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venerdì 16 agosto 2013

Trechos da coisa sobre a pele no Desfazendo Gênero, Natal

Não quero contar a minha história, isto seria contar a história do governo de mim, e portanto de um governante. Contar que pulsões me assujeitaram, que pulsões eu assujeitei. Sou sujeito sujeito a tudo. Contar dos vencedores e vencidos já que onde há governo ha campo de batalha. Minhas compulsões foram algumas crivadas, outras massacradas. Algumas delas me assolam sem eu sequer estender em sua direção vinte centímetros de trela. E aí é que são elas. As compulsões que ficam invisíveis. Que passam desapercebidas. Ainda que movam montanhas, que ajam à distância, que levantem órgãos, que encharquem salões. Foucault diz que na versão de Santo Agostinho, o descontrole da genitália foi a expulsão do paraíso. Mas então foi mesmo é a árvore do conhecimento. E a árvore da errância. Do conhecimento dos agentes do erro que, como traças, roem, roem, roem o sexo bem-nascido. O sexo dos governantes. Mas como contar a história dos governados que não seja a história de como eles foram governados? Uma pista: o desgoverno subjacente dos governados. O que eles fariam se não fossem colocados debaixo de uma matriz de inteligibilidade ou outra? E também quando apesar de toda a dedetização, eles seguem roedores, estraçalham, arrancam pedaços, escapam e não estão, por um lapso, a serviço do soberano que precisa ter a capacidade de sacrificá-los em nome de seu poder. O soberano precisa ter a capacidade de violência, uma capacidade de tirar as coisas do seu curso porque nem todo curso das coisas dá lugar para o soberano. (É este o tal lugar de fala?) O governo das coisas – como o governo de si – requer que seja possível o estado de exceção. Há governo porque há alguma coisa que precisa ser governada – que está sendo governada. Não quero falar de um lugar de fala que governa, queria antes deixar que fale aquilo não ocupa lugares de fala. Ocupa talvez lugar de falha. Lugar de erro. Ato de falha. Contar a história do cu é contar uma contra-história, do que nunca foi, do que se solta, do que elude. O cu é o negro da anatomia. É o subalterno onde se senta, que segura nosso peso e que não merece nem sequer que falemos de suas cagadas como falamos dos banquetes – ainda que as primeiras sejam, por vezes, muito mais baratas. Ele é o sombrio precursor, para nós deuterostômicos. Um ancestral das nossas peles, das nossas dobras, dos nossos orifícios, e nossa primeira relação com alguma coisa que entra e sai. A primeira porta aberta. Dela não esquecemos – mas ela é como Saturno, aquele que precisa ser substituído. Não mais a cagada: a fala.

Falo do que dribla a soberania da história humana – da história genital. Aquilo que pode estar a serviço mas não é o serviço dos roteiros com protagonistas genitais. Quero invocar os ingredientes, os outros pedaços da vida humana – os pedaços desumanos que poderiam ter formado a história de uma pansexualidade que não se fechasse em um apego às formas familiares. Que não fosse proprietária. Os ingredientes que são também precursores sombrios trazidos de um tempo onde não haviam espécies. Não haviam organismos fechados em conspirações de mesmos. De antes deste longo interlúdio darwinista, como chama Carl Woese: o tempo em que a vida se propaga e se transforma na velocidade das espécies. E sem espécies, não haviam gêneros. Os ingredientes que vêm de uma arqueologia profunda de um tempo de indiferenciados – uma arqueologia que precisa ainda ser inventada já que os microeros que herdamos deste tempo não são mais que o rebanho dos governados. A história destes ingredientes. Não de como eles foram governados. Não a minha história. Nem confissão e nem conficção. Não é sobre a noite em que eu troquei uma travesti perfeita por um pepino e uma garrafa de tequila. Não é nem sequer sobre os acontecimentos bêbados das madrugadas meio proscritas, não é mesmo sobre acontecimento algum. É sobre ventos. Os ventos que sopram mesmo que não movam as nervuras. Mas mudam a temperatura delas.

