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sabato 3 agosto 2013

O andarilho pelo plateau

Hoje estive andando como andarilho pelo eixo rodoviário sul, Brasília. De pouco antes das 7 até pouco depois das 8 entre a 16 e a 2. Encontrei gravetos, cigarros, camisinhas, anúncios de aulas de hieróglifos e muitos carros. Levei cachaça e água.

O Andarilho no Plano

Plano geral: o andarilho anda pela faixa central do eixo rodoviário do final da asa sul ao final da asa norte com um saco de pano a tiracolo. Camera dentro de um carro em zig-zag, entra no eixo, sai do eixo pela agulhinha, volta pela tesourinha etc. Microfone de bolso no andarilho. O andarilho para as vezes, tira uma toalha de chão do saco de pano e serve uma garrafa térmica e uns biscoitos Maria.

Texto

Um andarilho no plano.
Carrega uma trouxa verde. Traz suas coisas com ele, as coisas que vêm com ele, que não ficam pelo caminho, aquilo que lhe importa. Ele chega. Está chegando. Pisando neste plano. Chegando nesta encruzilhada.
O andarilho não sou eu, ele é um intruso, e também eu sou um intruso nele. Ele me assola. Ele me encontra. Eu topo com ele porque ele deixa raspas, restos, pistas, no meu corpo, que se move por esse plano. Ele está chegando. O plano é uma encruzilhada. Como a encruzilhada do que existe. Imensa.
Que lugar é esse? Que lugar é esse onde tudo o que existe chega? Onde o que existe está – onde o que acontece tem lugar? Um chão. Tudo que tem lugar, tem lugar em um chão – em um endereço, ainda que seja feito apenas de letras e números. Uma encruzilhada de endereços. Uma encruzilhada de chãos. Onde tudo pode ser encontrado - o bloco de apartamentos, o apartamento, o morador que procura pela cozinha alguma coisa para colocar na boca, a bactéria que vive no chão da língua do morador, a outra bactéria que vive na membrana das células da primeira bactéria e que agora se agarra a um cisco, ínfimo e que, talvez, não ame. Todos são andarilhos nesta encruzilhada. Todos existem de alguma maneira porque estão em algum lugar nela. Todos, andarilhos. Todos homens do saco: andarilho eu, andarilho você, andarilhos em carros, em rodas, em pneus, na borracha dos pneus. Andarilhos, mesmo os que não andam porque estar em um lugar existindo de alguma forma, é estar neste plano aberto, exposto ao céu, exposto aos infinitos elementos. Estar exposto. Perambular por sobre o risco deste horizonte aberto. Este plano sem cobertura que é coberto apenas por um céu azul que não cobre porque não é céu e nem é azul. Neste horizonte em que nada é protegido. Nada é coberto. Nada é especialmente protegido. Nem sequer nós de nós mesmos, até às nossas fúrias, nossas próprias fúrias, até à ela estamos expostos. Existir é estar em uma encruzilhada. A encruzilhada dos existentes, a encruzilhada do que existe. Do que existe também. Porque existir é coexistir. Ser é estar em companhia. (Do que mais seja).
No aberto. No horizonte aberto. O aberto é o que deixa entrar. Deixar entrar significa recolher, acolher. Deixar entrar é hospitalidade, hospitalidade silenciosa, uma encruzilhada que não fala; mesmo as cidades muradas, mesmo as fortalezas e as guaritas estão abertas e em silêncio. Porque estão no chão e abaixo do céu – expostas à linha do horizonte. São contamináveis. São infectáveis. Estão à disposição. Pela linha do horizonte sempre podem entrar os forasteiros – os bárbaros, os ratos, os vermes, os mascarados, os refugiados, os visigodos, as moscas, os sarracenos, os turcos, os bacilos, os terroristas. A linha do horizonte – do horizonte da encruzilhada dos existentes – não tem guarita. E tem muitas porteiras. Cada coisa que existe tem as chaves de muitas delas – e pode trazer a tona muitas outras coisas. Cada coisa que há tem chaves para este cofre – cada coisa pode dar lugar a muitas coisas. Tudo o que existe tem vizinhos. Porque existir é coexistir. Não está imune a nada já que basta que alguma coisa adentre este horizonte para estar aqui dentro – dentre as coisas que existem.
