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venerdì 29 novembre 2013

Ter uma voz (sobre umas entrelinhas da Orgia de Pasolini)

Quase tudo é supérfluo. O que escrevemos nas quadros das salas de aula,
o que decoramos, a cara que temos, os entorpecentes (arroz, lágrimas, instintos de sobrevivência).
Folhas caídas no leito do rio dos de repentes (um rio curto, fino e incisivo).
O advento.
Uma ilha superpovoada no meio do mar sem mapa ou então a distração das leis do universo.

Falo do advento com a garganta.
Não aprendi a falar - mas quero aprender a ter uma voz.

venerdì 22 novembre 2013

Quem vai me salvar da salvação?

A vida ela mesma corrói a vida,
Descolore os dias, abafa os anos.

Deus explica aos seus beduínos-que-vêm
porque morrer:
- Para que as horas não fiquem mais fanadas a cada minuto,
já que em cada ponteiro tem um Sinai.

Aqueles que vão chegar aos Novos Minutos,
têm já esquecidos os Egitos.
Toda pompa, luxúria, deleite e aconchego
fazem os grotões federem à míngua,
as abundâncias insuficientes,
as plenitudes parcas.
Mas é o minuto que liberta.




mercoledì 20 novembre 2013

Casar com o poema - e Texto da Monica Udler para o casamento


O casamento.

A pedidos, o texto da Monica Udler para o e meu casamento com O lugar onde temos razão:

- Estamos aqui reunidos para celebrar a união entre estas duas criaturas retro-predestinadas:
Hilan Bensusan, de autoria desconhecida, composto por algum deus nunca antes inventado,
e o poema “O Lugar onde temos Razão”, de autoria bem conhecida, o poeta israelense Yehuda Amihai.
O encontro entre eles dois se deu de uma forma inusitada. Ela, a noiva poema, estava em uma página de jornal e ele do lado de fora do jornal. Foi amor à primeira vista. No entanto, ele a perdeu de vista. E nem sabia que vivia desesperado até encontrá-la novamente, na boca de um quase desconhecido. Resgatou-a para nunca mais largá-la. Sua fotografia esteve todos estes anos na porta de sua sala de trabalho, para que todos a admirassem. E viveu todos estes anos com vontade de desposá-la. Hoje, finalmente, estamos aqui. Para realizar o sonho destes dois pombinhos, pombinhos da mesma espécie que o pombo que trouxe o ramo de oliveira para Noé. O pombo que o trouxe do lugar onde não queremos ter razão. Toda a terra foi arrasada depois que virou um pátio, pisoteado por tantas ideologias e crenças. Mas a tempestade acabou com todas as certezas, acabou com o colo que a razão vinha dar ao homem. Abençoado dilúvio! E abençoado o fim do dilúvio! Cujo término a pomba veio anunciar! E aqui temos estes pombinhos! Que, se os deuses e os desdeuses quiserem, serão os anunciadores de um novo mundo, um mundo de terra fofa, um mundo de sussurros.
Para aqueles que ainda não conhecem a noiva e a noiva, eu os posso apresentar. Não sem antes apresentar-me a mim mesma, sacerdotisa do templo do Sem Nome, aquele que nem de Deus pode ser chamado. Blasfemam aqueles que o chamam de Deus. Que o chamem de transcendência ou de imanência, que o chamem de Ser ou de Nada. Blasfemam aqueles que dêem nome ao Mistério.
[toca meu celular. Levo uma conversa com um interlocutor imaginário, que me chama para oficiar um enterro. Um tratado filosófico teria falecido. Eu nego com gentileza, explicando que estarei comemorando o casamento de Hilan com outro poema.]
- Desculpem! Continuemos então as apresentações e passemos à noiva da esquerda:
Ha makom shebo anu tzodekim.
[a sacerdotisa recita em hebraico o poema]
Voce pode pronunciar o nome da noiva em português, senhora hilan?
[hilan recita em português o poema, de forma lenta, como se as palavras estivessem pegajosas de tanto mel. Recita-as cheio de desejo por elas.]
Agora apresentemos a outra noiva, Hilan Bensusan:
Sua autoria é desconhecida. É um poema com carne, com osso, com cheiros e com sons. Não possui rima e jamais foi analisado por qualquer crítico literário, que nunca o reconheceram sua forma literária. Seu lirismo é tão evidente e público, que escapa à percepção de muitos humanos. Sua poeticidade é literal: o sentido poético de seus gestos e ditos coincide com a facticidade de seus gestos e ditos. E nada nele é livre de nonsense. E por isso nada do que faz é sem sentido. Alguns mitólogos afirmam que nasceu do amor que há entre Deus e o Diabo.
Hilan possui estrofes. Muitas, muitas. Hilan as coleciona. Mas o que separa uma estrofe da outra não são linhas: são abismos. Hilan e suas mil vidas. E quantas mais tem, mais fiel é a sua noiva. E mais pronto se torna para o a vida de casado. Su esquizofrenia sempre foi sua prova de amor pela noiva que aqui está...
Antes de celebrar definitivamente este matrimônio, gostaria de perguntar se alguém aqui tem algo a dizer que impeça que esta união se realize? Tem alguém algo contra este casamento?
... JANINE
RESPOSTA DE CHUANG TZU ....
- Mais alguém tem algo a declarar que desabone esta celebração?
- Eu! [diz uma voz em meio à turba]
- Qual o desabono?
- Hilan já é casado!
- Voce tem certeza disso?
- Tenho.
- Pois então teu desabono não procede. Pois ao casar-se com Bamakomshebô, Hilan divorcia-se de toda certeza.
Algo mais? Mais alguém?
[aguarda-se algum comentário espontâneo da plateia. Improvisa-se a partir do que vier. Ou, caso ningém diga nada, prossegue-se a celebração]

