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lunedì 19 dicembre 2016

oui, c'est la force

Dias correndo pelos corredores,
atravancados de livros, cachos de
cabelo, árvores de natal empacotadas,
cimento.

O quarto de Cortès, minúsculo,
e com uma janela para os campos
e os montes
e os deuses. O quarto de Achebe
que é banheiro, que é cozinha
e que cheira o bafo das coisas
antes dos pacotes.
O quarto de Trump ao lado de uma
ante-sala onde vivia Chamberlain;
automático e com um botão dourado
em cima da mesa ao lado da canapé.
Não há violência sem hospitalidade.
Não há força sem concessão.

sabato 17 dicembre 2016

Me deixar entender

Deve ser sobre zumbidos sumidos
tic-tac-tic-tac, no tempo dos outros.

No entanto o ofício das palavras é colocar cada um dos pedaços de trilho para o trem passar
e depois mudar de rota.

Ana Lama

Um dos da inauguração da Galeria Ana Lama embaixo da calçada da Sé, Lisboa:

Alguns traços anarqueológicos e lamarqueológicos de
Ana Lama em Londres, Brighton, Bruxelas e Calais

Preliminares metodológicas
O passado é um emaranhado de datas; as datas tem por natureza entulharem-se umas sobre as outras – as farsas se amontoam sobre as tragédias, as ordens constituídas se amontoam sobre os eventos constituintes. O passado, porém, é também outrora, uma outra hora, já que o tempo é sempre o que interrompe as presente e o que traz alguma coisa à presença. O passado arqueológico é o passado das datas: épocas, eras, idades. Assim também é o passado geológico que faz das camadas do chão um arquivo de sedimentações que registra sucessões, simultaneidade e ritmos. O passado anarqueológico é um passado alheio às datas, a anarqueologia estuda um tempo sem atentar ao tempo anterior e ao tempo que lhe segue. O passado anarqueológico é um passado feito de marcas e não feito antes das marcas – assim, ele é como uma assombração, como um ramo da espectrologia, atávica, virtual e também reinventado a cada aparição. O passado lamarqueológico é também alheio às eras; na lama o chão tem menos gramática expositiva, já que os traços na lama se embrenham e toda catábase é dissolução. O passado da lamarqueologia não se data, é o passado não da história, mas das histórias que contamos uns aos outros e onde o Chluthluceno de Donna Haraway se ergue em uma anábase no centro de gravidade do antropoceno. A lama é o chão onde a sedimentação se dissolve, onde as épocas se contemporanizam. De um ponto de vista anarqueológico e lamarqueológico, não falaremos de datas; talvez apenas de uma vez que era ou de outra vez que era.

Um dos elementos que distinguem a anarqueologia da arqueologia é portanto o tratamento da datação e um dos elementos que distinguem a lamarqueologia da geologia é o tratamento das eras, épocas e idades. O estudo do passado recente de Ana Lama se presta a esta metodologia porque todo intento de datar suas possíveis passagens por Londres, Brighton, Bruxelas e Calais se mostraram tanto pouco frutíferas quanto um pouco fictícias. Não podemos estabelecer – e isso apela a uma metodologia anarqueológica e lamarqueológica – o que veio antes, o que veio durante e o que ainda vem. Ademais, Ana Lama parece ter estado convencida por muito tempo que os efeitos de seus gestos se espalham de uma maneira e fabricar contemporaneidades onde antes haviam apenas badaladas sucessivas de relógios feitos de eventos e contratempos. E não havia como separar seus atos de seus efeitos. Está estabelecido que Ana Lama teria desaparecido oficialmente em 2015; porém é claro para a anarqueologia e a lamarqueologia que o estudo de seus traços se limite aos que estejam datados para além desse ano; seu desaparecimento deixou marcas em todo o seu trabalho curatorial já que ela se ocupou de espalhar invisibilidade. Ana Lama precisava que seus gestos contra-normais que entendia como cosmeresias fossem o mais distante possíveis da teatricalidade das galerias e palcos, e também das datas marcadas. Para ela, a arte possível era a arte absorvida e o trompe d'oeuil possível é aquele que mescla quem vê e quem pousa para ser visto – o outrora teria que estar absorvido naquilo que sempre vemos. Quando fez a orelha de Van Gogh e Gente que desconheço, talvez em 2011 ou 2016 ou em 2018, interessava-lhe o exercício de absorver pela escuta, ainda que produzindo o gesto insólito; a hospitalidade deve fazer a normalidade se tornar atípica, incomoda, impossível e, ao mesmo tempo, quem hospeda está em sua casa, está em si mesmo, suporta o peso de estar presente como aquilo que absorve. Ainda que presente, Ana Lama estava já desaparecida – pelo menos desaparecida dos anos que se repetem como ladainhas de calendário, um após e o outro e cada um seguindo à risca o anterior.