De muitas maneiras. De muitas maneiras as coisas existem. Os barulhos, o medo, os corpos, os carros, os volantes, os freios, as pistas, os desvios, a velocidade, o imaginário, o pó, o noumenal. Tudo o que existe, existe de um modo. Mas todos correm riscos – o risco é o interior mesmo desta encruzilhada. O risco está dentro do plano, dentro da pista, está no corpo do andarilho. Eu corro risco. Eu ando no risco. Eu perambulo pelo risco, pé ante pé. Existir é estar na ponta dos dedos.
Um andarilho se apossou de mim quando eu vi este horizonte. Ele me apareceu já morto com seu saco verde nas costas. O andarilho me disse: vá até a encruzilhada – até a grande encruzilhada. Vá pelo caminho estreito, o caminho aberto mas estreito. A estrada de todos os propósitos. Estar na encruzilhada por um mandamento, ou uma compulsão, ou uma escolha. Uma voz que vem de alguma parte do aberto. De alguma parte.
Os caminhos precisam ser abertos. E continuar abertos. Os caminhos que estão marcados no chão. Pelos caminhos alguma coisa pode ser encontrada. O andarilho anda – topa com as coisas, encontra. Tudo o que há pode ser encontrado. Chegar em um lugar onde há alguma coisa, onde alguma coisa tem lugar. Um andarilho não procura, ele anda. Ele não é movido pelo que ele busca, pela necessidade, pela falta. Ele produz um caminho. Ele abre um caminho.
Grita na rua a sabedoria
Nas encruzilhadas, nas pistas, nas ruas
Ela levanta a sua voz: até quando vocês vão amar a necessidade?
O andarilho abro um caminho, mesmo naqueles caminhos já abertos. Andando eu deixo os caminhos abertos. Andar é estar a disposição. Com toda a atenção de quem olha por onde anda.
Insolência, mesmo indolente, insolência.
Andarilhos trazem coisas nas suas trouxas. Têm suas companhias de caminho. Tem seus artefatos. Pequenos artefatos coletados, talismãs, amuletos, escaravelhos, conchas do mar, abridores de horizonte, abridores de latas, observadores do céu, cavadores de chão, fundamentos, estilingues, canivetes. Eles podem fugir porque podem andar. Não procuram. Andam.
Por isso eu ando. E ando a espera. A espera do último longo êxtase desleixado. Eu espero e eu encontro.
É assim que se espera um Messias. Um salvador. Uma segunda vinda. Uma última das vindas. Tudo o que encontramos pode ser um Messias. Há em tudo o que é encontrado uma messianicidade – do tamanho de alguma encruzilhada na encruzilhada de todas as coisas. Um objeto que eu encontro, pode me salvar de alguma coisa. Encontro pão, encontro água, encontro abrigo, encontro o seu afeto, o seu prato de comida, a sua hospitalidade, a tapioca que me ofereces, o café que me dás. Por vezes guardo as coisas no meu saco porque elas podem me servir depois. Ela podem me salvar não sei ainda de que riscos. Meu saco está cheio de messianicidade. Cheio do que eu já encontrei em outros chãos. Andar é encontrar. E se há um risco no interior de tudo o que há pela encruzilhada, há também uma salvação – não uma proteção, mas uma salvação. Cada instante requer um messias. Nem pode um messias que existe salvar alguma coisa a ponto de deixa-la a salvo de todo o resto e para sempre. O todo é aberto. O todo não pode ser trancado. O todo está exposto a tudo. Está sujeito a tudo. E o horizonte não se fecha, quem fecha o horizonte não está mais na encruzilhada – não é do tipo do que existe. Quem me trouxer a imunidade a tudo, me tira da encruzilhada. Tudo está na comunidade do risco. A messianicidade é o cuidado das coisas, um cuidado que não é aquele da segurança ou da proteção, é o cuidado da atenção. De quem olha por onde anda. De quem abriga. Ela vem de onde vem a hospitalidade deste plano aberto. O plano por onde passa tudo.
Tudo é lucidez e tudo absinto. (uma garrafa)
Estar jogado em uma encruzilhada, em uma encruzilhada existencial.
Há por toda parte elementos avulsos, ao léu. Existem espaços à toa no meio de toda ordem – meus olhos encontram estes pontos de fuga.
