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domenica 22 dicembre 2019

Decurators 2019 em palavras

ARTISTAS, NATURALISTAS E NIILISTAS NO DECURATORS EM 2019


A arte é desde seus inícios uma roupa da natureza – ou um apetrecho da natureza – do grego traduzimos como arte a palavra techné. E Aristóteles começou a contrastar esta palavra com outra, a physis, que convertemos em natureza mas antes talvez na natureza das coisas. Aristóteles, ele mesmo, admitiu techné não é tão alheia à physis; e assim, se a arte faz esconderijos para a natureza é talvez porque physis, como dizia Heráclito, ama esconder-se, tem uma compulsão ao recôndito, ao disfarçado, ao segredo. Para tanto, ela precisa de artimanhas – que talvez traduza a palavra techné. Toda artimanha procura escapar da natureza das coisas – assim as pedras que substituem o comprimido nas cartelas de remédio no trabalho de Valéria Pena-Costa1, ou os espelhos e os ganchos que suspendem o dinheiro nos trabalhos de Cirilo Quartim2, ou ainda a expedição de volta ao mundo que perambula pela Avenida das Nações no trabalho do grupo Vaga-mundo3. Essa escapada é talvez natural, mas às artimanhas se consideram artifícios que suplementam a natureza (das coisas) ao invés de segui-las. Mas talvez a natureza das coisas seja já ela mesma um suplemento às coisas, uma artimanha delas, um artifício que elas engendram.


Gisel Carriconde Azevedo, porta-bandeira e mestre-de-cerimônias do deCurators, tentou contrastar em duas das exposições do ano uma imagem da tecnologia-catástrofe com outra da tecnologia-benfeitora. No debate em torno da exposição Supranatural, que refletiria a imagem benfeitora em contraste com a imagem que teria se desprendido da exposição Hiperfluxo, a conversa foi na direção das utopias distópicas, das hostilidades hospitaleiras, dos remédios venenosos. Há uma palavra também grega para a artimanha e o artifício com a natureza das coisas: pharmakón. Que pode ser veneno e pode ser remédio. Há remédios que são venenosos quando a dosagem vai aumentando – como a sede de controle que se adiciona à natureza das coisas –, há venenos que são vacinas e há talvez também venenos que em doses maciças podem se tornar remédios. Cada artifício – cada técnica, cada aventura fora da ordem estabelecida, cada trabalho de arte que abre portas e cada experiência sublime talvez – é um pharmakón. Ou seja, hostil porque hospitaleiro, utópico porque distópico, venenos que remediam.

Em consonância com o contraste ressaltado por Gisel, a tecnologia – benfeitora catastrófica ou catástrofe benfeitora – aparece nos trabalhos de Hilan Bensusan & Raísa Curty e de Tiago Botelho4 como veneno sedutor.


Por outro lado, ela pode parecer remédio nos trabalhos de Renato Perotto e Malu Fragoso5 – trabalhos que apontam para a possibilidade da retenção da memória diante dos atratores do esquecimento e da expansão do conhecimento diante do recôndito. A insistência do pharmakón encoraja o sentimento de desastre – o envenenamento progressivo de tudo – tanto quanto o de redenção – o veneno redentor que ao fim e ao cabo, se bem que só ao fim e ao cabo, trará os bons ventos. A erótica da tecnologia é sempre aquela das promessas; ela aparece como uma invasão de um futuro à meia-luz que torna o presente subitamente insuficiente.

Nietzsche é talvez o nome da aposta da arte contra a natureza – ou do artista como sucessor do naturalista. Este ano se popularizaram aplicativos de caras artificiais, de paisagens artificiais, de registros artificiais – e as aplicações das verdades artificiais. O processo que Nietzsche via era de que as coisas naturais – incluindo as humanas – iam se tornando sem viço porque se mostravam cada vez mais redundantes e multiplicáveis uma vez que seu modo de operação era extraído pelo esforço de tomar de assalto a inteligência do mundo. Esse processo niilista era aquele que nos faz preferir satisfazer uma vontade de verdade a respeitar as coisas naturais – incluindo as humanas. É o processo que mata Deus (apaga o horizonte, desconecta a Terra da Lua, seca o mar). Quando ele avança, sobra apenas o artificial – os artifícios, as artimanhas, a arte. Pronto, apenas soçobram os espíritos livres (de natureza) que pastoreiam uma vontade de poder. Esse processo é o que dá combustível para a tecnologia: tornar as coisas naturais – inclusive as humanas – disponíveis ao controle, postas à disposições, tornadas em dispositivos.

Os trabalhos de Maurício Chades e Krishna Passos6 manipulam as forças que fazem as coisas naturais operarem para produzirem efeitos sublimes, ou sublimados. Para isso, eles arranjam essas forças em formas como os escultores em matéria-prima estendida. Se a techné se destina aos espíritos livres – e os espíritos livres são artifícios titânicos – é aqui que ela se satisfaz. Se ela se contrapõe à natureza – ao invés de ajudá-la a se esconder – é aqui que ela não está mais em treinamento. “Tenho a técnica só dentro da técnica, fora disso” duelo com a vontade de poder mais. A tecnologia é uma infiltração na natureza para transformá-la em: a) natureza morta, b) arte (em proporções cósmicas, telúricas, tectônicas, genéticas, neuronais, hormonais), c) Nenhuma das acima. Talvez todos os artistas sejam mesmo desterrados; a serviço da alquimia a mais fria: dar asas às vontades de poder as mais caprichosas, as mais obsessivas, as mais feiticeiras e as mais mandonas – e depois voar. Por isso falam de revolução permanente. Ou invisível.

Hilan Bensusan
Brasília, 21/12/ 2019

1. “Para tirar as dores do mundo”, ciclo Do sofrimento, das injúrias e da verdadeira paciência. 10/ 2019
2. “Mangos”, ciclo Hiperfluxo: Vocês não viram nada ainda. 06/2019
3. “1080 Dias Parte 1”, ciclo deCurators pesquisa . 09/2019
4. “Niilismo: Capital” e “O segredo do futuro”, ciclo Hiperfluxo: Vocês não viram nada ainda. 06/2019
5. “Nysa Canta” e “S.H.A.S.T modulo 3”, ciclo Supranatural. 11/2019
6. “Arco-íris de Brasília” e “Epicentro: biótica celeste”, ciclo Supranatural. 11/2019

domenica 18 agosto 2019

Sheer hellish miasma, Kevin Drumm

Me redimiria ser poeta mas fico como os desajustados que não estão entre os desajustados porque aos desajustados não me ajusto, que não estão entre os impacientes porque nem sequer me falta paciência, que não estão entre os gênios porque nem sequer penso à frente, as vezes às margens que não estão entre os marginais porque nem sequer alcanço a margem do rio que nem estão entre os suicidas porque nem sequer é com a vida que quero acabar - as vezes lhes parece pouco, as vezes me parece muito, as vezes me parece apenas um exemplo, grande e pequeno como todos os exemplos - que nem estão entre os apocalípticos porque nem sequer é com a minha vida que quero acabar que não estão entre os inconformados porque nem sequer me conformaria com qualquer outra coisa que não estão entre os insurretos porque nem sei o endereço das Tulleries que tenho que queimar, que não estão entre os desajustados impacientes gênios marginais suicidas exemplos apocalípticos inconformados insurretos heróis
mas que abomina o que vê e pensa dos índios que crescem que ou lhe espera o preço alto demais para os pequenos favores ou o mandíbula de um sistema comercial que substitui a aldeia por um quarto higiênico de apart hotel e muitos campos de refugiados.

O tamanho do meu não varia entre a afta na língua e o cosmos.
Tento me excitar pensando em um mundo onde não há verdade. Lembro mesmo da minha tribo jogando pequenas castanhas na fogueira.
Mas não gosto do excesso (e nem da falta, sucursal do excesso). Prefiro uma imagem sob medida para uma tela. E o galho mais alto da amexeira.

lunedì 5 agosto 2019

Paraíso reconquistado no parque humano

Paraíso reconquistado no parque humano
Hilan Bensusan


Para Pedro Benassi

I who e're while the happy Garden sung,
By one mans disobedience lost, now sing
Recover'd Paradise to all mankind,
By one mans firm obedience fully tri'd.
Milton

E a pior hipocrisia me pareceu esta: também os que mandam fingem ter as virtudes de quem servem. “Eu sirvo, tu serves, nos servimos” […] e ai de quando o primeiro senhor é também o primeiro servidor. […] No fundo o que mais querem é que ninguém lhes machuque. […] A virtude os converte em mansos; […] converteram os lobos em cachorros e o humano mesmo em melhor animal doméstico do humano.
Nietzsche

Se há uma dignidade do humano que merece ser considerada pela reflexão filosófica é porque humanos não são mantidos em parques temáticos políticos, mas eles mesmos é que o mantêm ali.
Sloterdijk

Temos que parar a manivela, eu não quero ser um pet de robô.
Benassi


1. Ainda que estejamos apenas diante de seus presságios, podemos vislumbrar o produto de uma ação cosmológica que a era humana desempenhou: o controle das forças das coisas. A história da extração da inteligibilidade dos processos é a história de um habitat, a história da metafísica onde decidimos habitar. É certo que a inteligibilidade dos processos não pode ser completamente extraída e que a força das coisas – e sabemos como são fortes forças – não pode ser inteiramente controlada; há resíduos, como sobras de mingau quente no prato. Sempre há sobras. Mas a metafísica está determinada a comer por suas bordas favoritas, e a partir destas bordas – o que há de separável no entendimento das coisas – ela avança para dentro do prato.

