Dizem que dançar é atiçar as dobras. Põe meu corpo em um devir-tripas. Retorço. Contorço. Dançar é desamarrar.
É provocar as rachaduras. Balançar as articulações. É que por toda parte existem tectônicas. Vulcões. Terremotos prestes a eclodir. Todo corpo tem uma pele. E pele dobra, estica, dilata, arde, dissolve, distrai, lembra, contorna. Dançar é tentar inventar outras dobras. Dançar deve ser produzir um corpo desabotoado.
Dançar: provocar desengonçamento. A elegância de um novo vulcanismo, não do vulcão disciplinado de todos os dias – o que abre a carteira, sacode os ombros, caminha sem cair, deita sem pular, trepa sem soluçar – o vulcão que já virou chão, mas o vulcão que perdeu o fio de meada entre a lei da natureza e a superfície da terra.
É que a Terra dança. Engole a semente, rasga, soluça, eclode, engole, balança o glote, fica peristáltica, vomita, faz pliê.
Este desengonçamento todo, que me interessa, não é outra coisa senão o ardil das intrusões. Nossos corpos não cabem na armadura humana. Nenhum corpo, porque carrega a impostura humana, deixa de ser corpo. E corpo encorpa. Corpo é um endereço, uma encruzilhada. É corpo multiplicado como o de Jorge Eduardo Eielson que escreve:
Se gozo somos todos que gozamos
Ainda que nem todos gozem
Se choro somos todos que choramos
Ainda que nem todos chorem
(“Corpo Multiplicado”, In: La Noche Oscura del Cuerpo)
Corpo faz corpo, perpassam-lhe as lacraias, os barulhos da terra, as lavas, as larvas, as sedimentações das rochas, os miasmas. O desengonçamento é cósmico, está nas pequenas rachaduras que dão forma aos movimentos, e nas convulsões da Terra, nas camadas sobrepostas em garranchos que formam as superfícies acumuladas do planeta.
A dança é larval. É intrusão – é caixa de ressonância. Laura Virgínia fala de como a Terra se segura:
Acelera seu coração, abre fendas em larga extensão buscando alguma compensação e vive de flexível segurança, a Terra se equilibra fazendo frases de dança. (in: Buquê)
A Terra não dança apenas as intrusões do momento, mas as ressonâncias do seu passado, seu afundamento, aquilo que sedimentou seu chão.
Todo chão é sedimento.
Todo chão é relíquia.
Todo chão é piso. Vestígio. Rastro.
Entre as rochas sedimentares de Brasília, os ritmitos. Eles codificam os ritmos do que ocorreu ao redor deles. Toda regularidade fica registrada na sua sedimentação.
Paulo Bertran diz que algum dia, há milhões de anos, produziram-se os ritmitos de Brasília, como indica o nome, pelo ritmo das ondas do mar que cobria a região (Em História da Terra e do Homem no Planalto Central).
A dança da terra é a dança da falta de um fundamento, de um chão de todos os chãos, de uma base – a Terra dança, diz Laura Virgínia, porque o chão não tem chão, ele se apoia nos outros pedaços de chão. Unbedingt, é a palavra de Schelling: aquilo que não é uma coisa. É o movediço.
Areia. Não pedra, nem piso impermeável.
Planeta Areia. E a Terra dança como quem pensa que não é corpo: ajunta mais matéria à matéria que decai. O chão engole. Engole o lixão, o vulcão engole Empédocles. Ben Woodard escreve sobre a Terra sem fundamento e que o racha entre
o de outro mundo e o ctônico faz um paralelo com a divisão entre Vernunft e Grund, ou entre o transcendental e o imanente. Mas essa relação da transcendência e da imanência não é kantiana ou hegeliana mas schellingiana, e está conectada com o vulcânico. O vulcânico é o pivô entre inferno/terra e transcendência/imanência. (On an ungrounded Earth, 74).
A geofilosofia não encontra o desengonçamento de Gaia na Terra. Ela faz dança do chão. Não é esbelta, ainda que nem todos sejam deselegantes, não é graciosa. Mas move – quando move arrebata.
