O texto aparecerá na VIS editada pela Soraia Silva. Escrevi com Carol Barreiro.
Cena 1:
Alpendre. Lá está o primeiro anjo, gordo, com uma roupa de terreiro e com um sorriso de quem deitou-se na rede o dia todo. Ele abre os braços, se alonga com demora e, sorrindo, murmura:
ANJO: Ai que preguiça. Preguiça do amor bom. Preguiça do amor tributável. Preguiça do amor que admira sem arrancar pedaço. Preguiça do amor que é caridade e não dilaceração.
O anjo deita na rede vermelha, trançada, cheia de óleos esparramados e, com a voz de uma heresia gnóstica cáustica:
ANJO: Eu sempre amei essa coisa disforme, fugidia, levada, precária, indisciplinada, transformista, safada e violenta que é a sabedoria.
O anjo se balança na rede enquanto levanta as pernas roçando uma na outra. Aparecem agora apenas suas pernas, seus braços do lado de fora da rede vermelha. Aparecem cinco pernas, cinco braços rodando por cima da rede como um carrossel – o anjo agora é um Nataraja cheio de blasfêmia e de lascívia.
E sua voz é mais distante, como uma sombra:
ANJO: Eu procurei a audácia e com ela tive filhos.
A primeira foi Kakia, a maldade, a que abre descendência para a errância, para a imperfeição, para o mal-comportado – sem elas não vale a pena gerar nada. Ela veste uma saia branca, transparente e um casaco azul ou verde, um casaco de jogging com listras brancas. Ela salta por cima da rede do anjo que segue rodando suas pernas e braços como um carrossel. Kakia não tem fronteiras, seu corpo é uma porta aberta e ela vaga como se seus dedos tocassem facilmente o céu e o piso.
Depois vem Zelos, o zelo. Zelos veste as cores da terra – como um bufão elegante, com detalhes dourados em seus ombros. Ele bate com a ponta dos dedos na cabeça de Kakia, na cabeça do Anjo Nataraja, na sua própria cabeça.
Depois entra Ftono:
FTONO: Não me basta ser eu. Tenho uma ânsia de fome de carne por tudo o que é alheio. Eu não tenho âmago. Tenho ciúmes de vocês todos, desde antes de vocês nascerem. Eu sou a vítima e o carrasco, eu sou o vampiro do meu próprio coração. Héautontimeroumenos!
Ftono pula corda com as outras duas, Erinnys, a fúria, e Epithymia, a luxúria. Os três filhos mais jovens da audácia. De longe aparece Pina Bausch correndo desde fora do enquadramento, corre com determinação e abraça Ftono, Erinnys e Epithymia de uma só vez. A corda que eles pulavam se entrelaça entre eles, passando pelas pernas de Epithymia, pela dorso de Ftono, pelas ancas de Erinnys e pelo quadril de Pina. Pina repete:
PINA BAUSCH: Tudo pode ser considerado pelo avesso, tudo pode ser considerado do avesso, tudo pode ser considerado do avesso, tudo pode ser considerado do avesso.
Ftono tem ciúmes do modo como Epithymia roça seus dedos em Pina. O anjo voa. Erinnys se retira correndo, Epythymia e Pina se deitam na rede vazia. Ftono fica balançando a rede. O pensador de Rodin surge da casa e se senta na mesa do alpendre. Ele não se move, apenas pensa:
RODIN: O ridículo nos engole como crianças.
Cena 1:
Alpendre. Lá está o primeiro anjo, gordo, com uma roupa de terreiro e com um sorriso de quem deitou-se na rede o dia todo. Ele abre os braços, se alonga com demora e, sorrindo, murmura:
ANJO: Ai que preguiça. Preguiça do amor bom. Preguiça do amor tributável. Preguiça do amor que admira sem arrancar pedaço. Preguiça do amor que é caridade e não dilaceração.
O anjo deita na rede vermelha, trançada, cheia de óleos esparramados e, com a voz de uma heresia gnóstica cáustica:
ANJO: Eu sempre amei essa coisa disforme, fugidia, levada, precária, indisciplinada, transformista, safada e violenta que é a sabedoria.
O anjo se balança na rede enquanto levanta as pernas roçando uma na outra. Aparecem agora apenas suas pernas, seus braços do lado de fora da rede vermelha. Aparecem cinco pernas, cinco braços rodando por cima da rede como um carrossel – o anjo agora é um Nataraja cheio de blasfêmia e de lascívia.
E sua voz é mais distante, como uma sombra:
ANJO: Eu procurei a audácia e com ela tive filhos.
A primeira foi Kakia, a maldade, a que abre descendência para a errância, para a imperfeição, para o mal-comportado – sem elas não vale a pena gerar nada. Ela veste uma saia branca, transparente e um casaco azul ou verde, um casaco de jogging com listras brancas. Ela salta por cima da rede do anjo que segue rodando suas pernas e braços como um carrossel. Kakia não tem fronteiras, seu corpo é uma porta aberta e ela vaga como se seus dedos tocassem facilmente o céu e o piso.
Depois vem Zelos, o zelo. Zelos veste as cores da terra – como um bufão elegante, com detalhes dourados em seus ombros. Ele bate com a ponta dos dedos na cabeça de Kakia, na cabeça do Anjo Nataraja, na sua própria cabeça.
Depois entra Ftono:
FTONO: Não me basta ser eu. Tenho uma ânsia de fome de carne por tudo o que é alheio. Eu não tenho âmago. Tenho ciúmes de vocês todos, desde antes de vocês nascerem. Eu sou a vítima e o carrasco, eu sou o vampiro do meu próprio coração. Héautontimeroumenos!
Ftono pula corda com as outras duas, Erinnys, a fúria, e Epithymia, a luxúria. Os três filhos mais jovens da audácia. De longe aparece Pina Bausch correndo desde fora do enquadramento, corre com determinação e abraça Ftono, Erinnys e Epithymia de uma só vez. A corda que eles pulavam se entrelaça entre eles, passando pelas pernas de Epithymia, pela dorso de Ftono, pelas ancas de Erinnys e pelo quadril de Pina. Pina repete:
PINA BAUSCH: Tudo pode ser considerado pelo avesso, tudo pode ser considerado do avesso, tudo pode ser considerado do avesso, tudo pode ser considerado do avesso.
Ftono tem ciúmes do modo como Epithymia roça seus dedos em Pina. O anjo voa. Erinnys se retira correndo, Epythymia e Pina se deitam na rede vazia. Ftono fica balançando a rede. O pensador de Rodin surge da casa e se senta na mesa do alpendre. Ele não se move, apenas pensa:
RODIN: O ridículo nos engole como crianças.
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