Com as coisas capturadas, seus funcionamentos extraídos, reproduzidos por máquinas alheias a elas e às quais consignamos todos os poderes que extraímos, produzimos nossa redundância. Ou seja, nossa irrelevância – ao invés de peças de um cosmos, nos tornamos adendos dispensáveis. Trata-se de um destino como o do suicídio lento, o do desinteresse gradual, da gradativa perda da importância e do viço. Com respeito à nós mesmos é que somos niilistas. As forças descontroladas – a anomia – nós colocamos sob a égide de controles cada vez mais estreitos – a heteronomia que é o habitat que fazemos com que nos abrigue. Vivemos em uma heteronomia, em um cosmos ordenado. O hetero aparece para apontar para um nomos que nos rodeia, o nomos que é também a base da inteligibilidade: entender é explicar os poderes subjacentes, explicar é reduzir. E como nossa heteronomia também é parte de nosso habitat, concebemos também os botões que controlam nossos mecanismos. A autonomia – a soberania – é apenas mais uma inscrição da (hétero)nomia. Os poderes externos às coisas – Deus tal como as leis e os sistemas dinâmicos – é que tomam elas pelos braços. Se nós extraímos poderes é porque os temos, não porque os somos.

A vontade de poder seguramente não é nossa – nós, antes, é que nos tornamos dela. Habitar um mundo de vontade de poder é nos colocar ao abrigo da soberania. A soberania, quando é um nomos como deve ser para os niilistas, não é de ninguém. O nada, o anfitrião, requer a redundância. Nós então aspiramos a redundância quando desejamos o paraíso e sonhamos com reconquistá-lo e lamentamos sua perda original tão decisiva. Os deleites sem fim, os prazeres garantidos, a segurança contra o risco, o jardim onde não há selvageria onde não há extrativismo e nem trabalho são aspirações correntes, frequentes, reiteradas. Nada precisa ser feito – tudo está à mão, disponível.
Que desejo de redundância é este, o desejo do paraíso? O desejo de se libertar da necessidade, o desejo de estar provido, de ter seu pastor que garante que nada faltará? E então poder ser aquilo que somos na satisfação edênica de poder caçar de manhã, pescar de tarde e fazer crítica literária de noite? Libertar-se de qualquer constrição. Pedro Benassi, examinando como nos colocamos à mercê dos poderes que extraímos – e nos colocamos à mercê deles já ao extraí-los já que eles se separam de nós – diz que não que se tornar um pet de robot. Podemos estar construindo os robots que tomarão conta de nossas forças e de nossas capacidades; o desejo de redundância pode ser encaminhado nesta direção. Porém talvez esta ação de delegar às inteligências artificiais o pastoreio dos nossos assuntos seja apenas a consequência de nosso desejo de reconquistar o paraíso – um equilíbrio de poderes heterodeterminados que nos deixe finalmente à salvos. À salvos, em um jardim, em um parque. Um parque humano. Em um parque nos livramos das selvagens forças da natureza e estamos aos cuidados de forças controladas que também decidem por nós – como as forças da natureza – mas para a nossa própria satisfação.

Conhece-te a ti mesmo, no entendimento edêmico que temos destas palavras, quer dizer extrai as forças que te constituem de modo a poder te transformares em uma marionete delas. Ou seja: destaca-te de ti mesmo, transforma-te em um algorítmo que possa ser implementado por qualquer outro.

Um parque: cada vez que sabemos mais sobre os animais, podemos fazer melhores zoológicos. Os pandas não trepam. Por que não se reproduzem em cativeiro? Conhecendo seus dispositivos mais recônditos – ou seus recônditos mais como dispositivos – podemos fazê-los se reproduzirem, e também treparem e também, talvez mais tarde, gozarem e serem capazes de querer trepar (em cativeiro). Ou talvez eles ressentirão sua perda de soberania. Ou talvez nós ressintamos. Mas, no nosso caso, escolhemos deixá-la de lado constantemente quando preferimos o nada – quando preferimos não parar diante de nada, nem sequer diante de nossa autonomia; preferimos deixar de ser índios para sermos periféricos agregados de um sistema que nem controlamos e nem estamos próximos de quem controla. Decidimos – e fazemos isso constantemente, reiteradamente – abandonar a diplomacia com as coisas em favor de extrair delas um manual de instruções. Com as coisas, com nossa comida, com nossos predadores, com nossos ímpetos, com nossas fissuras, com nossos estados de espírito. Ou quando preferimos isentar a verdade de qualquer tribunal externo. Os pandas terminam por se reproduzirem e nos melhores zoológicos eles se sentem mesmo livres como os peixes nos grandes aquários. Não são pets – são cuidados com zelo crescente. Ou então, o que é um pet? Adão e Eva antes da queda? Se eles não são pets, os paraísos perdidos são jardins antropológicos.

Do ponto de vista de quem sonha em reconquistar o paraíso, ser um pet é ruim quando se é maltratado. Mas de onde pode resultar o maltrato já que os senhores são servidores? O maltrato resulta de uma incompreensão e não de uma fraqueza da vontade – a incompreensão sistemática resulta em maltrato. A fraqueza da vontade é ela mesma dissipada em um contexto niilista – ela se transforma em vontade de nada. Não há akrasia se colocamos toda anomia – ou todas as clinamina sem razões – sob a égide de uma heteronomia. Algo pulsa, controla, governa, tem poder sobre aquilo que não temos poder. Do ponto de vista da heteronomia generalizada, a akrasia é coisa de quem obedece a mais de um comando – o comando da obrigação e o da preguiça ou o comando do bom senso e o da disciplina ou o comando da saúde e o do gozo. Quando um mero nomos é destacado do que existe, este nomos não é senão monodeterminado. Não há senão burros de Buridan entre as inteligências artificiais. E se as razões que movem o burro não forem suficientes, melhores ainda virão já que o parque humano estará a cada dia em melhores mãos e melhores maniverlas já que quando nos transladarmos ao parque, as inteligências artificiais melhorarão elas mesmas a sua raça.

Então o que há de desagradável no parque humano? O que há de desagradável em ser cuidado e mantido no bom cativeiro por quem sabe o que nós podemos saber, como nós acreditamos que devemos agir e o que nos é permitido esperar? Benassi pensa que há uma soberania, uma vontade de mais-que-nada que se distingue de uma mera vassalagem aos poderes extraídos, mesmo quando estes são sábios e gentis. Mas do ponto de vista das inteligências artificiais – ou dos burros de Buridan ou, ainda, de nós, zelosos cuidadores dos pandas nos bons zoológicos – esta soberania perdida só pode ser uma manivela mal-apertada, um capricho, a falta de alguma coisa que nós não detectamos mas que superiores gênios laplaceanos detectam. Querer soberania talvez seja abdicar do paraíso. Ou seja, o contentamento ou a responsabilidade – o que queremos?

Talvez antes: a satisfação ou a sujeição à vontade alheia – do ferro que não se dobra, da árvore que para de frutificar. Queremos o paraíso porque senão estamos à mercê das forças selvagens da natureza, à mercê do inumano. Era melhor estarmos à mercê do pós-humano, do supra-humano.

A responsabilidade, por outro lado, aponta para um outro caminho. Não há inteligibilidade pronta, mas incumbência, vigilância. O paraíso, pronto como a inteligibilidade, é da ordem da segurança – sine cura, na etimologia de Heidegger. A natureza, diz Rilke em uma carta de Muzot, não protege especialmente nenhuma de seus seres e nem sequer nossa natureza nos proteje. Ela nos joga no risco. A segurança desincumbe, nos torna redundantes já que outra coisa se incumbe de nós (ou de tudo). O supra-humano é o pós-natural – a natureza em prótese, em artifício.