E todos os planetas que a rondam, rodam, rodam, rodam em circuito, seguem um itinerário que fica esboçado como uma coreografia de passo marcado. Porém fazem pequenos desvios. Os epicuristas gostavam de olhar para quando as órbitas dão uma errada, quando os planetas ficam errantes, errôneos, erroristas. São microdanças, mas são para elas que há órbitas, sistemas solares, galáxias: para que em algum momento cada coisa saia do espaço que lhe cabe. Lucrecio proclama assim sobre o clinamen:
Quando átomos movem-se através do vazio pelo seu próprio peso, eles desviam um pouco no espaço em um momento bastante incerto e em lugares incertos, apenas o suficiente para que você possa dizer que o movimento deles mudou. Mas se eles não tivessem o hábito de desviar, [...] a natureza nunca teria produzido coisa alguma.
As clinamina são as partículas de desengonçamento – poderiam se chamar desengonçons se quiséssemos realmente considerar a dança como objeto de ontoscopia. Jonathan Swift desdenhou as clinamina uma vez dizendo que elas fazem unir o quadrado e o círculo. E não é o que faz o desengonçado? Exala do círculo o quadrado, exala do quadrado o círculo.
Uma vez escutei o Jerôme Bell falando: por que as pessoas vão ver tantas vezes o Lago dos Cisnes? Ele dizia, é porque os bailarinos tem uma maneira própria de errar. O momento do desengonçamento. O momento do desengonçamento é o momento da graça. Porque se não houver o momento da graça – que intervenham os deuses que criam outros precipícios – é melhor ficar contemplando os relógios de parede, ponteiros que balançam por anos no mesmo ritmo. Ou ouvir metrônomos. Os epicuristas não acharam os relojoeiros perfeitos. A terra desengonça. É por isso que estamos sempre olhando as estrelas. No meio dos gestos ratos apinhados de ninharias há uma graça. Os bailarinos não são funcionários, mas os funcionários são bailarinos. É que quem dança, eu entendi, tem corpo – os corpos tem bordas e carregam clinamina. Mas os bailarinos não tem um corpo de bailarino – como os funcionários tem corpos de funcionários, as lavradoras tem corpo de lavradoras, os alcóolatras tem corpos de alcóolatras, os masoquistas tem corpos da masoquistas, as catadoras de coco tem corpo de catadoras de corpo, as putas tem corpo de putas, os ministros tem corpo de ministros, os pedintes tem corpo de pedintes e os empregados de telecentros tem corpos de empregados de telecentros. Os quadrados tem o corpo de quadrado. O círculo tem o corpo de círculo. Os bailarinos estão em função das dobras invisíveis, não podem se dar ao luxo de ter um corpo... de bailarinos. Flexível segurança. Cada pedaço de corpo desengonça e baila.
Diferentes, diz Jean-Luc Nancy no seu apontamento 22 sobre o corpo, os corpos são todos um pouco disformes. Um corpo perfeitamente formado é um corpo perturbador, indiscreto no mundo dos corpos, inaceitável. É um esboço, e não um corpo.
O cotuvelo, o tornozelo, a clavícula, o rego, o grelho, a pica, todos disformes. Todos ficam no limiar entre a onça e a diferença. E desdobram, se arranham, coçam, têm convulsões, eclodem, porque toda matéria tem pele.
Se tem pele tem flor da pele. Senão, com que braços essa mônada esquisita coordenaria e animaria tudo isso? Deus tem graça porque perde o rebolado. Tem flores na pele. Pétalas na pele. Como Nataraja, pernas que se dobram, vírgulas pra todo lado, que se estica, se encolhe e anima seus arredores bolinando. Alinhado mas não simétrico, machucado mas em movimento. Ou como a Pachamama, dorso de sapo, ventre de onça, rabo de cobra, crina de condor. E seduz, seduz, seduz e conduz. Só quem tem o rebolado pode perdê-lo, como os anjos que vivem no sol, como os santos que vivem no céu, como os demônios que vivem no fogo. Deus é uma lagosta. Patas espraiadas, asas espraiadas, cordas espraiadas espalhadas para além do que deixamos de ver. E a falta de deus é uma viscosidade – aquela ausência que faz companhia na pele por todos os dias do ano. As deusas cadáveres, que fazem ganir. Ganir. Ganir. Ganir. Ganir. A voz desarrumada de uma garganta desengonçando. Porque há abismos na matéria.
