu gosto pelos tomates amarelos. Encontrar o vírus que coordena meus humores, meus espirros, meus sintomas. Ou encontrar a partícula que faz as coisas existirem, o existon, ou o realitón. Encontrar o átomo dos átomos – a pedra filosofal em tamanho ínfimo, o graalon. O ponto final. Um ingrediente indivisível que não tenha tripas, não tenha cisco, não tenha caspa, não tenha interior. Um interior sem interior: um á-tomo. Sem TOC. Sem convulsão. Uma partícula que não se coce.

Ao àtomo se contrapõe a mônada e os infinitesimais. Os infinitesimais são formados de outros infinitesimais como uma matryoshka atualmente infinita. São partículas que não podem ser expostas em uma paisagem finita já que dentro dos infinitesimais há outros infinitesimais, são miniaturas com miniaturas dentro – tudo é como uma gosma: tudo tem partes. As mônadas, por sua vez, são indivisíveis. Mas elas se encontram por toda parte, elas se proliferam no infinitesimal. Leibniz procurou um modo de associar as mônadas aos pontos – se eles são infinitos para formar um ponto. Decidiu que elas não são espaciais, elas governam o espaço; elas não são materiais, elas governam a matéria. Não há nenhuma porção de matéria, por menor que seja, que não esteja repleta destas enteléquias. Elas governam um departamento em aliança com as mônadas que governam partes daquele departamento. Microsuseranos e nanovassalos, nanosuseranos e picovassalos, uma coceira interminável. Os corpos estão cheios de corpúsculos, cada qual com uma alma que tece alianças com as almúsculas. A alma governa o corpo com as almúsculas, o corpo expressa as almúsculas com seus corpúsculos que, por sua vez, estão cheios de departamentos de outras enteléquias. Ein sof. É como se minhas sarnas tivessem também suas sarnas, que também tivessem suas sarnas. Nós, sarnas de Gaia. Eu, o planeta de muitas populações superpoviadas, de muitos governos gerais com muitos governos locais, todos em uma orquestra – e Leibniz dizia: em uma harmonia pré-estabelecida, já que cada enteléquia governa em consonância com todas as outras e ao lado da nanomania, uma megalomania: o melhor de todos os mundos possíveis. O mundo sendo criado por inteiro, dobra por dobra, delírio por delírio, governo por governo. Num mundo hiperlotado, foi assim que Leibniz conseguiu exorcizar o desgoverno das alianças feitas de outras alianças feitas de outras alianças. É feita de alianças as partes das alianças: o substrato é mais substância. A matéria se dissolve em infinitas almúsculas, em enteléquias com territórios infinitesimais.

A vida é também um delírio do pequeno. Aquilo que forma a vida – pequeno, na escala do 10-8, na escala das moléculas de adenina, guanina, citosina e timina. Nada pode ser menor do que isso e estar vivo. A vida tem seus ingredientes atômicos, eles não cabem em um bóson, em um neutrino, em um quark. Nem no cisco do quark. O delírio da inteligência também é pequeno – do tamanho de uma midichlorian que traz A Força. As midichlorians se acumulam para trazer a força: atravessar o espaço sideral, em uma guerra nas estrelas, em busca de partículas. Nas órbitas dos planetas – e de todas as coisas que os imitam – há a vizinhança da nanomania epicurista. As clinamens: os desvios. Os átomos, diz Lucrécio, se desviam minimamente de suas órbitas, um desvio imperceptível, um desvio infinitesimal, um impacto do ínfimo sobre todo imenso. As clinamens ocorrem talvez porque as repetições – como as trajetórias – encontram sempre um meio diferente onde elas tem lugar. Elas não acontecem no vácuo, mas em um lugar onde há outras partículas, em outras órbitas, em outras trajetórias. Existir é coincidir – é medir forças com o que mais há. E, assim, nenhuma trajetória resiste ao desvio. A clinamen é o delírio do pequeno dos epicuristas: se não fosse pelo desvio, nada de novo jamais surgiria no universo. O ímpeto do novo é também o delírio do pequeno. Os pequenos deslocamentos. Apenas as 3000 vezes que levo minha mão à cara. Os microTOCs. Os nanotiques. É neles que aparece alguma coisa nova. Solta. As solturas se produzem dobra por dobra, empurrão por empurrão. A vastidão do novo começa com um desvio, com uma repetição mal-feita, como uma mensagem distorcida em uma sequência como de telefone-sem-fio.