2. A gradativa substituição do esforço pela justiça – a responsabilidade – pela desincumbência – a atribuição de uma propriedade verdadeira a alguma coisa e que se separa da coisa tornando-a redundante – e da transformação destas propriedades em disponíveis inventou o capital por meio da crescente abstração do trabalho. O trabalho abstrato constitui as condições de possibilidade do capital ao mesmo tempo que é o produto mesmo do capital – como diz Marx, o trabalho com máquinas promove o trabalho como máquinas. O trabalho abstrato é a extração de um procedimento inteligível de uma atividade humana. Assim como em qualquer extração de inteligibilidade, uma vez que a extração é consumada, o trabalho é separado do humano que o executa – o trabalho podendo ser implementado sem o consórcio de humanos e os humanos podendo ser redundantes ao exercício do trabalho. Assim como a extração da inteligibilidade da fotossíntese permite fotossintetizadores artificiais e torna as folhas das plantas dispensáveis (para este efeito), o trabalho produto da abstração torna o trabalhador humano substituível e dispensável (para esta tarefa). A proletarização – a transformação da atividade em trabalho abstrato - obedece ao princípio do perigo que Heidegger apresenta nas conferências de Bremen: das Ge-Stell bestellt den Bestand. Ou seja, o dispositivo torna disponível um repositório. Assim como a represa torna a energia disponível, o trabalho abstrato torna a execução de uma tarefa disponível. O princípio do perigo, para Heidegger, é um princípio que afinge tudo aquilo que é – aquilo que é está sendo perseguido para ter sua inteligibilidade extraída. O mingau quente da realidade se come pelas beiradas, mas o perigo aflinge igualmente a vida e a morte dos humanos. A atividade humana é posta em um repositório, criado pelo capital quando ele se apresenta como Bestand, como repositório, como disponibilidade, como trabalho abstrato.

O salário dos trabalhadores é feito de capital. O conflito entre proletários e capitalistas é pautado por um cabo de guerra em que a corda é o capital. Há um sentido em que o capital, em qualquer situação, ganha a disputa: ou ele se multiplica ou ele se espalha. Porém há um outro sentido em que ou ele se preserva – em Bestand nas mãos dos capitalistas que não tem como gastar aquilo que acumulam e almejam por uma deriva que Max Weber diagnosticou como incompreensível em termos de uma explicação, da apresentação de um sistema fechado, de uma cibernética negativa – ou ele se dissipa no consumo dos trabalhadores. Há este segundo sentido em que é o capital maneja a acumulação já que ele extrai do trabalho (humano e não-humano) seu corpo. O trabalho abstrato é o efeito empírico do capital e sua condição transcendental. E portanto há também o primeiro sentido em que o trabalhador do trabalho abstrato já é o corpo do capital – a proletarização é uma salarização da atividade humana. O trabalho não oferece senão uma oposição interna ao sistema do capital. Mas o sistema não é ele mesmo estático: o trabalho se torna mais abstrato, os salários refluem aos grandes reservatórios de capital, os trabalhadores humanos mais redundantes e os patrões mais atrelados à sistema reprodutor do capital – já que os senhores são servidores. O domínio do capital é rizomático, ele se concentra porque se espalha e ele se flui porque ele unifica.

As dificuldades dos assalariados em se contrapor ao sistema do capital pode surgir de uma comparação, estimulada por Marx, entre a revolução burguesa e a suposta revolução proletária que aprenderia com a primeira mas que destronaria a égide do capital em favor de uma universalidade humana. A revolução burguesa foi uma consequência de uma crise no sistema feudal que permitiu que o pesadelo de todo socius – nos termos que Deleuze e Guattari consagraram ao capital no Anti-Édipo – abrisse uma fresta no meio das disputas entre camponeses emancipados, senhores feudais arruinados em meio a terras comuns que desafiavam o modo de produção estabelecido. Os servos e ex-servos tiveram um papel central no processo de desmantelamento do sistema feudal como o próprio Engels relata em seu livro sobre as revoltas camponesas do século XVI. Porém a revolução vista em seu resultado, foi burguesa – o agente que preponderou era externo ao sistema. A burguesia é estrangeira ou, no máximo, marginal ao sistema de produção. A revolução proletária seguiria uma outra dinâmica, uma dinâmica que se orienta por uma espécie de condição sui generis do proletariado de acordo com a qual ele é um produto do capital porém ao mesmo tempo o desestabiliza desde dentro e, supostamente, desde fora.

Esta condição sui generis do proletariado poderia ser entendida em termos de uma negação determinada. Hegel entende que na negação determinada um elemento interno a algo promove uma negação por meio de uma explicitação. Este é o processo avesso ao da abstração: é o processo da concrescência, para Hegel. O espaço abstrato envolve pontos, retas e planos, mas ainda não tem nele nenhum ponto (ou reta ou plano). O ponto introduzido no espaço abstrato torna o espaço genuinamente espacial – agora relações espaciais como vizinhança, distância, localização começam a ser possíveis – e, ao mesmo tempo, menos abstrato. O ponto torna o espaço explícito ao mesmo tempo em que o torna concreto – ainda que o ponto não possa ter sua concretude senão com a introdução da negação determinada que é produzida pela reta. Ao final do processo, o espaço se torna concreto, o que é e não é o espaço abstrato. Cada etapa de negação determinada suplementa e, ao mesmo tempo, explicita o que está já na etapa anterior. O espaço concreto do fim do processo não é estrangeiro ao espaço abstrato mas nem tampouco é integrante dele. A concrescência é um produto de uma atividade, de um processo de negação. Analogamente, o proletariado torna concreto o abstrato que é o capital, ele torna o processo de extração de inteligibilidade que constitui o capital explícito. Uma revolução proletária não seria um desmonte do sistema abstrato do capital, mas uma concrescência deste – ela o tornaria concreto.

O apelo a negação determinada é uma passo teórico astuto de Marx ao projetar uma revolução proletária. De fato, as tentativas de retirar Hegel do portfólio teórico crucial dos pensamentos marxistas deixa a ideia de uma revolução proletária desguarnecida a críticos como Jacques Camatte (e mesmo como Deleuze e Guattari ou Lyotard). Talvez o exorcismo de Hegel do marxismo tenha sido possível apenas nos anos 1960, quando foram levados a cabo por filósofos como Althusser e Balibar, depois que a ideia mesma de uma revolução proletária começou a sair do horizonte e a esvaescer. Porém sem a negação determinada, a revolução proletária – e mesmo o sistema do capital que foi levado a cabo pelo stalinismo que estimulou a acumulação estatal e a aumento da produtividade e a experiência chinesa desde o fim dos anos 1970 – se tornam menos compreensíveis. Abandonada a negação determinada, não há mais como pensar no privilégio revolucionário do proletário.

No entanto, talvez no exorcismo da negação determinada possamos enxergar não apenas uma rejeição de um passo teórico astuto de Marx, mas também uma crítica ao seu alcance. Que o proletariado torne o sistema do capital concreto não se segue que ele o transforme em favor da humanidade. Camatte entende que Marx pensou – e deu seus passos teóricos – a partir de uma convicção de que a revolução proletária viria e que não tardaria. Porém ela tardou. E surgiram, por exemplo, suspeitas sobre a ideia mesma de uma negação determinada feita pelos proletários ao sistema do capital. Lyotard, em seu livro que ele considera maldito, Économie Libidinale, é talvez o nome desta suspeita: o que seria esta humanidade reconquistada que as máquinas permitiriam senão uma nostalgia da vida camponesa que o proletário entende e compartilha cada vez menos? Ou, como renunciar a crescente mecanização – e anonimização – das relações sociais que deixa o humano mais emaranhado nas artificialidades e menos distinto delas? Ou ainda, por que renunciar ao conforto (que tende ao paraíso) que o sistema do capital providencia? A revolução tardou e o horizonte mudou; mas talvez porque a negação determinada não seja desde o início senão um procedimento de concrescência. E mais, a concrescência não tem talvez um final certo, ela segue um caminho em que mais e mais coisas são explicitadas na medida em que ela torna concreta outras abstrações. O sistema do capital se concretiza no trabalho – esta negação determinada não é o projeto de uma revolução, mas de uma redundância.

Camatte considera que o futuro do sistema do capital trará uma das seguintes alternativas: a) ou a completa autonomia do capital, em que os humanos se tornam simples acessórios mantendo um papel executivo; b) ou a mutação do humano; c) ou a atomização dos humanos, com a realização dos desejos dos humanos pelo capital sem que eles possam se encontrar. Sem a revolução proletária, estas seriam as alternativas à interação entre capital e humanidade. Talvez elas possam ocorrer conjuntamente: no parque humano, os humanos ainda decidem pelo seu bem-estar ao confiar às inteligências artificiais a disponibilidade do que necessitam, eles se transformam pela relação com as máquinas e precisam talvez de poucas relações sociais, sobretudo dispensam aquelas que giram em torno do trabalho – produtivo e reprodutivo. Os humanos, dispensados do trabalho – e talvez recebendo uma renda mínima universal – seriam curiosidades redundantes que as máquinas cuidariam para extrair delas apenas o que se extrai de um zoológico: a ilustração de uma outra possibilidade. Seria preciso incitar as máquinas a gostarem de seus pets e de seus zoos – e, pronto, reconquistaríamos o paraíso. Sem salário e sem trabalho.

A redundância humana – o parque humano – é também o era do capital pós-trabalho. O trabalho é a ponte entre uma vida de incumbências de um lado – a vida das responsabilidades, das atividades, das comunidades – e o paraíso. Trabalhamos para alcançar o paraíso que não é um idílio edênico, é uma desincunbência que começamos a desfrutar mesmo escravizados pelo capital – a possibilidade de não mais ser responsável por (quase) nada ou ninguém. O projeto da automação do mundo é o projeto da imunidade, da dispensa que qualquer atividade de serviço. A conversão de dinheiro e trabalho é a mágica que faz a incumbência fluir para qualquer mão e qualquer manivela – o pesadelo realizado da destruição do socius é o paraíso reconquistado. O paraíso que perseguimos será verde e terá figos e um regato do tamanho humano – mas não terá cobras, nem frutos proibidos, nem maldições.