Invocar os ventos. Um pequeno sopro quente – dizia Sappho; da natureza dos contágios, das atrapalhações, das mudanças de temperatura, das intensidades. Ela sabia que assim vinham os microeros, da distância de um outrora que talvez só tenha existido se nunca houve começos. O erótico é um sopro na direção errada. É um pedaço de desgoverno. O desgoverno não é aquilo que escapa de uma mão e chega noutra. É aquilo que não chega. E porque não chega, tem parte com a abundância. Eu disse uma vez aqui no núcleo de germinação de pulsões que é Tirésias: a roupa errada do monge é a farda de Eros. O desgoverno também tem suas linhas de transmissão. Ele é andarilho pela pele. O ímpeto de conexão que tem a pele – a transfusão pela transfusão, de estados, de disposições, de miasmas. Fluxos invisíveis, apenas abertos às antenas xamânicas. A história do que não é visível, do que passa de pele em pele, de poro em poro, de voragem em voragem. Não a história dos corpos com fronteiras, mas o movimento de pulsões entre as linhas divisórias. As transgressões. As clandestinidades que atravessam os limites, como as partículas, os micróbios, os rastros que atravessam os corpos pele por pele, poro por poro. Não a história oficial dos corpos, mas a história friccional paralela das peles. É na fricção que transitam os desejos. Então não quero fazer nem confissão, nem conficção, mas talvez com fricção. É que a voragem tem a vocação das transmissões. Tem o gesto dos encontros cromossomiais. O cheiro da intensidade. É o que passa pela pele – como as pulsações, os calores, os cheiros, os sabores, os pigmentos de cor, as vibrações. A intensidade é como a musiquinha que fica na cabeça, que ressoa nos pensamentos, nas intuições, nos desvarios. É como os ritmos que se transmitem, que infectam – ainda que minhas curvas sejam diferentes das tuas, há micropulsões que se propagam das tuas dobras para as minhas dobras. Não há barreira que barre todas as micropulsões que carregam voragens, nem alfândegas, nem normas sexuais, nem caráter, nem a boa família, nem os bons modos. A intensidade vive das brechas que abre. Ela não é como as quantidades que são como blocos de pedra, ela é como um fluxo, como um líquido, como uma baba, como uma saliva, como uma ejaculação – quem controla ela? Ela abre seus caminhos, é andarilha sem rumo e que está sempre em chegança. Já que não chega. É assim a voragem. Tanto bate até que fura.

Errância. Erótica. É que a pele é uma antena local que vai se sintonizando por onde anda, por onde roça. É roçado. É a mágica que faz erguer o gênio da lâmpada. A trama dos desejos é subreptícia, ela pode ser batizada, trazida a família, colocada na ordem genealógica... mas ela surge da epiderme, da epiderme anal, oral, genital, da disposição de ser roçado, de ser muita pele, de estar à disposição da fricção. Em cada pedaço de pele tem alguns gênios da lâmpada. Tudo o que precisa de pele está exposto aos transeuntes, aos que transitam, às partículas de intensidade que vão e vêm. São os pequenos demônios que roem as substâncias. Traças. Vermes. Transmissores microssexuais. Desejinhos. Começos de compulsão. Eles sustentam as alianças – e as famílias, as instituições, as pátrias. São estes demonúnculos que deixa viva qualquer instituição. Viveiros de Castro contrasta a filiação (e o parentesco) com as alianças intensivas, demoníacas, as alianças que se impõem às leis da filiação – aquelas que se travam sem reconhecer os limites entre o humano – feito de normas – e o cruamente carnal. As alianças demoníacas são as que atravessam as fronteiras, que são impostas por uma microdiplomacia alheia às ordens estabelecidas. Elas se propagam como os vírus, como os germes, como os mosquitos e não reconhecem fronteiras. São forças que moram n’água e não fazem distinção de cor...

Por isso há cura gay. Claro, os desejos são infecções. Alguns estão à flor da pele, outros estão recônditos e podem precisar de muito roça-roça para emergir. São disposições. Não são posições fixas. Vão de um lado para outro. Ninguém aprende a ser gay, mas ninguém nasce sabendo. Errância. Erogênese. Ninguém aprende a ser gay – ou muxe, ou hijra, ou pottai, ou trans, ou nguiu´ – mas ninguém nasce sabendo. Não viemos aqui, diz Baudrillard, para reconhecer e sermos reconhecidas, viemos para receber e sermos recebidas. Recebam-me, ou me deixem receber quem eu tenha gana. O terrorismo é a arte do imprevisto. O errorismo é a arte do não-catalogado. Do que é um disparate e nem tem cabimento. Fora da casinha. O desejo ama esconder-se. A porno-errorista pensou que era sado-masoquista, que era goiabinha, que era travesti, quis ser baranga, boiola, Barbie e babadeira. Tava errada: era errante. O erro é pornô. Aquelas que tentam, tentam e são tentadas. Uma vida de tentação. Tentativa atrás de tentação. A porno-errorista também é terrorista, toca o terror do erro: e se eu não for hetero, quotidiano, fútil e tributável? E se eu não for o contrário de tudo isso, o contrário de qualquer coisa? A pornô-errorista concorda com Feliciano: há a cura gay. E há o contagio gay. E há o contagio hétero. E há a cura hétero. É que a microssexualidade não conhece fronteiras – e é dela, dos trizes que separam querer ter um pau para meter e querer ter um pau que me meta. A microssexualidade é a arte do roçado das peles.

