(Esboço para a mesa de bioficção)
Conficção
Teses sobre a demagogia de si
1. Com a minha imagem no espelho, vejo alguém que eu aprendi a reconhecer. Como aprendi a reconhecer meus vizinhos. Minha imagem é uma companhia. Nem sempre é a companhia que eu desejo já que ela demanda que eu esteja a sua altura. Por vezes eu faço-lhe caras e torço-me o rosto para ter outra imagem da minha imagem.
2. Aqui, em mim. Aqui começa o exercício de confissão. A confissão é um testemunho. Em toda palavra estão penduradas mil mentiras (escreveu Dieter Roos). O testemunho de mim é confiável – eu ponho em risco minha reputação de mim mesmo para defende-la. E só pode testemunhar quem pode inventar. Mas ainda assim, eu testemunho. Em cada mentira estão penduradas mil verdades (continua Dieter Roos).
3. Eu mesmo. Aqui começa toda ficção. Fazer surgir no meu corpo uma voz. Fazer habitar em meu corpo uma responsabilidade. Fazer com que em meu corpo haja alguém e não antes ninguém.
4. Lévinas detecta assim a ficção de Zvi Kolitz: é verdadeira como só a ficção pode ser. E depois fala de vertigem. A vertigem de se reconhecer naquilo que ninguém confessou. Só o outro, o que tateia entre as mentiras, pode confessar de mim.
5. De onde faltam verdades, surge, entre outras coisas, sinceridade.
6. Quem quer dizer o que sente / Não sabe o que há de dizer. / Fala: parece que mente... /Cala: parece esquecer. Fernando Pessoa escreveu estes versos em 1928 e consta que escreveu também assim: Vaga história comezinha, que pela voz das vozes, era a minha. Minha voz carrega a autoridade de um governo central – as vezes distante como um fato súbito. Comezinha e tortuosa. Sem essa voz acoplada a mim, instalada em mim, eu não teria nada a dizer.
7. O corpo. Mas do que é que o corpo não mente? Ele dissimula e emite sinais em profusão. Treme. Geme. Fica doente. Fica a cara da minha alma. Minha bexiga despejando meus remorsos, meu fígado armazenando minha ira. Meus fios de cabelo balançam com o vento das minhas descrenças, meus cheiros tem a forma da minha inquietação e minhas unhas crescem o conteúdo da minha angústia. Meus germes são agentes infiltrados de quem eu amo e me machuco––me adoeço de receios. Meu corpo transparente. E minha alma nua, escondida debaixo dos panos. Nele transparece o que eu poderia ter vivido e o que eu imaginei que poderia ter vivido. Talvez ele expresse em demasia o avesso da mentira.
8. Uma palavra pode salvar o mundo (por um segundo). Eu escrevo para meus olhos não serem a única testemunha.
9. Minhas palavras sobre mim têm também seus subterrâneos. Meus sub-acontecimentos, minhas verdades que não suportei, meus clandestinos e ilegais. As fantasias de mim fizeram meus gestos, me deram coragens, me impediram de errar. Minhas fantasias se costuram na minha pele. A imaginação cava pelas endodermes, soltam furúnculos, fazem suar.
10. Demagogia? Meu corpo é um palanque de demagogos. Eu acredito neles todos. Eles aprendem a cada dia como me convencer. Eu trabalho para eles, ajuda a campanha.
Eu sou uma casa de pensão.
Eles me pagam pelo meu voto.
11. Os personagens de ficção são como fingimentos. Mesmo se não forem tudo aquilo que dizemos deles, eles existem. Kripke pensa que eles não são entidades abstratas independentes – eles dependem de quem os instaura, de quem os cria, de quem os instala na existência. Frankenstein, desde 1818, existe desde 1771. Eu, desde o dia em que aprendi que nasci, nasci no dia do meu registro civil. Ter me convencido disso me tornou gente – todo mundo é natal – e selou alguns destinos da minhas saúde e das minhas doenças.
12. Cesar Aira em Cómo me hice monja: a menina César Aira narra como falava com ela o homem de branco no hospital – Como está hoje don César? Sua aparência está ótima don César. E afundava os dedos nos seus órgãos em busca de testemunho, de testemunho da voz. Dói aqui? Sim. Dói aqui? Não. Ele escreve: Começava tudo de novo, desorientado. Procurava os lugares onde fosse impossível que não me doesse. Mas não os encontrava, não encontrava o impossível, de que eu era dona e senhora. Eu tinha as chaves da dor... Ele, César Aira, inventava a ela, a si mesma.
13. Escrevo para escapar de mim. Algumas mentiras me carregam e me preservam. Já reinventei meu passado por conveniência ou por demagogia. Os passados reinventados arrancaram ritmos muito escondidos dentro de mim. Há pedaços de mim que só afloram na falsidade.
14. Ter um lugar de fala pronto. O prêmio.
Falar de um lugar de preconceitos e aproximações.
Há apenas uma dose pequena de verdades que o reconhecimento pode suportar. E pode reconhecer.