O parque humano será gerido sem um elo cosmopolítico entre os reservados e os incubidos de seu bem- estar. A automação do mundo é também o projeto de fim de toda (cosmo-)política, que começa com a transformação do Reno, do gado e da vida marinha em recurso e prossegue com a transformação dos desejos humanos em demandas ao mercado. Um parque bem gerido é também aquele que se sustenta e que dá lucros – os executivos artificiais do parque humano tratarão de fazê-los atrativos para garantir a continuidade de sua soberania neo-cameralista. O sonho da redenção humana por meio de sua redundância requer que tenhamos certeza que seremos zelados a partir de nossa essência que não tem história. É este zelo que temos quando evitamos que nossos governos sejam corruptíveis – é preciso que eles não tenham nenhum outro interesse ou necessidade senão o de implementar o algorítmo de gestão dos humanos. Há um problema: a extração da inteligibilidade da atividade política é a gestão. A política parece estar precisamente em um resíduo que a extração tem que desprezar, em uma sobra, em algo que não se rende ao manejo. Sloterdijk entende que as regras para o parque humano estão sendo buscadas pelo menos desde O político de Platão. E o parque humano – assim como o zoológico se preocupa com a gênese de novos pandas – é um lugar de antropotécnica. O resíduo desaparece na medida em que novas gerações crescem no parque humano; os pandas que se reproduzem em cativeiro – assim como os escravos que saíram do Egito e passaram 40 anos no Sinai esquecendo ou morrendo – gradativamente consideram a soberania algo obsoleto. Algo do passado. Algo que se confunde com a nostalgia de uma terra de riscos, de insegurança, de incumbências, de cuidado, de vigilância. Sem precisar da vigilância, para que soberania? O resíduo da política também desaparece como uma nódoa; é talvez como a probabilidade inicial que é washed out quando se reitera várias rodadas de exame das novas evidências pelo teorema de Bayes. As várias gerações, como as várias reiterações, lavam esta nostalgia de política já que os novos humanos serão produzidos no parque e se tornarão humanos no parque. Serão criaturas do paraíso. Conhecerão apenas a vida depois da ascensão e não precisaram conservar as lembranças da Queda.

Os resíduos, no entanto, talvez não desapareçam completamente do parque. Talvez eles sobrevivam como as adinkras do ocidente da África nas estampas dos afro-brasileiros ou como pequenas musiquinhas que se repetem em rodas. Como os resíduos do mingau quente são descartados mas que de alguma maneira não foram exorcizados. O mingau quente completo não fica devorado – mas o que sobra são apenas resíduos. O exercício da vidência requer uma intrepidez com os resíduos: como quem faz tasseografia, ou como quem lê a borra do café, é preciso uma atenção ao que foi tornado supérfluo – o que pode fluir por cima da hybris que estamos fazendo as inteligências artificiais herdarem. '

mercoledì 12 giugno 2019

Recuperar-se da guerra

De uma guerra a outra, sobram os botins
que vão se tornando estopins.
Os franceses com suas vergonhas coloniais interminadas,
botins da colaboração e de estar nas mãos dos inimigos.
Os americanos com seus campos de concentração globais,
botins da tentativa de imparcialidade com os inimigos.
Os alemães com suas corporações técnicas em expansão,
botins da condenação de serem vencidos como inimigos.
Os judeus com um país para governar e um povo para excluir,
botins do desagradável papel de vítimas do inimigo.
Ninguém sai ileso e de mãos abanando da guerra.
Ninguém sai da guerra.

venerdì 7 giugno 2019

A Sevilla, sin alpha ni omega


Ustedes me echaran de la tierra donde yo he vivido por generaciones -
como extranjero.
Ustedes colonizaran mis tierras, exterminaran casi todo mi pueblo
que ustedes pusieran en la periferia
de la orden global.
Pero ahora yo vuelvo. Me presento otra vez en Sevilla, que es,
claro está, mi origen.

venerdì 26 aprile 2019

Por causa do sol

Todo mundo encontra todo dia,
enroscado no seu sapato,
um messias para os outros.
A horda dos excessos que rondam como espectros
os excertos desta estufa cresce e multiplica.
Nessum dorma.
O sol despeja na gente um adendo descarado
que nem nos serve e nem nos pressente,
sussum corda!
O fardo, a tralha, o peso, o bônus
fora do bojo,
se acumulam e deixam cada coisa solta na Terra
permanecer desproporcional.
Ainda não é transcendência a abundância.
Ainda nâo é convalescênça a falta de carência.
Ainda não é excelência a comida e a dança.
O messias não me salva,
está dedicado a outro em outra parte
mas se enrosca no meu sapato.
O messias me abandona
com seu guindaste e sua alavanca
que eu carrego como se fossem
minha chave de casa.


lunedì 4 marzo 2019

Carnaval e alta cultura: o racismo que estrutura o desfile das escolas de samba

O texto completo do texto sobre o desfile da Viradouro (feito por Paulo Barros como neste ano) de 2008. O texto saiu no livro Carnaval e Filosofia.

O que pode sair na Sapucaí?
A Shoah, a Maafa, o carnaval e a catástrofe1


Hilan Bensusan
Universidade de Brasília
Ricardo Lobato
GISNO – Brasília



1- Arrepio; 2- Carnavais proibidos; 3- Arte e folia; 4 – Shoah e Maafa; 5- Carnaval de autor; 6 – Carnavalização e sacralização; Referências.



1. Arrepio
Nas vésperas do desfile das escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro de 2008, uma liminar da Justiça estadual impediu o desfile do carro alegórico que representava o terror dos campos de concentração e extermínio no enredo da Viradouro. O enredo tratava do que traz arrepio: dos maravilhamentos aos êxtases, dos medos aos horrores. A Shoah tem sido considerada um dos horrores da história recente – utilizado muitas vezes como parâmetro de massacre e extermínio2 e também de medida das capacidades de controle pela destruição na modernidade.3 As imagens dos campos de concentração e das câmaras de gás se tornaram ícones do apavorante, da extrema violência e da crueldade na cultura ocidental. Muitos filmes, romances, peças de teatro e até mesmo poemas4 foram feitos sobre o extermínio como partes de diferentes mensagens e mostrando os acontecimentos sob diferentes vieses.5 Até então o tema não tinha aparecido nos desfiles de escolas de samba.
A liminar foi apresentada pela Federação Israelita do Rio de Janeiro alegando que o tema da Shoah era inapropriado para um desfile de carnaval, que tem espírito festivo e de alegria, humor, descontração e erotismo. Os desfiles não seriam lugar apropriado para pensar o horror – nem sequer sob a forma da questão sobre o corpo arrepiado – já que estão confinados à festa, onde não caberiam certos pensamentos. A liminar insinua que o tema da Shoah cabe em filmes, romances e até em poemas – mas não em desfiles de escola de samba. Que pensamento foi este que impediu a exibição do carro preparado pela Viradouro para representar a catástrofe? Aquele quinto carro teve que ser substituído por uma alegoria sobre a censura onde se lia “Liberdade ainda que tardia – Não se constrói futuro enterrando a história” em meio a pessoas amordaçadas – e uma imagem de Tiradentes. O carro com a escultura dos corpos retirados da câmara de gás não desfilou. Em seu lugar, o arrepio da mordaça.
Um dos elementos alegados pelo pedido de proibição da exibição da alegoria pela Federação Israelita do Rio de Janeiro foi o plano do carnavalesco, Paulo Barros, de colocar um passista vestido de Hitler sobre o carro no desfile. Paulo Barros havia já inovado a noção de carro alegórico nos desfiles que fez para a Unidos da Tijuca desde 2004. A concepção de Barros era de introduzir elementos humanos na escultura das alegorias – e ao invés de passistas sobre um púlpito, ele introduziu dançarinos em grande quantidade fazendo movimentos sincronizados. Os sincronia da dança dava um elemento vivo à alegoria ela mesma, e os movimentos refletiam eles também elementos do enredo. Foi assim com o carro do DNA onde pessoas pintadas de azul faziam movimentos espiralados. Também foi assim com os amordaçados que vieram na alegoria que substituiu aquela que havia sido proibida: pessoas amordaçadas faziam movimentos sincronizados, não dançavam samba, não eram passistas. Na Viradouro, Barros pretendia com este enredo transversal, tentar pensar o arrepio que, como algumas outras reações corporais, responde a humores muito distintos.
A alegação da proibição, presumivelmente, era que os passistas estariam imbuídos de um espírito festivo ou uma descontração e alegria incompatíveis com a imagem do líder nazista. A ideia de que os elementos sobre os carros são sambistas alegres e descontraídos independentes do enredo da escola é talvez uma maneira de entender os elementos humanos em uma alegoria. A tendência recente – que começou com a introdução de fantasias inteiramente acopladas ao enredo para as baianas por Fernando Pinto na Mocidade Independente (em 1984, 1985, 1987) às comissões de frente coreografadas de Carlinhos de Jesus na Mangueira desde 1998 – é de que menos elementos do desfile sejam alheios ao enredo. O enredo e como ele é desenvolvido toma conta de todos os elementos do desfile. O desfile, assim, torna-se uma espécie de obra de arte total de rua, como veremos. De toda maneira, passistas habitualmente representam ou incorporam elementos do enredo da escola; quando estão sobre os carros alegóricos eles levam o ritmo comum do desfile às esculturas – já que o samba sincroniza os componentes do desfile. No caso, todos os passistas se associam ao tema comum do arrepio através do samba, “nem tudo são flores; há dissabores, infelicidades, vidas perdidas – neste mundo de maldade.” Claramente, a alegria e a descontração não são compulsórias para todos os desfiles – mas os passistas respondem ao que eles expressam com seu traje e, ao mesmo tempo, ao contexto em que o traje se encontra dentro do enredo. Ou seja, os passistas, como todos os elementos de uma escola respondem à sua parte do enredo – localmente às suas alas ou aos seus carros – e globalmente ao enredo como um todo expresso no samba. Sobre o carro dos corpos indo para o crematório, os elementos humanos iam também responder ao tema da alegoria e também ao arrepio, o enredo da escola. Como isto aconteceria na avenida ficamos sem saber uma vez que a alegoria foi interditada e substituída por outra.
Filmes, livros e outras manifestações sobre a Shoah já foram alvo de processos, críticas e boicotes.6 Na maioria dos casos, no entanto, o problema era como os episódios da catástrofe eram retratados – de um modo excessivamente indulgente, ou excessivamente cômico ou mesmo excessivamente descontraído. É como se o pensamento, que navega nas margens dos esquecimentos, das lembranças, das importâncias e das indiferenças corresse riscos e precisasse ser de alguma forma observado e monitorado de perto quando trata da catástrofe. Talvez porque, como Elizabeth Costello diz a Paul West no romance de Coetzee7, aquilo que escrevemos (ou filmamos, ou desfilamos) faz não apenas o público mas também a nós mesmos melhores ou piores. Observar e criticar a mensagem é uma maneira de dizer que o meio importa. No caso do desfile da Viradouro, no entanto, a alegação parece ser de que o tema não é apropriado de modo algum ao meio – não que disso não se fala assim em um desfile de escola de samba, mas antes que disso não se fala em um desfile de escola de samba de modo algum. Ou seja, o meio é inapropriado para o tema – não importa como ele seja tratado. O argumento da alegação parece ser que os desfiles de carnaval não são a forma apropriada de se pensar na catástrofe. Resta a pergunta, é claro, sobre o que é que pode pensar as escolas de samba desfilando na avenida.