O delírio do pequeno é também um horror ao vasto vácuo – um horror aos becos baldios, as paragens inabitadas, aos silêncios. Os delírios começam com os silêncios – quando as vozes desaparecem, quando os sons não se escutam. É a vontade de povoar as terras vazias, de soar pelos silêncios. É o pequeno delírio da expressão, que é também o delírio do desvio, da distorção, do pequeno deslocamento sobre as órbitas traçadas. Eu passo meus anos olhando pelos pequenos buracos. Desde pequeno aprendi a fazer um pequeno orifício de luz entre os meus dedos dobrados e desenhava com o feixe de luz órbitas. Aquelas órbitas girando me entretinham e me acalmavam – eu esperava os pequenos desvios, esperava, escondido em um pequeno beco na saída do esgoto da escola, sentado e olhando para as órbitas entre os meus dedos. Ali, longe dos olhos macroscópicos das outras pessoas e olhando as magnitudes do objeto pequeno a que se desenhava, eu me inseria em um autismo em que horas se passavam mesmo em quinze minutos. O pequeno me hipnotizou. Eu pensava que queria trazer meus amigos para dentro dos meus olhos, mas as palavras eram grandes demais para os pequenos desvios que eu só via de soslaio, eu só via pelo rabo de um delírio. Fernand Deligny, que passou anos ao lado de autistas e nanomaníacos dizia: e se nós fossemos o que temos que aprender, os que temos que aprender a calar na língua deles... Os pequenos barulhos... O pequeno normalmente se ouve apenas quando aparece em grandes quantidades – como os desvios constituindo a órbita, a repetição destorcida instituindo a diferença, os bósons constituindo uma mesa substancial. Pequenos são os grunhidos, os pequenos barulhos, os microruídos e os monossílabos que por vezes abreviam enormes amontoados de palavras. Os grunhidos também tem seus ritmos, nanoritmos em miniatura. E as batidas – pequenas – se amontoam em ritmos. Os ritmos que se distorcem através das batidas avulsas. O agora. Esta coceira. O tempo também tem seus desertos, suas abundâncias, suas proliferações e suas microscopias. Ele também tem suas infecções. O tempo de coçar. Um instante cabe em um outro instante, nanosegundos, picosegundos, trizes... e não tem fim para o agora. Quando esta coceira vai parar?





domenica 12 maggio 2013

Manifesto a uma escola que não existe


Esta é a versão do manisfesto da escola de Brasília que lançamos na última quarta no fim do FIFI. Sugestões bem-vindas.

Manifesto da Escola de Brasília
À uma escola que não há

(Falta uma citação de Nicolas Behr)

A Escola de Brasília não existe. Nem pretende existir. E, não obstante, ela pensa, perambula, mostra os dentes, gargareja. Ela é menos que uma semi-existência lusco-fusca, mas que fica à sombra de um estado de coisas em que a filosofia é tomada como produto importado defunto. A Escola de Brasília não opina que a filosofia seja um produto (se bem que ela tenha produtos) e menos ainda que ela seja importada – ela cresce no mato – e muito menos ainda que ela seja defunta – ela germina, ainda que suas primeiras folhas as vezes pareçam folhas de plástico.  A Escola de Brasília, não-existência, é uma resistência. (E também uma insistência e uma abertura para a desistência).


Ela não esquece que a filosofia tem histórias. E marcas. E cicatrizes. E reflexos condicionados. Mas tenta tratar estes vestígios de muitas maneiras diferentes – reverenciá-los, sim, mas também retocá-los, escamoteá-los, escondê-los, esquecê-los, coçá-los, maquiá-los, diluí-los. É que a Escola acalenta começos. O que começa não é decerto tabula rasa – tem filiação, genótipo, ancestralidade – e, no entanto, nasce com alguma leveza. A Escola acredita que a filosofia se reinventa a cada gesto, a cada ato, a cada obra.