- Hilan Bensusan, aceita ser fiel a tua esposa em todos os momentos de tua vida?
Sim.
- Aceita esforçar-se por nunca pisotear a terra em que pisas?
- Sim.
- Aceita esforçar-te por ser sempre consciente de que tudo é mistério?
- Sim.
- Aceita dar sempre as boas vindas às férteis incertezas?
- Sim.
- Aceita não confundir isso com “não se comprometer com nada”?
- Sim.
- Tem certeza?
Não!
{A sacerdotisa olha para a noiva. E diz:}
- A noiva não gostou desta resposta.
- Mas como se ela mesma ensinou-me a não ter certeza alguma?
(A sacerdotisa vai até a boca da noiva que lhe fala ao ouvido. A sac. volta ao púlpito e diz:}
- A noiva quer te dizer que as certezas também são belas quando são provisórias. Ela pede para que você aceite certezas provisórias de quem brinca de acreditar. Você aceita?
-- Sim.
- Sabes como fazer para comprometer-te com aquilo que fazes?
- Não.
- Tua noiva te aconselhará.
Senhora noiva, podes aconselhá-lo nesse assunto?
[Só a sacerdotisa escuta a noiva, que pede para falar-lhe no ouvido. A sacerdotisa sobe num banquinho e escuta o que diz a noiva. A sacerdotisa volta a seu palanque e diz:]
- A noiva disse que para comprometer-te com o que fazes, sem que tenhas certeza de nada, deves fazer de conta, emular, fingir crer naquilo de que brincas. Aceitas brincar de faz de conta pela vida a fora?
- Sim.
- Aceitas fingir que a vida tem um sentido? Um a cada dia?
- Sim.
- Aceitas assim, descer do muro, e descer da amoreira? Descer da amoreira sem jamais esquecê-la?
- Sim.
- Senhora noiva, promete sempre aconselhares a noiva Hilan nos momentos de muita certeza, nos momentos de muita força e de muita coerência?
A noiva aceita.
- Muito bom. Prometes também paciência quando ele te usar para se isentar? Quando ele colocar a culpa em ti por sua ausência?
A noiva aceita.
- Ótimo. Promete repreendê-lo com doçura quando ele se impacientar e quiser dinamitar casas que são de brinquedo?
A noiva aceita.
- Então eu os declaro Poemante e Poemada. Podem unir vossas estrofes...
[os noivos se beijam.