2. Carnavais proibidos
A história dos desfiles das escolas de samba está repleto de episódios de censuras diretas ou indiretas, de proibições e de interferências de autoridades de toso tipo. A turbulenta história dos desfiles de escola de samba é uma trama de conflito com autoridades constituídas. Em 1937, por exemplo, um ato de um delegado, Dulcídio Gonçalves, interrompeu os desfiles na Praça Onze antes mesmo da Mangueira, do Prazer da Serrinha e de outras 14 escolas desfilarem. Os anos 30 foram anos pesados em que a repressão deu forma e conteúdo aos desfiles. Interferências de outras autoridades também afetaram os desfiles. Em 1960, a Império Serrano teve que modificar seu samba e o nome do seu enredo após representação da embaixada do Paraguai, já que o desfile, chamado “A retirada da Laguna” mencionava negativamente personagens e episódios do tempo de Solano Lopes. Depois de uma complicada negociação, a escola modificou seu samba e o enredo passou a se chamar “Confraternização Latino-Americana”, já que o governo federal da época dizia se esforçar para estabelecer políticas convergentes na região.8 Ainda mais dramático foi a censura nos anos do regime militar.9 Em particular, o famoso desfile da Império Serrano de 1969 (“Heróis da Liberdade”) que teve em seu samba, composto por Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola e Manuel Ferreira a palavra “revolução” substituída pela palavra “evolução”. Mais recentemente, no clássico desfile da Beija-Flor de 1989 (“Ratos e Urubus Larguem Minha Fantasia”), o carro que viria com uma reprodução do Cristo-Redentor foi proibido por interferência da Igreja Católica. Joãosinho Trinta, que havia preparado um desfile Brechtiano sobre a indigência e a suntuosidade na vida dos que desfilam na avenida, tapou o carro com pano preto e colocou sobre ele um cartaz onde se lia “Mesmo proibido, olhai por nós”. Ali, Joãosinho insinua que, para os artistas de rua, até mesmo os ícones de devoção são invocados indiretamente e, apenas através de um véu preto, podem abençoar. O sagrado tem que ser mantido longe da rua, protegido, ainda que por um pano preto, das hordas que, só assim, podem pedir sua proteção.
A proibição do carro da Viradouro orienta este texto. O arrepio, decidiu a liminar, não pode ser considerado por uma escola de samba levando em conta a catástrofe do extermínio em massa de pessoas. Além de uma possível incompreensão do que se tornaram os desfiles de escola de samba nos últimos 50 anos – e de como a noção de carnaval mobilizou a história do gênero – há duas questões importantes e relacionadas entre si que a proibição traz à tona. Primeira, se certos temas são de fato incompatíveis com a arte de rua que não poderia tratar de coisas pungentes, mortais, decisivas ou politicamente muito sensíveis. As ruas deveriam se contentar com as migalhas do que pode ser pensado. Segunda, se certos temas não podem estar associados ao espírito geral de folia já que esta invoca uma alegria e uma descontração incompatíveis com o pungente, com o mortal, com o decisivo ou com o politicamente muito sensível. Ou seja, a proibição convoca questões acerca da compatibilidade entre catástrofe e carnaval. E, considerando os desfiles de escolas de samba, acerca de se há uma tonalidade em que o catastrófico não pode ser pensado. Este texto não pretende muito mais do que se aproximar destas questões. Não se trata de responde-las ou solucioná-las, mas antes de torna-las vívidas.

3. Arte e folia
A arte urbana dos desfiles de escola de samba é uma evocação. O desfile é obra de arte total de rua que congrega música, dança, escultura, instalação, performance e teatro. Elementos de cada ala contribuem para um conjunto global que dá sentido a toda obra. Da maneira como conhecemos hoje, os desfiles tem talvez oitenta anos, mas sua natureza foi se transformando a cada década, a cada desfile. O elemento comum da evocação permitiu que os desfiles se transformassem de ranchos e blocos para a capacidade de desenvolver um enredo por meio dos seus componentes, dispostos em diferentes alas uniformizadas e, ao mesmo tempo, integrados pelo canto comum.
O desfile é assim um malabarismo de diacronias e sincronias: o enredo se desenvolve ao longo das alas e o samba-enredo fala de todo enredo, e é cantado repetidamente; por outro lado todos cantam juntos e todo tipo de elemento plástico dá unidade ao conjunto do desfile. É um malabarismo complicado que muitas vezes falha: o samba atravessa, os carros destoam, as alas se atrasam e criam brancos, o samba não empolga os componentes. O desfile das escolas de samba é morfogênico: inventa uma forma. Mais que isso, faz do espírito carnavalesco um ingrediente utilizado de diferentes modos para obter certos efeitos. Há elementos fixos (muitos deles estabelecidos pelos critérios mesmos do julgamento dos desfiles): samba-enredo, ala das baianas, mestre-sala e porta-bandeira, comissão de frente, bateria sem certos instrumentos entre outros. Estes elementos, contudo, servem de restrições para a composição – oferecem uma gramática a partir da qual coisas distintas podem ser articuladas. Por causa disso mesmo, os desfiles tem uma forma em grande medida aberta. Como toda arte aberta, o desfile de escola de samba está pra jogo: sua história é parte de sua forma.
Porém a proibição do carro da Viradouro em 2008 descreve os desfiles como tendo um compromisso com a folia, com a alegria, a descontração e o erotismo. A pressuposição, que seria independente do tratamento que fosse dada à catástrofe no desfile da escola, é que o terrível não pode ser tratado com descontração. Como se o erotismo próximo do massacre não pudesse produzir pensamentos diferentes daqueles da Repubblica di Salò. A pressuposição parece ser a de que não pode haver liberdade temática para os desfiles de escola de samba porque a forma dos desfiles em si mesma restringe aquilo de que pode tratar. O que a proibição do carro alegórico traz a tona poderia ser entendido em termos da natureza mesma da seriedade: temas sérios requerem tratamentos ou tonalidades de certa natureza? Ou, antes, aquilo que é instituído como sério, fica instituído assim apenas porque algo impede que apareça em alguns contextos eles mesmos menos sérios? Serão a alegria e o erotismo incompatíveis com alguns assuntos demasiado sérios que por sua vez não poderiam ser considerados senão sob certas condições que o carnavalesco e o popular não atendem? Será simplesmente que as escolas de samba são parte de uma baixa cultura que não estaria equipada para pensar em questões mortais?