Eu perdi o amor pelas coisas com nomes. Prefiro os becos, os espaços entre as palavras, as entrelinhas.
Por que nos confortamos com os acontecimentos que recebem nomes (é doença, é roubo, é desmando)? Não fica menos sofrido porque a doença tem nome ou a opressão já foi diagnosticada. Mas as palavras prontas nos consolam quando queremos alguma coisa de mármore em meio às borbulhas do rio. Pelejar pelos bois soltos é abrir outras porteiras, desnomear as coisas pelo menos para que haja mais andarilhos e menos admiradores de estátuas.
O mundo não pode ser abreviado em parte alguma, nem numa coreografia de transformações, nem numa estratégia de combate, nem numa coleção de ordenamentos e menos ainda em um princípio universal de todas as coisas.
Há no mundo muitos pedaços que não se rendem a coisa alguma – nem à água, nem ao fogo, nem à terra, nem ao ar e nem a qualquer elemento da tabela periódica. E estes pedaços aparecem por toda parte. Não se rendem, mas infectam.
É que a encruzilhada não tem constituição, nem tem leis o horizonte, tem talvez muitos retalhos de leis, casuísmos, jurisprudências antagônicas, códigos em conflito. E é a encruzilhada que ama esconder-se entre os retalhos.
Já eu não sou mais que ponte.
No meio das coisas.
No meio.
No centro do eixo: uma personagem? Um andarilho.
Eu ando, eu encontro. Eu encontro carros, eu encontro pistas, eu encontro pedaços do chão. Encontrar uma coisa não é apenas encontrar uma descrição dela. É encontrar um horizonte aberto, algo que pode ser salvo de sua descrição. Algo que pode sair de sua órbita, como um astro desastrado, fora da estrela. Na natureza das coisas todas as órbitas desviam. É que as órbitas, como as descrições, são virtuais. É que delas também as coisas fogem. Tudo está no risco. À beira do acidente. À beira do horizonte de saída – por onde saímos de cena. As descrições são o que nos prende a um roteiro – não encontramos descrições. Nem o motorista descuidado, nem o andarilho incauto, nem o patrão insistente, nem o trabalhador explorado, nem o cobrador do ônibus, nem o germe me infectou. Encontramos tudo tendo um lugar, cada coisa aberta e exposta aos riscos: isto, este, aquele, ela, aquela, aquela que está ali. Apenas um lugar no meio da encruzilhada existencial das coisas. Encontráveis. Por onde eu posso andar. Já que existir é coexistir.
Encontrar.
Apenas as personagens do teatro aparecem para nós como descrições. Protegidas de nós. Imunes a todo o resto. O palco é um outro espaço. Ele sim está protegido: transcende à encruzilhada. O palco é um outro plano, não como este estendido sobre o horizonte existencial, mas planejado, como um plano piloto, como um mapa do plano piloto. No palco há apenas as descrições: caracterizações. Impersonificadas. O que é um palco? É um emaranhado de descrições impersonificadas – é um emaranhado, mas se emaranha estranhamente conosco. Um palco é um espaço outro – escravo de um roteiro, de um autor que embaralha as cartas. Um andarilho, descrito e impersonificado. Mesmo os andarilhos do passado nunca viveram na imunidade de um palco. Eles poderiam sempre ter escapado, parado, poderiam ter sido atropelados, enterrados. Poderiam ter parado de andar. Eles não cumpriam ordens de um único autor. Eles foram obra coletiva. No palco, há o autor – e um jogo de espelhos. No palco, há o autor no princípio e no meio e no fim. Fora dele, estamos a mercê da salvação, da encruzilhada e da messianicidade. E o Messias não pode ser autor já que existir é coexistir.
O homem do saco não é um autor.
O andarilho anda pelo seu plano, pelo seu eixo, pela sua pista. Solto.
Pessoa. Impersonificado.
Solto. Quando saímos soltos pela rua, nós fragmentamos o palco em cacos, espalhamos este espaço especial pela encruzilhada. Eu faço uma coisa existir – fora do espaço seguro, fora das bolhas de plástico, fora dos laboratórios, fora dos palcos.
Solta. No aberto.
No plano, na encruzilhada. Largada.
Eu – solto no horizonte.




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