A filosofia não tem forma fixa – ela não é um gênero, ela faz gênero já que é do tipo das coisas que pairam, que vagam, que buscam sempre seu corpo.  A filosofia é feita por eixos monumentais, pavimentados, sinalizados, iluminados; mas também por picadas no cerrado, estradas de chão, atalhos, becos. É certo que ela se banha em tradição – e por isso a Escola de Brasília quer a multiplicação dos cânones: que eles se proliferem, que germinem e frutifiquem. É preciso que se encontre outros cânones, e outros e ainda outros – que se invente novos, que se  forje tradições. O pensamento precisa poder inaugurar uma cidade em um planalto a cada sinapse. A Escola está afiliada ao gesto de inaugurar. Ela torce pela filosofia que abre caminhos, que se reinventa e que é fiel a suas histórias futuras.


A Escola de Brasília não é uma disseminação indiscriminada de iconoclastia. A equiparação de todos os valores por uma escala esquálida lhe interessa pouco. Que fiquem abertas as portas – sobretudo para quem examina, com qualquer grau de subserviência, os fios soltos das tradições estabelecidas. No entanto, merece atenção o ímpeto da filosofia de germinar gêneros. A filosofia tem esse ar de desbravamento, o ar daquilo que ainda não tem contornos porque não foi ainda pensado com todas as letras. A filosofia é um amontoado de problemas, causas, aporias, perplexidades, desequilíbrios, atritos, situações-limites, especulações, tormentas e espantos que ainda não têm endereço certo.


A Escola de Brasília é avessa ao auto-apagamento diante das autoridades da filosofia – e assim também avessa a herdarmos dos personagens canônicos os interditos, as artimanhas e o sotaque para nossas empreitadas filosóficas. Ela quer, antes, cultivar a ousadia de quem tenta viver em um aglomerado urbano sem esquinas, sem nomes de rua, sem passado. Ela aposta na coragem de quem cultiva um afeto por esta coisa fugidia, disforme, precária, indisciplinada e transformista que é a sabedoria.


Tampouco pode a filosofia ter pretensões à pureza. Ela se imiscui, se adentra, invade os terrenos que não são seus e, em câmbio, é constantemente contaminada, infectada, assombrada por outras preocupações e outros ritmos. A filosofia é também exercício de acoplamento. A Escola de Brasília quer vê-la impura, contagiada, cheia de nódoas e marcas que venham dos bueiros por onde ela se rastejou. Proclamamos o direito da filosofia de estar manchada de sua proveniência na política, nas etnografias, na física, na taxonomia, na anatomia, no cinema, na álgebra, na dança ou nas histórias contadas. Não há nenhum padrão de auto-suficiência a ser almejado – a filosofia não é independente de todo o resto, mas depende de todo o resto já que permeia tudo.


A filosofia, declara a Escola de Brasília, habita nos meandros. E porque os vestígios de sua impureza não podem ser apagadas, a filosofia não pode se tornar um método algorítmico e menos ainda uma atividade profissional bem-definida sem que seja expurgada de algumas de suas partes centrais. O disciplinamento da filosofia só é possível se a substituirmos por um arremedo, por um Ersatz que deixe de fora os elementos arredios que, no entanto, fazem o viço mesmo da empreitada. Pureza e disciplinaridade só podem ser alcançadas a um custo que a Escola conclama que não se pague.


Como uma Escola que não existe, a Escola de Brasília contrasta com aquilo que existe – e, se existisse, seria ser o completamente outro. Não uma instituição, não uma disciplina, nem um modo de vida – mas um gesto. Sem a universidade, sem os departamentos de filosofia como eles são hoje, e como eles são hoje no Brasil, não seria possível uma definição (resistente - insistente - desistente) da Escola. É que a Escola, não existindo, habita os vales das ribanceiras da filosofia profissional.  (A Escola de Brasília propõe-se resgatar a autoralidade da filosofia num país onde ela é não apenas desencorajada, mas declarada impossível e arrogante quem a tenta. Sim ao experimentalismo de estilos e pensares num ambiente onde pensar por si mesmo está fora de qualquer projeto subsidiado, onde o projeto é, pelo contrário, jamais ser autor).