4. Shoah e Maafa
Nos últimos 50 anos, os desfiles de escolas de samba aceleraram sua história no sentido de que passaram por muitas transformações – e transformações que derivaram em que diferentes coisas passaram a ser cabíveis nos desfiles das escolas. Um elemento importante introduzido pelos desfiles do Salgueiro de Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues nos anos 60 e início dos anos 70 foi os temas da história africana do Brasil. Pamplona, formado na Escola de Belas Artes do Rio e cenógrafo do Teatro Municipal, entrou no carnaval do Salgueiro em 1960 e procurou um enredo histórico ainda não abordado pelos desfiles no passado. Obteve naquele ano o primeiro título para o Salgueiro com o enredo sobre Zumbi dos Palmares. Em 1963 o Salgueiro ganhou outra vez o carnaval sozinho pela primeira vez com um enredo que tratava de Chica da Silva, como uma heroína negra. No ano seguinte, foi a vez de Chico Rei. O desfile de 1964 foi precisamente, portanto, sobre a Maafa – a catástrofe africana. A Maafa foi composta pela organização de campos de trabalho forçado em dois ou três continentes, pelo organização da vida das pessoas em função do trabalho produtivo, do tráfico sistemático de pessoas e do extermínio de todos os considerados inadequados para o regime de trabalho.10 Assim como a Shoah ou outras catástrofes, a Maafa também foi um episódio (longo) de escravização e genocídio cometido de maneira sistemática e legitimada de tal maneira que não havia espaço, no sistema escravagista, para nenhum recurso, nenhum apelo, nenhuma instância de implementação de justiça. Assim como a Shoah, a Maafa também é vista pela história dos vencedores como o massacre contra um povo (ou um conjunto dos povos). Do ponto de vista dos escravizados e dizimados, trata-se de um ataque sem razão nenhuma. Sem presságio. Sem antecedentes. Sem fio condutor. Como diz o samba do Salgueiro daquele ano, “um dia, ...[a] tranquilidade sucumbiu, quando os portugueses invadiram, capturando homens para fazê-los escravos no Brasil”. A história contada no enredo do Salgueiro – a de Chico Rei – é uma história de adaptação ao status quo escravocrata. O rei capturado compra sua alforria – e a alforria de seu pessoal – e depois compra terras e tem escravos, adota o nome de Francisco e se converte ao catolicismo e, por fim, ergue a igreja de Santa Efigênia do Alto da Cruz em Ouro Preto, uma igreja para os negros alforriados. Trata-se de uma história de cooptação do escravo – mas também, como viu o enredo de Pamplona, de uma história negra de êxito. Uma história, contudo, traçada pela migração forçada, pelas mortes precoces e pelo assassinato dos inábeis. Também pela destituição de toda uma maneira de pensar e de saber – a cooptação de Chico Rei coroa um epistemicídio sistemático.
Os carros de navios negreiros, com todo seu sofrimento e desolação, passaram a se multiplicar nos desfiles. O tema já havia sido enredo do Salgueiro em 1957 (“Navio Negreiro”), e continuou sendo uma constante nos carnavais. Por exemplo, em 2012 dois carros exuberantes de navios negreiros entraram na avenida, da Beija-Flor (em “São Luís – Poema Encantado de Amor”) e da Vila Isabel (em “Você Semba De Lá Que Eu Sambo De Cá – o Canto Livre de Angola”). Nestas alegorias, frequentemente há passistas que seguem a cadência da escola, sorriem e dançam. Talvez se possa dizer que a presença dos navios negreiros banalizou a Maafa e que, talvez, a liminar procurou evitar que o mesmo se desse com a Shoah. O argumento não está presente nos documentos que nortearam a proibição do carro alegórico da Viradouro em 2008 que não faz nenhuma menção à Maafa e nem sequer ao que aparece nos desfiles das escolas nos últimos anos. Porém o argumento em si mesmo é duvidoso: os muitos carros alegóricos fizeram parte de uma presença constante do tema da catástrofe africana no carnaval em um país onde não há sequer um museu dedicado ao massacre perpetrado pelo status quo brasileiro e por seu antecedente colonial. Ainda que possa ter banalizado a associação entre carnaval e navios negreiros, as alegorias fixaram na cabeça do público que foi através de navios de concentração que a população africana chegou para quase toda morrer nos campos de trabalhos forçados no Brasil. Os carros também evocam a destituição dos coletivos que foi a catástrofe africana. Talvez um efeito similar pudesse ser alcançado com alegorias como aquela que Paulo Barros tentou colocar na Sapucaí. Talvez a história de muitos judeus, ciganos e outras vítimas da Shoah no Brasil ficasse evidenciada e refletida pela alegoria. De todo modo, aquilo que os desfiles promovem é múltiplo: é da ordem de um resgate de uma identidade, mas também da capacidade de crueldade, da memória e, potencialmente, do arrepiante.11
Desde o Estado-Novo, haviam determinações de que os desfiles se limitassem a enredos nacionais e a temas que surgissem da história (oficial) do Brasil. Os desfiles do Salgueiro nos anos 60 e 70 introduziram muitas modificações junto com a temática da história africana. A imagem também era de que os desfiles eram uma manifestação folclórica mais ou menos estável e estática. Nada como uma obra de arte total parecia estar em jogo nestas determinações. A partir dos anos 1960, os desfiles começaram a fazer mais do que ecoar a história aceita, mas também a pressioná-la, encurvá-la, apresentá-la a contrapelo de modo que os heróis negros preponderassem (como o carnaval mencionado de Zumbi dos Palmares em 1960, Aleijadinho em 1961 e como na história da liberdade no Brasil em 1967). Em 1971, com “Festa para um rei negro”, a escola tratou do primeiro rei negro reconhecido internacionalmente, Haile Selassie, o Ras Tafari.
Lentamente, desde os anos 1930, quando o enredo era uma quesito relativamente de menor importância no julgamento dos desfiles, os carnavais passaram a tratar de um tema. Também ao longo do tempo, os desfiles passaram a ser embriões de engajamentos e, ao mesmo tempo, passaram a se relacionar, graças a Pamplona e Rodrigues, com a comunidade artística do Rio. Gradualmente, os desfiles passaram a ser assinados e o enredo passou a ser um elemento motriz de todos os outros – ficou consolidada a ideia de que os desfiles tinham autores que tratavam os enredos. Estes eram os carnavalescos que passaram a imprimir suas marcas nos desfiles – as cores de Max Lopes, as alegorias leves de Rosa Magalhães, os metálicos de Fernando Pinto etc. Os carnavalescos passaram a ser disputados pelas escolas com base em sua obra passada. Os desfiles deixaram de ser então tanto arte coletiva de uma comunidade, e passaram a ser, implementados por uma comunidade estruturada de músicos e dançarinos, uma manifestação de autor.

5. Carnaval de autor
A ideia de um carnaval de autor pode ser comparado com aquela de cinema de autor. No cinema de autor, o filme inteiro é assinado: fotografia, roteiro, direção de elenco, cadência. Tudo é assinado e, assim, ao invés de uma arte cooperativa, os diretores deram aos filmes com suas marcas pessoais. Em particular, a partir dos anos 1960 – o tempo de Pamplona no Salgueiro – o cinema de autor se difundiu com diretores provenientes do neorrealismo italiano, da geração alemã de Fassbinder e Herzog e no cinema novo brasileiro. A difusão do cinema de autor teve muita relação com a imagem de cinema como forma de arte completamente clara no Cahier du Cinéma que pautou a Nouvelle Vague francesa. Truffaut, naquela publicação, investia contra alguns roteiristas consagrados em um realismo psicológico envelhecido e abjeto.12 Este era o ponto nevrálgico do argumento: os roteiristas até então ditavam o teor da produção, restava ao diretor ser um burocrata dos enquadramentos. Com a montagem insubordinada, personagens sedutores e movimentos de câmera insinuantes, o Bout de Souffle de Godard virou o paradigma de cinema de autor. A reviravolta pode ser entendida aqui como uma rebeldia do diretor contra a trama pronta, contra o roteiro imperativo. Algo parecido pode ser dito da intervenção da geração de Pamplona (e de Rodrigues, mas também de Maria Augusta, Fernando Pinto e Joãosinho Trinta). O Salgueiro foi um laboratório que permitiu usar os desfiles para experimentar elementos plásticos, materiais, temas, cores e até passos de dança como a ala de dançarinos de minueto levados para avenida em 1963. O Salgueiro introduziu o elemento de experimentação nos desfiles, desafiando os aspectos formulaicos arraigados na maneira como os enredos eram apresentados até então. Por isso mesmo, aquela geração abriu caminhos para um carnaval de autor em que o tema importa menos do que a montagem, a disposição das alas, a ousadia dos passos e a insinuação dos materiais.