É provocar as rachaduras. Balançar as articulações. É que por toda parte existem tectônicas. Vulcões. Terremotos prestes a eclodir. Todo corpo tem uma pele. E pele dobra, estica, dilata, arde, dissolve, distrai, lembra, contorna. Dançar é tentar inventar outras dobras. Dançar deve ser produzir um corpo desabotoado.
Dançar: provocar desengonçamento. A elegância de um novo vulcanismo, não do vulcão disciplinado de todos os dias – o que abre a carteira, sacode os ombros, caminha sem cair, deita sem pular, trepa sem soluçar – o vulcão que já virou chão, mas o vulcão que perdeu o fio de meada entre a lei da natureza e a superfície da terra.
É que a Terra dança. Engole a semente, rasga, soluça, eclode, engole, balança o glote, fica peristáltica, vomita, faz pliê.
Este desengonçamento todo, que me interessa, não é outra coisa senão o ardil das intrusões. Nossos corpos não cabem na armadura humana. Nenhum corpo, porque carrega a impostura humana, deixa de ser corpo. E corpo encorpa. Corpo é um endereço, uma encruzilhada. É corpo multiplicado como o de Jorge Eduardo Eielson que escreve:
Se gozo somos todos que gozamos
Ainda que nem todos gozem
Se choro somos todos que choramos
Ainda que nem todos chorem
(“Corpo Multiplicado”, In: La Noche Oscura del Cuerpo)
Corpo faz corpo, perpassam-lhe as lacraias, os barulhos da terra, as lavas, as larvas, as sedimentações das rochas, os miasmas. O desengonçamento é cósmico, está nas pequenas rachaduras que dão forma aos movimentos, e nas convulsões da Terra, nas camadas sobrepostas em garranchos que formam as superfícies acumuladas do planeta.
A dança é larval. É intrusão – é caixa de ressonância. Laura Virgínia fala de como a Terra se segura:
Acelera seu coração, abre fendas em larga extensão buscando alguma compensação e vive de flexível segurança, a Terra se equilibra fazendo frases de dança. (in: Buquê)
A Terra não dança apenas as intrusões do momento, mas as ressonâncias do seu passado, seu afundamento, aquilo que sedimentou seu chão.
Todo chão é sedimento.
Todo chão é relíquia.
Todo chão é piso. Vestígio. Rastro.
Entre as rochas sedimentares de Brasília, os ritmitos. Eles codificam os ritmos do que ocorreu ao redor deles. Toda regularidade fica registrada na sua sedimentação.
Paulo Bertran diz que algum dia, há milhões de anos, produziram-se os ritmitos de Brasília, como indica o nome, pelo ritmo das ondas do mar que cobria a região (Em História da Terra e do Homem no Planalto Central).
A dança da terra é a dança da falta de um fundamento, de um chão de todos os chãos, de uma base – a Terra dança, diz Laura Virgínia, porque o chão não tem chão, ele se apoia nos outros pedaços de chão. Unbedingt, é a palavra de Schelling: aquilo que não é uma coisa. É o movediço.
Areia. Não pedra, nem piso impermeável.
Planeta Areia. E a Terra dança como quem pensa que não é corpo: ajunta mais matéria à matéria que decai. O chão engole. Engole o lixão, o vulcão engole Empédocles. Ben Woodard escreve sobre a Terra sem fundamento e que o racha entre
o de outro mundo e o ctônico faz um paralelo com a divisão entre Vernunft e Grund, ou entre o transcendental e o imanente. Mas essa relação da transcendência e da imanência não é kantiana ou hegeliana mas schellingiana, e está conectada com o vulcânico. O vulcânico é o pivô entre inferno/terra e transcendência/imanência. (On an ungrounded Earth, 74).
A geofilosofia não encontra o desengonçamento de Gaia na Terra. Ela faz dança do chão. Não é esbelta, ainda que nem todos sejam deselegantes, não é graciosa. Mas move – quando move arrebata.