lunedì 18 novembre 2013

Um adeus à disponibilidade aceleracionista

Corro para terminar de ler e ir para frente da televisão. Me dissipar no oceano de singularidades de estar ouvindo sons, vendo imagens. Ou corro para conversar, para olhar as pétalas rosas da unha-de-vaca da rua, tomar elas na mão, esquecer que a mão é mais minha do que a matéria rosa da pétalas. Ou corro para terminar de fazer uma prova - e assinar - e poder pedalar pelas mangueiras e chupar mangas verdes com gosto de limão. Sempre fugi de ser indivíduo. Sempre me forçaram a isso: tínhamos que ser algo na vida, e ser algo significava ser alguém. Eu tinha que ser um alguém e não antes um amontoado. Um animal individual capaz de fazer promessas, as minhas promessas. Responder pelo meu nome, quando a polícia me chama, quando eu digo que amo, quando eu dou minhas opiniões, quando eu mostro a cara. Fazer de todas as compatibilidades que atravessam as pessoas, instrumentos da vida de pessoas. Separar em cada torrão de casa de pensão humana um indivíduo, e outro, e outro. Ser escolhido, poder escolher - se submeter à escolha, não mais, diz o Reb Ildé de Jabès. Todo um aparato para deixar indivíduos parecerem prontos, como se eles não dependessem de toda uma biopolítica aterrorizante para não se confundirem de novo nas massas, nos entulhos, nas paisagens, nos prazeres sem nome. É que operações, singularidades, acontecimentos e tramas é que aram o chão como uma toupeira. As coisas de que são feitas as vidas das pessoas - que, segregadas, competem para estarem na governança do que as produz, mas nunca estão. Depois, o cuidado de si: ser responsável pela sobrevivência, pelo seu próprio corpo, pelos seus órgãos. Tudo isso fastia e estiola. Se apropriar em um Currículo de tudo o que me aconteceu, de tudo o que alguma parte de mim operou, de tudo em que posso por o nome. Eu fico sendo governante da meu quinhão de mundo. Assim, claro, nada fica desgovernado.

Aceleracionismo. Eu formulo assim: o capital foi um agente revolucionário, há que se aprender com ele a acelerar para destituir, subverter, desconstruir, desintegrar, descristalizar. Há que se aprender com ele, não que se aderir a ele. Aceleracionismo não é crescimento capitalista, nem neoliberalismo, nem comunismo liberal. Marx, no Manifesto, demora-se em dizer como a burguesia mudou a Europa com as armas do capital. Ele destruiu tradições, segue destruindo comunidades, começou a destruir a família, talvez tenha dificuldades em exorcizar o Édipo. Terá dificuldades porque o Édipo, em seu familialismo, é centrípeto. Ele é concentrador. Como o capital quer que seus agentes sejam. O capital, como diz Nick Land, é um agente infeccioso vindo de fora da vida humana conhecida (Costa-Gravas mostra isso em Le Capital.) Sim, mas esta predação depende impreterivelmente dos dispositivos que fabricam indivíduos na forma de pessoas humanas, que os tomam como os agentes últimos de toda ação (de toda política, de toda autoria, de todo gesto, de toda acumulação, de toda riqueza, de toda economia). Ou seja, este é o limite revolucionário do capital: ele precisa de indivíduos, ele precisa de um bolso e de outro, para que o capital flua entre eles. Ele precisa destes pontos, é um fluxo de bolso a bolso. Ou seja, o baluarte de todas as formas de capitalismo é o indivíduo. Terminem com ele - ele é o carrasco. O melhor do que acontece no mundo é alagmático - pré-individual, feito de operações e charmes e conexões soltas feitas por elas mesmas, e não por nós indivíduos (como dizia sobre o erótico Audre Lorde) - ou é de massas - pós-individual, feito de dádivas comunitárias e ações públicas anônimas. O capital zela para que cada coisa destas esteja no quinhão de alguém. Não suporta anonimidade, black blocks, Luther Blisset, pirataria, obra sem autor. A luta biopolítica contra o capital é a luta contra os dispositivos tão cotidianos que patrocinam os indivíduos. Eles se embrenham nas artimanhas do desejo, das vocações, do cuidado, do dom. Contra eles, as singularidades dispersas, comunais, alheias ao que é de quem. As singularidades que são agentes transitórios, passageiros, nômades. Massas, multidões, contaminações. Direito dos miasmas. Acelerar significa desmoronar o indivíduo, desmoronar o concêntrico, desmoronar o bolso. Uma aliança aceleracionista é uma confederação de práticas de economia alternativa, de situacionismo, de anonimidade, de buen vivires, de esquizos contra o indivíduo, feito indivisível pelo fluxo do capital. Este é o território da máquina capitalista: a revolução é o que cria um fluxo mais rápido, aquele entre outros fragmentos, entre um corpos sem donos, entre compatibilidades, disponibilidades, disposições. O aceleracionismo é a vocação da esquizerda: criar campos de ímpeto que passem ao largo das pessoas sacramentadas. Em seu último texto, Deleuze fala de "uma vida...". Nem da vida de alguém (digno de ser preservado, de Riderhood), nem da vida em geral. Nem mesmo precisa o aceleracionismo estar comprometido com a vida, está comprometido com "uma". Uma comunidade de singularidades - uma comunidade qualquer. O comunismo dos episódios soltos... Não prender o capital, correr mais do que ele, de singularidade em singularidade - indiferente aos bolsos, que sempre pareceram grilhões.