O carnaval de autor e sua experimentação tornou o carnaval vivo e instigante – não se trata mais de uma repetição de uma fórmula, mas de uma negociação original a cada ano com restrições impostas pela história, pelo regulamento e pelo traço do autor. Como manifestação artística, o desfile passou a poder ser lido como uma obra de arte total também no sentido europeu: a expressão de um autor com uma ideia na cabeça e seus recursos de expressão na mão. Há, ainda, um elemento relativamente alheio ao cinema de autor e outras formas de arte total: a presença de um corpo de jurados que a partir de dez quesitos determinam qual é a melhor escola que se apresentou nas noites de desfile na Sapucaí. Um paralelo direto deste jurado pode ser encontrada na forma de arte total das tragédias áticas que se apresentavam em um festival competitivo na cidade (rural) de Dionísia. Ali, os autores se esforçavam para ter um bom desempenho competitivo, e isto acontecia se eles conseguissem inovar dentro dos elementos estabelecidos do teatro grego. A competição, em ambos os casos, oferece um outro limite à experimentação – ela tem que se enquadrar em expectativas de quem julga. O cinema de autor também responde a este tipo de restrição: há o público a ser satisfeito, e há os festivais de cinema que premiam anualmente alguns filmes. Assim, Cannes ou Berlin funcionam um pouco como os certames de Dionísia ou da Sapucaí: oferecem parâmetros com os quais os autores negociam. É sempre uma negociação complicada onde frequentemente dois passos a frente são sucedidos por um passo atrás – certas inovações de vanguarda são lentamente assimiladas pelos filmes, e carnavais, ao longo do tempo.
O carnaval de autor negocia com estes parâmetros de diferentes maneiras. Assim, desde os anos 1960 e sobretudo ao longo dos anos 1980 e 1990 muitas inovações foram premiadas e muitas outras condenadas pelos jurados. Se “Kizomba – A Festa da Raça”, de Milton Siqueira, Paulo César Cardoso e Ilvamar Magalhães conquistou o título para a Vila Isabel em 1988 introduzindo todo tipo de materiais e cores africanos – da palha ao barro das construções de Timbuktu –para substituir os paetês e brilhos tradicionais do carnaval, o “Ratos e Urubus” de Joãosinho Trinta, talvez o carnaval mais inovador de todos não deu o título à Beija-Flor em 1989. A ousadia de Ney Ayan na Império Serrano em 1991, com “É Por Aí Que Eu Vou”, onde caminhões não decorados cruzaram a Sapucaí sem disfarces para tratar dos caminhoneiros, foi penalizada com a saída da escola do Grupo Especial. Em todo caso, não são os temas propriamente que decidem o destino dos carnavais, é antes a maneira como os temas são desenvolvidos na avenida, como o enredo é desenvolvido e como a inovação da realização negocia com os parâmetros fixos estabelecidos e com a história dos desfiles.

6. Carnavalização e sacralização
O apelo a ideia de um carnaval de autor talvez sirva para tornar o desfile de escolas de samba mais próximo das formas de arte total como o cinema onde podemos atribuir a responsabilidade não a um coletivo mas a quem assina. Esta aproximação permite perguntar porque a Shoah não pode aparecer em um desfile de escola de samba se aparece em filmes (e poemas, romances e peças de teatro). Uma questão mais ampla é se a interdição da Shoah se aplica a qualquer forma de carnaval e se, mesmo se ela pudesse ser tratada por autores, ela ainda assim seria tema inapropriado para expressões de arte coletiva. Essa questão ampla diz respeito à compatibilidade mesma entre catástrofe e carnavalização, entre assuntos viscerais e a descontração da folia. O carnaval tem uma tradição de abordar temas proibidos e até macabros.13 A carnavalização é um artifício que deixa os temas mais palatáveis e permite que, permeados de uma euforia por vezes desvairada, outras vozes sejam ouvidas, outras perspectivas possam ser canalizadas. A carnavalização é uma desarrumação que torna explícito a fragilidade das construções a partir das quais vidas são moldadas. Ela expõe um gradiente de arbitrariedade que torna sério o seu objeto – neste sentido, ela contrasta com o que é sagrado que é colocado fora dos limites14 (em particular, fora dos limites dos processos carnavalizadores).
Sem explorar os dispositivos de carnavalização, este texto se restringe aos desfiles de escola de samba no Rio de Janeiro e engaja o carnaval de fato em uma forma autoral e de fácil leitura para quem entende arte como tendo assinaturas individuais. É neste contexto que é interessante pensar no que conduz a proibição do carro sobre a Shoah, em comparação tanto com a presença ubíqua de elementos alegóricos sobre a Maafa – talvez em algum sentido carnavalizando-a – quanto com os filmes e textos que, também autorais, fazem uso da catástrofe para conduzir uma trama. Com diferentes intensidades de carnavalização, os desfiles propõem-se a abordar assuntos, a fazer associações, a considerar elementos conjuntamente e a olhar alguma coisa de um modo inusitado. Trata-se de um empreendimento estético – é a estética que apela, que conclama e que engaja em uma obra de arte total. Por isso, ela tem sua força. Proibir a estética dos desfiles de trazer a baila uma catástrofe é desacreditar na sua capacidade de encontrar um modo original ainda que apropriado uma questão.
Talvez se possa dizer que a Maafa e a Shoah são diferentes porque a última ocorreu há mais tempo e assim é menos parte de uma história recente. Primeiro, há que se considerar que a distância cronológica entre 1888 e 1957 de um lado e entre 1945 e 2008 do outro não é tão marcada. Porém, mais importante que isso, é que a história e suas marcas são presente tanto quanto passado: os vestígios destas catástrofes estão presentes hoje como em 1957 e como 2008. Ou seja, estas catástrofes modelaram muitas instituições, práticas, subjetividades e estruturas políticas de hoje. Ambas tiveram enorme impacto para além das supostas identidades de suas vítimas – e ambas marcaram o destino dos descendentes destas pessoas. Talvez a diferença esteja antes na imagem mediatizada de uma tragédia – uma imagem oficial que substitui os poucos minutos de filmagem dos campos nos dias seguintes à Liberação. Há uma visão da Shoah, composta por crematórios, câmaras de gás, cercas eletrificadas e kapos que trabalhavam pelo privilégio de comer o suficiente. Esta visão, seguramente aterradora, está vívida e presente graças a presença da catástrofe na mídia. Já a Maafa parece distante porque suas marcas foram apagadas e nem sequer há uma imagem icônica dos navios transportadores de gente ou dos açoites genocidas a que eram submetidos os insubmissos e os incapazes. As catástrofes procuram destruir suas marcas, e em geral conseguem. Que uma catástrofe tenha conseguido imagens icônicas que a tornem vívida na memória coletiva não deveria deixa-la mais presente que outras, ela apenas está mais nítida – e este é o efeito da imagem mediática que a relembra.
Parece que o que está em jogo na proibição – como no caso do Cristo Redentor da Beija-Flor de 1989 ou da revolução da Império Serrano de 1969 – é que o que é tomado como sagrado não pode ser alvo de carnavalização. O sagrado é precisamente aquilo que deve ser preservado – aquilo que merece seriedade, merece ser poupado de toda operação que o faça ser pensado junto com outras coisas. A Shoah adquiriu um elemento de sagrado – o que, em certo sentido, preserva sua memória mas ao preço de deixa-la impensada em alguns contextos. Olhar para a memória é Uma questão que aparece é se a sacralização (dependente de instituições que sacralizam) é o melhor a se fazer com a memória da questão ou se o caminho da multiplicidade e da proliferação de referencias ao evento presta um melhor serviço à difusão por meio de sua maior dispersão. Outra questão, no entanto, se aplica a Maafa: ausente dos espaços instituintes de sacralização, ela fica completamente disponível para ser carnavalizada?
A sacralização é anátema da carnavalização: o sagrado é o intocado pelos dispositivos que produzem carnaval. Os desfiles de escolas de samba do Rio, no entanto, criaram uma outra matriz de sacralidade cristalizada em sua estética e em sua história. Trata-se de uma sacralidade alternativa aos mecanismos de sacralização das instituições: a estética tem uma capacidade persuasiva porque ela desloca o sagrado, reinventa as inteligibilidades. A matriz de sacralidade dos desfiles impõe restrições internas ao que pode acontecer no Sambódromo em dia de carnaval. Este texto procurou enfatizar esta matriz focando no gradual surgimento do desfile de autor onde a obra de arte total de rua é assinada. Este foco fez perder de vista um pouco da generalidade dos processos de carnavalização em prol de tornar os desfiles mais próximos de outras formas de arte total, em particular do cinema. Os desfiles de escola de samba, deste modo, aparecem vividamente ainda contrastados com artes totais alheias à carnavalização. Este contraste ilumina outro, entre a catástrofe judaica e a catástrofe africana como temas que por sua vez permite ver como há mais de uma medida para o que pode sair na Sapucaí. Afinal o que ainda falta na história estética dos desfiles de escolas de samba para que eles possam parecer capazes de pensar qualquer catástrofe, independente de credo ou raça?

