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domenica 22 dicembre 2019

Decurators 2019 em palavras

ARTISTAS, NATURALISTAS E NIILISTAS NO DECURATORS EM 2019


A arte é desde seus inícios uma roupa da natureza – ou um apetrecho da natureza – do grego traduzimos como arte a palavra techné. E Aristóteles começou a contrastar esta palavra com outra, a physis, que convertemos em natureza mas antes talvez na natureza das coisas. Aristóteles, ele mesmo, admitiu techné não é tão alheia à physis; e assim, se a arte faz esconderijos para a natureza é talvez porque physis, como dizia Heráclito, ama esconder-se, tem uma compulsão ao recôndito, ao disfarçado, ao segredo. Para tanto, ela precisa de artimanhas – que talvez traduza a palavra techné. Toda artimanha procura escapar da natureza das coisas – assim as pedras que substituem o comprimido nas cartelas de remédio no trabalho de Valéria Pena-Costa1, ou os espelhos e os ganchos que suspendem o dinheiro nos trabalhos de Cirilo Quartim2, ou ainda a expedição de volta ao mundo que perambula pela Avenida das Nações no trabalho do grupo Vaga-mundo3. Essa escapada é talvez natural, mas às artimanhas se consideram artifícios que suplementam a natureza (das coisas) ao invés de segui-las. Mas talvez a natureza das coisas seja já ela mesma um suplemento às coisas, uma artimanha delas, um artifício que elas engendram.


Gisel Carriconde Azevedo, porta-bandeira e mestre-de-cerimônias do deCurators, tentou contrastar em duas das exposições do ano uma imagem da tecnologia-catástrofe com outra da tecnologia-benfeitora. No debate em torno da exposição Supranatural, que refletiria a imagem benfeitora em contraste com a imagem que teria se desprendido da exposição Hiperfluxo, a conversa foi na direção das utopias distópicas, das hostilidades hospitaleiras, dos remédios venenosos. Há uma palavra também grega para a artimanha e o artifício com a natureza das coisas: pharmakón. Que pode ser veneno e pode ser remédio. Há remédios que são venenosos quando a dosagem vai aumentando – como a sede de controle que se adiciona à natureza das coisas –, há venenos que são vacinas e há talvez também venenos que em doses maciças podem se tornar remédios. Cada artifício – cada técnica, cada aventura fora da ordem estabelecida, cada trabalho de arte que abre portas e cada experiência sublime talvez – é um pharmakón. Ou seja, hostil porque hospitaleiro, utópico porque distópico, venenos que remediam.

Em consonância com o contraste ressaltado por Gisel, a tecnologia – benfeitora catastrófica ou catástrofe benfeitora – aparece nos trabalhos de Hilan Bensusan & Raísa Curty e de Tiago Botelho4 como veneno sedutor.


Por outro lado, ela pode parecer remédio nos trabalhos de Renato Perotto e Malu Fragoso5 – trabalhos que apontam para a possibilidade da retenção da memória diante dos atratores do esquecimento e da expansão do conhecimento diante do recôndito. A insistência do pharmakón encoraja o sentimento de desastre – o envenenamento progressivo de tudo – tanto quanto o de redenção – o veneno redentor que ao fim e ao cabo, se bem que só ao fim e ao cabo, trará os bons ventos. A erótica da tecnologia é sempre aquela das promessas; ela aparece como uma invasão de um futuro à meia-luz que torna o presente subitamente insuficiente.

Nietzsche é talvez o nome da aposta da arte contra a natureza – ou do artista como sucessor do naturalista. Este ano se popularizaram aplicativos de caras artificiais, de paisagens artificiais, de registros artificiais – e as aplicações das verdades artificiais. O processo que Nietzsche via era de que as coisas naturais – incluindo as humanas – iam se tornando sem viço porque se mostravam cada vez mais redundantes e multiplicáveis uma vez que seu modo de operação era extraído pelo esforço de tomar de assalto a inteligência do mundo. Esse processo niilista era aquele que nos faz preferir satisfazer uma vontade de verdade a respeitar as coisas naturais – incluindo as humanas. É o processo que mata Deus (apaga o horizonte, desconecta a Terra da Lua, seca o mar). Quando ele avança, sobra apenas o artificial – os artifícios, as artimanhas, a arte. Pronto, apenas soçobram os espíritos livres (de natureza) que pastoreiam uma vontade de poder. Esse processo é o que dá combustível para a tecnologia: tornar as coisas naturais – inclusive as humanas – disponíveis ao controle, postas à disposições, tornadas em dispositivos.

Os trabalhos de Maurício Chades e Krishna Passos6 manipulam as forças que fazem as coisas naturais operarem para produzirem efeitos sublimes, ou sublimados. Para isso, eles arranjam essas forças em formas como os escultores em matéria-prima estendida. Se a techné se destina aos espíritos livres – e os espíritos livres são artifícios titânicos – é aqui que ela se satisfaz. Se ela se contrapõe à natureza – ao invés de ajudá-la a se esconder – é aqui que ela não está mais em treinamento. “Tenho a técnica só dentro da técnica, fora disso” duelo com a vontade de poder mais. A tecnologia é uma infiltração na natureza para transformá-la em: a) natureza morta, b) arte (em proporções cósmicas, telúricas, tectônicas, genéticas, neuronais, hormonais), c) Nenhuma das acima. Talvez todos os artistas sejam mesmo desterrados; a serviço da alquimia a mais fria: dar asas às vontades de poder as mais caprichosas, as mais obsessivas, as mais feiticeiras e as mais mandonas – e depois voar. Por isso falam de revolução permanente. Ou invisível.

Hilan Bensusan
Brasília, 21/12/ 2019

1. “Para tirar as dores do mundo”, ciclo Do sofrimento, das injúrias e da verdadeira paciência. 10/ 2019
2. “Mangos”, ciclo Hiperfluxo: Vocês não viram nada ainda. 06/2019
3. “1080 Dias Parte 1”, ciclo deCurators pesquisa . 09/2019
4. “Niilismo: Capital” e “O segredo do futuro”, ciclo Hiperfluxo: Vocês não viram nada ainda. 06/2019
5. “Nysa Canta” e “S.H.A.S.T modulo 3”, ciclo Supranatural. 11/2019
6. “Arco-íris de Brasília” e “Epicentro: biótica celeste”, ciclo Supranatural. 11/2019

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