Os espaços trans e os espaços inter são espaços das ligações. Mas a cura gay pornô-errorista não é a cura gay feliciana. Não é feita por especialistas em alguma scientia sexualis. É feita por uma intervenção microssexual sobre os desejos. E sobre a diferença como erogenética. A cura está na erogênese. Mas cura é um processo que vai para todos os lados – o cuidado. Sexo nunca é seguro: é aliança demoníaca. Seguro significa sine cura, sem cuidado, sem cura. A aliança demoníaca é a curadoria das partículas microssexuais. Feliciano sabe que sexo é infecção já que procura construir barreiras e barreiras ao contagio com sua homofobia. A paranoia anti-homossexual é a confissão da vulnerabilidade dos corpos às infecções das partículas de desejo. Em um vídeo recente sobre a violência dos travesticídios no Brasil, Luisa Marilac ameaça: mata um brota dez. A divergência é infecciosa. A diferença não pode ser contida com barreiras porque a natureza da coisa mesma é a fricção, é o contato de barreira com barreira. De pele com pele. Trata-se do conhecimento do erro. E o conhecimento do erro é a errância, é que o desejo é sujeito. A cura, o cuidado, é a prudência no caminho da errância que não encontra a segurança de uma identidade estabelecida como um ponto de repouso. Há cuidado em todo o caminho já que os desejos estão sendo curados, re-arranjados. Há sempre a possibilidade de uma outra configuração de partículas microssexuais – de uma outra articulação de voragens. A cura está na convocação da pele para que comece sua errância de toques. E novas voragens são novas diferenças, novos prazeres, e com eles novas compulsões. A diferença abre o caminho de uma espiral erogenética.

[...]

Ao largo dos órgãos, dos corpos, dos cabimentos e das substâncias que persistem há a superfície que cobre tudo. É pela pele que tudo, por mais substancial que seja, ocupa um espaço. O que há tem pele – pode ser tocado; os objetos carregam sua sensualidade quando se apresentam como uma face, como um pacote. E dentro da pele há mais pele, e mais pele e mais pele. O mais profundo é a pele, dizia Valèry. E se chega ao mais profundo pele por pele. É na interface que as voragens se decidem – e não há voragem que não nasça na aparência das coisas e que não persista sem fricção. Sem touchscreen. Galatzia diz: mi cuerpo es touchscreen, touchscreen, touchscreen. Acaricialo. Soy hibrido sexual, todo me provoca. Touchscreen. Toda a metafísica do porno-errorismo – a metafísica do efeminismo queer – se resolve na touchscreen. Não há mais metafísica do que touchscreen. A ordem substâncial hetero e cis é uma ordem de imagens, de corpos substanciais onde a aparência está carregada de normatividade. A alternativa é focar nas aparências, não nas aparências visuais das coisas, mas nas peles, nos objetos sensuais. Uma coisa pode nunca ser exaurida por nenhuma de suas relações com qualquer outra, mas o que não se exaure na coisa é sua pele – sempre contaminável de algum lado. Exposta. Aberta. Touchscreen. O âmbito do cuidado – e da insegurança. O errático é pele a dentro. Não é apenas que a disputa dos sentidos é uma disputa política, e se é uma disputa há muitas infiltrações – as vezes vemos coisas com as mãos, tocamos peles com os olhos. As palavras são preconceitos, dizia Nietzsche, as coisas também, complementou um Obscuro. A pele é o terreno da errância. E é o país de Eros: porque há pele, as coisas estão em um plano comum (em um p’lano comum, em um f’loor comum). O plano das peles que propicia desejos com outros nomes, compulsões sem etiqueta. Errância – seguir o rastro do erótico. A pele não tem dentro nem fora. Não tem âmago. Não tem essência. Não tem governo e não tem juízo. Por ela se espraiam as nascentes: os impulsos escorregadios.

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