Referências
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AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz, São Paulo: Boitempo, 2008.
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COETZEE, J. M. Elizabeth Costello, Londres: Vintage, 2004.
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CRUZ, T. P. As escolas de samba sob a vigilância e censura na ditadura militar: memórias e esquecimentos, Tese defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
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Humphrey, C. The politics of Carnival, Manchester: Manchester University Press, 2001.
LE BERRE, C. Truffaut au travail, Paris: Cahier du Cinéma, 1994
ROBERSON, E. The Maafa and beyond, Columbia: Kujichagulia, 1995.
SEXTON, A, The Awful Rowing Toward God, Boston: Houghton Mifflin, 1975






giovedì 24 gennaio 2019

O interlúdio colonial (rascunho de um roteiro)


Este texto orienta um pouco minha cabeça enquanto fazemos o filme Presságios de um continente ekeko.

A exigência comunista:
Dar cabo ao interlúdio colonial



Que se conte outras histórias, uma história sem aceleracionismo:

Antes do bacilo colonial, havia paz e guerra e fartura e miséria na vida dos agrupamentos humanos no planeta. Os agrupamentos humanos, aliás, eram quase sempre bosques, florestas, desertos e enseadas onde viviam outros agrupamentos, enredados nos humanos que por sua vez eram eles mesmos híbridos, cheios de espíritos, animais, vegetais. Haviam comunidades com todo o poder – o terrível poder, injusto e destruidor. Trata-se de um tempo que já desapareceu nas brumas das nossas histórias de progresso que deixam para trás incapazes e primitivos e antiquados. Nestas comunidades havia protagonismo, cosmogênese, apocalipse. As comunidades inventavam engenharias sociais para lidar com seus integrantes e com as demais comunidades – modos de encontrar o que comer, modos de lidar com o sofrimento, modos de gerenciar libido, modos de deixar marcas no que há ao redor.

O colonial entra em cena com os impérios, centralizadores e que anexam o território do comunal e saqueiam parte de seus poderes. O comunismo é gradativamente mas forçosamente substituído pelo imperialismo. Esta substituição não é a marca da necessidade de um progresso ou a marca de um avanço. É a marca de uma dinâmica que ocorre nas comunidades que se apoiam na desigualdade. O acúmulo da vida comunitária tende por vezes a intensificar justiça. Não porque a comunidade tende à justiça, mas porque a comunidade é capaz de encontrar soluções e de melhorá-las. Quando uma minoria privilegiada atua para se ater a seus privilégios, ela pode atentar contra a comunidade. O comunismo é combatido em cada caso pela defesa de privilégios; do passado com respeito ao presente, do já obtido com respeito ao que está sendo obtido. Assim surge a propriedade, ela é uma espécie de destacamento do comunal, um saída para fora do comum: uma vacina contra o comum, contra oferecer uma munição comum, uma imunidade.

Quando as comunidades são anexadas por impérios, os mandatários de fora regem não mais que os semblantes, os tributos externos, o que sai das comunidades. O colonial que intenta saquear o poder das comunidades tem que negociar com elas – tanto para vocês, tanto para o déspota; tanto para o local, tanto para o nacional. É preciso conviver com o comunal que ainda guarda alguns de seus poderes já que é nele que está o tessitura da vida (a produção, a reprodução, os afetos, a produção, os desejos, as rotinas) ainda que a administração da justiça, a segurança e poder sobre quem pode continuar vivendo tenha sido tomado pelo imperial. O colonial se ressente do imperial porque ainda há margem para o comunal.

O colonial fica a mercê dos poderes das comunidades – de suas revoltas como as da Alemanha de 1525 ou da Bolívia de 1781, de suas tramas intestinas como a dos proletários que Pasolini descrevia como tendo uma vida própria mesmo sob o fascismo (dos fascistas) ou dos Yorubás nas Américas em seus rituais secretos e seu conhecimento subalterno e resistente das ervas ou de suas associações como as corporações de ofício dos artesãos europeus ou as aldeias indígenas com seus diferentes graus de intensidade. Se as comunidades lutam por justiça, a convivência imperial entre elas se torna excessivamente custosa. É preciso encontrar uma forma de vida imperial que as desmantele, que prescinda delas, que as dissolva.

O colonial então dá origem ao capital. O capital é o braço do colonial que dissolve as comunidades, que as transforma em indivíduos que não podem senão vender sua força de trabalho. O cercamento do que é comum e a destruição do conhecimento sobre o que é comunal – humano e não-humano – inventa indivíduos e famílias isoladas. O capital gradativamente destitui os elos comunais, combate os vínculos e apegos entre pessoas e entre pessoas e lugares, plantas, animais, minerais. Trata-se de tratar tudo como recurso, como dispositivo, como à disposição. O capital retira para o colonial tudo o que sustenta as comunidades. É um exercício que demora séculos, mas que se acelera. Vocês ainda não viram nada.

Teses sobre o interlúdio colonial

1. O colonial inventou o capital.
2. O colonial desautorizou a vida comunal, ele opera por desterritorializações, esse é o seu território. Mas seu território não é um terra-de-ninguém ou é terra arrasada. Quando ele promove desenraizamento, ele distribui a falta de imperativos para os que o ajudam e a falta de alternativas para os que ele expolia. A falta de alternativas não é a falta de raízes firmes, é a falta de nutrientes.
3. O colonial é o avesso do comunal.
4. O colonial é a substituição acelerada (ainda que por vezes gradativa) do protagonismo pela minoridade.
5. O colonial retira de suas vítimas os meios e inculca nelas o único fim de ter de alguma maneira de ter de volta os meios.
6. O colonial faz o que toca virar café-com-leite.
7. O capital é a infecção criada pelo bacilo do colonial mas não é nenhum progresso, é a substituição dos lugares de poder das comunidades locais – como a Bastilha e como o conselho dos anciões de que fala Chinua Achebe – por lugares de poder do capital global que não estão de fato em parte alguma. É a invenção da parte alguma. E inventar a parte alguma significa inventar a terra arrasada, uma terra que não manda, não comanda, não começa. Extrair das comunidades suas capacidades.
8. O colonial está no Ocidente que precisou recebê-lo queimando bruxas e destruindo as terras comuns – como nas Américas destruiu os xamãs e as aldeias - como está no Banco Mundial e na ciência da economia.
9. Não importa se a colônia reverencie sua metrópole ou qualquer outra – importa é estabelecer a reverência à metrópole. A metrópole ela mesma se torna invisível, desterritorializada, não-localizável e aceleradamente mas gradativamente imperceptível. A colonização é uma diluição do protagonismo.
10. O colonial atua tornando os elos comunitários rarefeitos, sem importância, sucursais, vassalos. Torna as capacidades das comunidades perpetuamente dormentes.
11. O colonial tem um parceria com o nada. O niilismo é um hóspede das religiões da salvação, da vida eterna e da insuficiência do presente. O niilismo é o mestre de cerimônias da espreita; do estado de esperar a hora do bote. Quando ele vem, não é mais o que fazemos que importa, é o que fica feito, são as presenças colossais que podem, como as religiões da salvação, da vida eterna e da insuficiência do presente, sobreviver ao nada roedor.
12. O colonial, parceiro do nada, produz o rarefeito. Condensa a intensidade do que está sendo feito pela maior intensidade do capital que é o que fica à salvo do nada. A aventura do pensamento ocidental é a aventura de um pensamento que não desenvolveu anticorpos para a rapina do nada. Com isso, não desenvolveu anticorpos para a rapina e se tornou refém do capital e, assim, do colonial. E a higiene que prescreve o capital é o cercamento do que é comum.
13. O colonial é uma infecção na vida comunitária, ele pode ser debelado.

Que se conte outras histórias, uma história sem aceleracionismo:


Ao fim do interlúdio colonial, as comunidades são reinventadas. Deixam de ser dispositivos de segurança e passam a ser fricções de abundância. O pós-colonial é neo-comunista: nele o que era comum se torna estranho, avesso ao mesmo. É que o capital transforma o comum em máximo fator comum. O máximo fator comum é a inteligência das coisas. A inteligência adquire muitas faces: o trabalho que se destaca da vida, o procedimento que se destaca do processo, o raciocínio que se destaca do corpo, o artificial que se destaca do natural, a trama que se destaca do aventura. Em todas estas faces, o comum se transforma no mesmo – a convivência em controle, o coletivo em impositivo e a sociedade em unidade. O capital produz o mesmo – ele é o agente performativo de um monismo, tudo é mesmo. Depois do capital, o neo-comunismo trata o comum como o avesso do mesmo; ao invés de mais do já visto, ele é a origem mesma do novo. O capital explicita a máquina de convivência e o sistema de segurança humano das comunidades. Depois dele, as comunidades se reinventam em associações de qualqueres.

O comunismo pós-capital pensa e age desinformado pela ideia de que há uma inteligência nas coisas que pode ser extraído dela. Antes do extrativismo da inteligência, as comunidades que sobrevivem à inteligência artificial, se comprometem em inventar maneiras de responder. O capital foi um suplemento às comunidades que transformou suas capacidades. Mais que isso, o capital introduziu uma abertura na comunidades – elas deixaram de ser fechadas, integradas, unificadas, compreensíveis para serem interrompidas, dialógicas, ch'ixi.