venerdì 15 novembre 2013

Com as veias nas coisas


Quero eu também tomar partido pelas coisas. Tomar partido pelo alpendre, pelo engradado, pelo cabo de guarda-chuva quebrado e pelo micro-ondas com um auto-falante dentro. É uma solidariedade gentil com os escravos que tem a cada dia seus cinco minutos de senhorio, mas é também porque também eu vou ser coisa. É uma responsabilidade por toda coisa que carrega os talismãs do ser (com as bolhas de nada), mas é também porque também eu vou ser coisa. É minha hospitalidade e é recíproca – dou a elas abrigo já que elas me abrigaram, mas é também porque também eu vou ser coisa. Ataúde, e matéria des-orgânica, fazendo alianças com minhas beiras e minha solturas. Me preparo para dissipar meus ossos em uma coisa qualquer. Rugas são linhas que apagam – apagam eu e apagam nós. Meus pertencimentos em torno de uma fronteira: meu país e o país dos vermes. As linhas de fronteiras são as apagadas pelas rugas. O estrangeiro me rói. São as coisas que não falam a minha língua, incompreensíveis, irreconhecíveis e pagãs que fazem minha carne e as imagens dos meus sonhos. Tomo o partido das operações escondidas que produzem o sangue do meu âmago. Elas, as operações, coisas por trás das coisas, me sustentam mesmo quando viajo sentado e elas vão de pé.

Também as coisas se acostumam a mim. Deixo meus sucos cheios dos meus hóspedes pelo chão, e o chão, que transforma qualquer coisa em outra coisa, é que vai me hospedar para que eu vire outra coisa. O chão choca as coisas. Vou fertilizando ele com minhas seivas feitas de outras coisas. As coisas terminam as viragens que eu comecei. Assim, eu me misturo nelas. Coisifico. São elas que me envelhecem, que me exilam, me arrancam as raízes. Elas se acostumam a mim e eu me acostumo a elas. A cada lufada de ar, a cada mordida. As coisas são portanto os velhos mais velhos que os velhos. E eles me chamam.

martedì 5 novembre 2013

A lua em leão

Hoje topei com Cris Moreira num sarau a luz da lua (da ACLAC) e a sombra de um Zumbi. E ela leu um poema que ela fez pra mim quando eu passei de Rellena de Jalapeño falando de etiologia do pansexualismo entre os corpos vadios:


Gosto da tua poesia que nao prescreve
Da tua figura ambígua nos céus do minhocão
Pequizeiro florido na neve da academia
Comendo egos quadrados e vomitando ratos
Gosto de tua língua na palavra
De tuas palavras nos meus ouvidos
Eixo monumental e rodoviário se cruzando
Na babel de caldo de cana e pastel
Gosto da tua filosofia transgressora da academia
Poesia verde nas linhas de concreto
Concretismo heterodoxo nos prédios e calçadas do Darcy
Poeta do absurdo
de estar ali.


Obrigado, Cris, que fera.

sabato 2 novembre 2013

Conficção. Teses sobre a demagogia de si.

(Esboço para a mesa de bioficção)

Conficção
Teses sobre a demagogia de si


1. Com a minha imagem no espelho, vejo alguém que eu aprendi a reconhecer. Como aprendi a reconhecer meus vizinhos. Minha imagem é uma companhia. Nem sempre é a companhia que eu desejo já que ela demanda que eu esteja a sua altura. Por vezes eu faço-lhe caras e torço-me o rosto para ter outra imagem da minha imagem.