E todos os planetas que a rondam, rodam, rodam, rodam em circuito, seguem um itinerário que fica esboçado como uma coreografia de passo marcado. Porém fazem pequenos desvios. Os epicuristas gostavam de olhar para quando as órbitas dão uma errada, quando os planetas ficam errantes, errôneos, erroristas. São microdanças, mas são para elas que há órbitas, sistemas solares, galáxias: para que em algum momento cada coisa saia do espaço que lhe cabe. Lucrecio proclama assim sobre o clinamen:
Quando átomos movem-se através do vazio pelo seu próprio peso, eles desviam um pouco no espaço em um momento bastante incerto e em lugares incertos, apenas o suficiente para que você possa dizer que o movimento deles mudou. Mas se eles não tivessem o hábito de desviar, [...] a natureza nunca teria produzido coisa alguma.
As clinamina são as partículas de desengonçamento – poderiam se chamar desengonçons se quiséssemos realmente considerar a dança como objeto de ontoscopia. Jonathan Swift desdenhou as clinamina uma vez dizendo que elas fazem unir o quadrado e o círculo. E não é o que faz o desengonçado? Exala do círculo o quadrado, exala do quadrado o círculo.
Uma vez escutei o Jerôme Bell falando: por que as pessoas vão ver tantas vezes o Lago dos Cisnes? Ele dizia, é porque os bailarinos tem uma maneira própria de errar. O momento do desengonçamento. O momento do desengonçamento é o momento da graça. Porque se não houver o momento da graça – que intervenham os deuses que criam outros precipícios – é melhor ficar contemplando os relógios de parede, ponteiros que balançam por anos no mesmo ritmo. Ou ouvir metrônomos. Os epicuristas não acharam os relojoeiros perfeitos. A terra desengonça. É por isso que estamos sempre olhando as estrelas. No meio dos gestos ratos apinhados de ninharias há uma graça. Os bailarinos não são funcionários, mas os funcionários são bailarinos. É que quem dança, eu entendi, tem corpo – os corpos tem bordas e carregam clinamina. Mas os bailarinos não tem um corpo de bailarino – como os funcionários tem corpos de funcionários, as lavradoras tem corpo de lavradoras, os alcóolatras tem corpos de alcóolatras, os masoquistas tem corpos da masoquistas, as catadoras de coco tem corpo de catadoras de corpo, as putas tem corpo de putas, os ministros tem corpo de ministros, os pedintes tem corpo de pedintes e os empregados de telecentros tem corpos de empregados de telecentros. Os quadrados tem o corpo de quadrado. O círculo tem o corpo de círculo. Os bailarinos estão em função das dobras invisíveis, não podem se dar ao luxo de ter um corpo... de bailarinos. Flexível segurança. Cada pedaço de corpo desengonça e baila.
Diferentes, diz Jean-Luc Nancy no seu apontamento 22 sobre o corpo, os corpos são todos um pouco disformes. Um corpo perfeitamente formado é um corpo perturbador, indiscreto no mundo dos corpos, inaceitável. É um esboço, e não um corpo.
O cotuvelo, o tornozelo, a clavícula, o rego, o grelho, a pica, todos disformes. Todos ficam no limiar entre a onça e a diferença. E desdobram, se arranham, coçam, têm convulsões, eclodem, porque toda matéria tem pele.
Se tem pele tem flor da pele. Senão, com que braços essa mônada esquisita coordenaria e animaria tudo isso? Deus tem graça porque perde o rebolado. Tem flores na pele. Pétalas na pele. Como Nataraja, pernas que se dobram, vírgulas pra todo lado, que se estica, se encolhe e anima seus arredores bolinando. Alinhado mas não simétrico, machucado mas em movimento. Ou como a Pachamama, dorso de sapo, ventre de onça, rabo de cobra, crina de condor. E seduz, seduz, seduz e conduz. Só quem tem o rebolado pode perdê-lo, como os anjos que vivem no sol, como os santos que vivem no céu, como os demônios que vivem no fogo. Deus é uma lagosta. Patas espraiadas, asas espraiadas, cordas espraiadas espalhadas para além do que deixamos de ver. E a falta de deus é uma viscosidade – aquela ausência que faz companhia na pele por todos os dias do ano. As deusas cadáveres, que fazem ganir. Ganir. Ganir. Ganir. Ganir. A voz desarrumada de uma garganta desengonçando. Porque há abismos na matéria.
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