Duas iniciativas VRP
As vulnerabilidade radical pura (VRP) de Ana Lama a teriam levado em direção ao seu desaparecimento – como desaparecem com poucos traços os refugiados, os clandestinos, os ilegais; quantos além de Ana Lama desapareceram em Calais? Ana Lama conseguiu se tornar uma destas fugitivas que fogem e refogem, que ficam fugidos e refugidos. Não entregou seus papéis a milhares de albanesas, sudanesas, afegãs e líbias, mas trocou com eles a invisibilidade – para que alguém possa ser visto, é preciso que alguém deixe de ser visto. Ela trocou visibilidade por clandestinidade; que ela, portuguesa, egressa de Goldsmiths, curadora fique invisível e não a síria que nem faz performance como performance e nem faz instalação como instalação. Essa iniciativa de Ana Lama chamamos de 1in1out. Trata-se de poder dizer aos poderes que instituem os estados: se é possível conceder apenas a alguns tantos as vossas cidadanias, se alguns saem outros podem entrar. Outros podem ser os franceses que esperam o Beaujolais de fim de outono ou os ingleses que bebem chá com torrada e feijão. Outros podem ser os teus cidadãos e outros podem ter aquilo que é meu que só é meu se eu puder alienar. Pensar que a cidadania é um direito que só pode ser meu se eu puder fazer dele um abrigo, algo que pode receber um outro – como minha casa, meu ouvido ou meu tempo. Ana Lama encontrou uma maneira de alienar cidadania – direito não pode ser inalienável, inalienável é uma condenação.

Acreditamos que por meio de 1in1out Ana Lama conseguiu dar cidadania a 100 novos franceses e a 100 novos ingleses sem retirar de ninguém suas identidades. Para descobrir como ela procedeu, estamos tentando replicar os passos de sua iniciativa. Começamos com uma lista de pessoas dispostas a tornarem-se clandestinas para que outras possam se beneficiar de sua legalidade – pessoas dispostas a entregarem sua cidadania a outros. Ana Lama conseguiu que essa lista fosse considerada por alguma instituição que transferiu a cidadania porém não a identidade para 100 neo-franceses e neo-ingleses e portanto também à 200 neo-sírios, neo-líbios ou neo-sudaneses. Não é claro por que meio ela conseguiu esse sucesso em sua iniciativa, e uma boa parte dos nossos esforços anarqueológicos e lamarqueológicos é encontrar os meandros legais e extra-legais por que passou Ana Lama para conseguir êxito em sua iniciativa. A passagem dos tempos nos campos de refugiados são outroras incontáveis e não sabemos quantas era uma vez passou Ana Lama na jungle de Calais. Sabemos que em muitos lugares de Brighton e Bruxelas se encontram vestígios da iniciativa 1in1out que remete a uma página na internet há pouco ainda ativa e que explica a iniciativa e dá acesso a um formulário para quem quer deixar sua cidadania disponível. Como anarqueólogos, nos apropriamos desta página (os anarqueólogos, como os lamarqueólogos, não procuram preservar seus vestígios, mas fazê-los funcionar, pô-los em ação). Uma vez apropriada essa página, tentamos obter a lista de voluntários através do formulário que ela dá acesso e, em seguida, tentamos obter das autoridades respostas sobre como concretizar a empreitada. Em uma comunicação com a embaixada da Bélgica em Londres

Em uma outra iniciativa, Ana Lama conseguiu um número ainda indeterminado de pessoas dispostas a doar sua cidadania depois de sua morte. O princípio, DonateYourCitizenship, permite que se possa doar cidadania como se doa rins, fígado ou olhos em vida para serem extraídos e transplantados post-mortem. A ideia é precisamente evitar que cidadanias saudáveis possam apodrecer ou desaparecer se podem ser utilizadas por pessoas com cidadanias deficientes. A imagem, como mostram as evidências das campanhas de doação do outros órgãos de que participou Ana Lama, era médica: órgãos saudáveis para pessoas que têm órgãos inabilitados, cidadanias aceitadas para pessoas que têm cidadanias desguarnecedoras. Acreditamos que Ana Lama entendia a cidadania como um órgão e suas materialidades como utensílios. Ela deixava sempre seus passaportes em bibliotecas e livrarias, onde poderiam ser encontrados, carregados como quem faz um shoplifting do que foi objeto de um shopputting e mesmo catalogado pelas autoridades responsáveis pelos livros que assim fazem com que os passaportes possam ser emprestados ou vendidos como pequenos livros úteis em uma viagem. Parece que ela chamava este trabalho algo como o livro que é a melhor nave. Ana Lama fez imprimir cartões de doação como o de Gonca Bahar, que encontramos em Londres no Finnsbury Park, passeando com seu cachorro Mio. Gonca, filha de turca e iraniano e com cidadania britânica, disse que carregava sempre consigo o seguinte cartão:
I donate all my organs including eyes and citizenship