2. Aqui, em mim. Aqui começa o exercício de confissão. A confissão é um testemunho. Em toda palavra estão penduradas mil mentiras (escreveu Dieter Roos). O testemunho de mim é confiável – eu ponho em risco minha reputação de mim mesmo para defende-la. E só pode testemunhar quem pode inventar. Mas ainda assim, eu testemunho. Em cada mentira estão penduradas mil verdades (continua Dieter Roos).

3. Eu mesmo. Aqui começa toda ficção. Fazer surgir no meu corpo uma voz. Fazer habitar em meu corpo uma responsabilidade. Fazer com que em meu corpo haja alguém e não antes ninguém.

4. Lévinas detecta assim a ficção de Zvi Kolitz: é verdadeira como só a ficção pode ser. E depois fala de vertigem. A vertigem de se reconhecer naquilo que ninguém confessou. Só o outro, o que tateia entre as mentiras, pode confessar de mim.

5. De onde faltam verdades, surge, entre outras coisas, sinceridade.

6. Quem quer dizer o que sente / Não sabe o que há de dizer. / Fala: parece que mente... /Cala: parece esquecer. Fernando Pessoa escreveu estes versos em 1928 e consta que escreveu também assim: Vaga história comezinha, que pela voz das vozes, era a minha. Minha voz carrega a autoridade de um governo central – as vezes distante como um fato súbito. Comezinha e tortuosa. Sem essa voz acoplada a mim, instalada em mim, eu não teria nada a dizer.

7. O corpo. Mas do que é que o corpo não mente? Ele dissimula e emite sinais em profusão. Treme. Geme. Fica doente. Fica a cara da minha alma. Minha bexiga despejando meus remorsos, meu fígado armazenando minha ira. Meus fios de cabelo balançam com o vento das minhas descrenças, meus cheiros tem a forma da minha inquietação e minhas unhas crescem o conteúdo da minha angústia. Meus germes são agentes infiltrados de quem eu amo e me machuco––me adoeço de receios. Meu corpo transparente. E minha alma nua, escondida debaixo dos panos. Nele transparece o que eu poderia ter vivido e o que eu imaginei que poderia ter vivido. Talvez ele expresse em demasia o avesso da mentira.


8. Uma palavra pode salvar o mundo (por um segundo). Eu escrevo para meus olhos não serem a única testemunha.

9. Minhas palavras sobre mim têm também seus subterrâneos. Meus sub-acontecimentos, minhas verdades que não suportei, meus clandestinos e ilegais. As fantasias de mim fizeram meus gestos, me deram coragens, me impediram de errar. Minhas fantasias se costuram na minha pele. A imaginação cava pelas endodermes, soltam furúnculos, fazem suar.

10. Demagogia? Meu corpo é um palanque de demagogos. Eu acredito neles todos. Eles aprendem a cada dia como me convencer. Eu trabalho para eles, ajuda a campanha.

Eu sou uma casa de pensão.

Eles me pagam pelo meu voto.

11. Os personagens de ficção são como fingimentos. Mesmo se não forem tudo aquilo que dizemos deles, eles existem. Kripke pensa que eles não são entidades abstratas independentes – eles dependem de quem os instaura, de quem os cria, de quem os instala na existência. Frankenstein, desde 1818, existe desde 1771. Eu, desde o dia em que aprendi que nasci, nasci no dia do meu registro civil. Ter me convencido disso me tornou gente – todo mundo é natal – e selou alguns destinos da minhas saúde e das minhas doenças.

12. Cesar Aira em Cómo me hice monja: a menina César Aira narra como falava com ela o homem de branco no hospital – Como está hoje don César? Sua aparência está ótima don César. E afundava os dedos nos seus órgãos em busca de testemunho, de testemunho da voz. Dói aqui? Sim. Dói aqui? Não. Ele escreve: Começava tudo de novo, desorientado. Procurava os lugares onde fosse impossível que não me doesse. Mas não os encontrava, não encontrava o impossível, de que eu era dona e senhora. Eu tinha as chaves da dor... Ele, César Aira, inventava a ela, a si mesma.

13. Escrevo para escapar de mim. Algumas mentiras me carregam e me preservam. Já reinventei meu passado por conveniência ou por demagogia. Os passados reinventados arrancaram ritmos muito escondidos dentro de mim. Há pedaços de mim que só afloram na falsidade.

14. Ter um lugar de fala pronto. O prêmio.

Falar de um lugar de preconceitos e aproximações.

Há apenas uma dose pequena de verdades que o reconhecimento pode suportar. E pode reconhecer.