Conficção
Teses sobre a demagogia de si
1. Com a minha imagem no espelho, vejo alguém que eu aprendi a reconhecer. Como aprendi a reconhecer meus vizinhos. Minha imagem é uma companhia. Nem sempre é a companhia que eu desejo já que ela demanda que eu esteja a sua altura. Por vezes eu faço-lhe caras e torço-me o rosto para ter outra imagem da minha imagem.
2. Aqui, em mim. Aqui começa o exercício de confissão. A confissão é um testemunho. Em toda palavra estão penduradas mil mentiras (escreveu Dieter Roos). O testemunho de mim é confiável – eu ponho em risco minha reputação de mim mesmo para defende-la. E só pode testemunhar quem pode inventar. Mas ainda assim, eu testemunho. Em cada mentira estão penduradas mil verdades (continua Dieter Roos).
3. Eu mesmo. Aqui começa toda ficção. Fazer surgir no meu corpo uma voz. Fazer habitar em meu corpo uma responsabilidade. Fazer com que em meu corpo haja alguém e não antes ninguém.
4. Lévinas detecta assim a ficção de Zvi Kolitz: é verdadeira como só a ficção pode ser. E depois fala de vertigem. A vertigem de se reconhecer naquilo que ninguém confessou. Só o outro, o que tateia entre as mentiras, pode confessar de mim.
5. De onde faltam verdades, surge, entre outras coisas, sinceridade.
6. Quem quer dizer o que sente / Não sabe o que há de dizer. / Fala: parece que mente... /Cala: parece esquecer. Fernando Pessoa escreveu estes versos em 1928 e consta que escreveu também assim: Vaga história comezinha, que pela voz das vozes, era a minha. Minha voz carrega a autoridade de um governo central – as vezes distante como um fato súbito. Comezinha e tortuosa. Sem essa voz acoplada a mim, instalada em mim, eu não teria nada a dizer.
7. O corpo. Mas do que é que o corpo não mente? Ele dissimula e emite sinais em profusão. Treme. Geme. Fica doente. Fica a cara da minha alma. Minha bexiga despejando meus remorsos, meu fígado armazenando minha ira. Meus fios de cabelo balançam com o vento das minhas descrenças, meus cheiros tem a forma da minha inquietação e minhas unhas crescem o conteúdo da minha angústia. Meus germes são agentes infiltrados de quem eu amo e me machuco––me adoeço de receios. Meu corpo transparente. E minha alma nua, escondida debaixo dos panos. Nele transparece o que eu poderia ter vivido e o que eu imaginei que poderia ter vivido. Talvez ele expresse em demasia o avesso da mentira.
8. Uma palavra pode salvar o mundo (por um segundo). Eu escrevo para meus olhos não serem a única testemunha.
9. Minhas palavras sobre mim têm também seus subterrâneos. Meus sub-acontecimentos, minhas verdades que não suportei, meus clandestinos e ilegais. As fantasias de mim fizeram meus gestos, me deram coragens, me impediram de errar. Minhas fantasias se costuram na minha pele. A imaginação cava pelas endodermes, soltam furúnculos, fazem suar.
10. Demagogia? Meu corpo é um palanque de demagogos. Eu acredito neles todos. Eles aprendem a cada dia como me convencer. Eu trabalho para eles, ajuda a campanha.
Eu sou uma casa de pensão.
Eles me pagam pelo meu voto.
11. Os personagens de ficção são como fingimentos. Mesmo se não forem tudo aquilo que dizemos deles, eles existem. Kripke pensa que eles não são entidades abstratas independentes – eles dependem de quem os instaura, de quem os cria, de quem os instala na existência. Frankenstein, desde 1818, existe desde 1771. Eu, desde o dia em que aprendi que nasci, nasci no dia do meu registro civil. Ter me convencido disso me tornou gente – todo mundo é natal – e selou alguns destinos da minhas saúde e das minhas doenças.
12. Cesar Aira em Cómo me hice monja: a menina César Aira narra como falava com ela o homem de branco no hospital – Como está hoje don César? Sua aparência está ótima don César. E afundava os dedos nos seus órgãos em busca de testemunho, de testemunho da voz. Dói aqui? Sim. Dói aqui? Não. Ele escreve: Começava tudo de novo, desorientado. Procurava os lugares onde fosse impossível que não me doesse. Mas não os encontrava, não encontrava o impossível, de que eu era dona e senhora. Eu tinha as chaves da dor... Ele, César Aira, inventava a ela, a si mesma.
13. Escrevo para escapar de mim. Algumas mentiras me carregam e me preservam. Já reinventei meu passado por conveniência ou por demagogia. Os passados reinventados arrancaram ritmos muito escondidos dentro de mim. Há pedaços de mim que só afloram na falsidade.
14. Ter um lugar de fala pronto. O prêmio.
Falar de um lugar de preconceitos e aproximações.
Há apenas uma dose pequena de verdades que o reconhecimento pode suportar. E pode reconhecer.
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