Ninguém é da Escola de Brasília o tempo todo – já que o nada não pode ser tudo. Ninguém é canibal, (iconoclasta, pederasta), acadêmico, tributável ou fútil 24 horas por dia. Nem nós, pedaços de inexistência que assinam pela Escola. Nossa inexistência é cortesia das universidades que existem – a Escola inexiste academicamente, e gosta disso. É uma inexistência pour autrui. Os outros lhe concedem seu nada. Provisoriamente. Na Escola só há temporários, aqueles que em suas horas vagas encontram alguma maneira sonora de insistir em tudo aquilo que a universidade poderia ter sido e não foi. O não-ser permeia também os planos como aqueles que tentaram outras universidades, outros departamentos, outros ensinos de filosofia. A Escola de Brasília não dá diplomas


A Escola de Brasília se insere no princípio do século XXI e é herdeira dos movimentos de reconstrução e desconstrução da filosofia que aconteceram nos últimos séculos. Ela entende que os caminhos ficaram abertos para grandes empreitadas do pensamento – tal como advoga a presente virada especulativa que não se peja de buscar inspiração na literatura fantástica, de Lovecraft à Reza Nigarestani, e quer extender o benefício até Samuel Rawett. A Escola de Brasília é uma escola do cerrado, que aprende a subsistência com a seca, e responde na chuva, florescendo pensamento multiforme. Porque se situa num ecossistema único e devedor de outros, também únicos, que o alimentam; também o cerrado, por sua vez, produz subsistência e abundância, excesso para outros ambientes.


Situada, a Escola pode ser encontrada em todas as latitudes e longitudes onde se possa perambular em Brasília (tesourinhas, bueiros, pistões, quadras, eixos, estradas-parques). Ama as pausas do concreto, os espaços abertos, os terrenos baldios, as propriedades em disputa, tudo o que não está ainda construído, onde possa abrigar-se; também ama os becos e subsolos, os cobocós, e aquelas trilhas que insistem em indicar que há outros caminhos que não as poucas e quebradas calçadas pois é nas fissuras e imprevistos que tem alguma chance de surgir. Surge onde há brecha para insurgir.


Inexistente, não cessa de pulsar e espernear, engendrando subjuntivos entre o passado ensaiado e o futuro repetido. Precária, da cabeça aos pés, o que poderia ensinar? Estilos de pensamento, os errôneos, os erráticos, os que erradicam o bom-senso institucionalizado. A Escola de Brasília quer ser um avatar contra a miudeza da profissionalização da filosofia para garantir sua pluralidade, sua abertura, sua amplitude e sua incorrigível cacofonia.



Addendum ao já bastante inexistente


A Escola de Brasília não é nova, não está nascendo agora; já faz tempo que ela vem não existindo, que alastra insistentemente a sua teimosa não existência. Muita filosofia foi não produzida nesse tempo, amparada na dimensão desistente da Escola de Brasília; pois nem tudo o que é pensável se deixa legar.

Mas os possíveis - embora improváveis - membros da Escola de Brasília não precisam mostrar credenciais de produtividade; entrando na Escola, não terão que fazer absolutamente nada que já não façam em suas vidas filosóficas corriqueiras. Não entram eles na Escola de Brasília, mas a Escola de Brasília entra neles. O que eles fizerem em filosofia será já, ipso facto, obra da Escola. Todos seus futuros movimentos pensantes serão automaticamente gestos e atitudes da tal Escola. A Escola não organizará cursos, seminários, encontros, congressos, simposios, aulas magistrais ou saraus filosóficos. Mas, apesar disso, se mostrará evidente, com o passar do tempo, que desde sempre pertencemos à uma Escola que não existe.