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lunedì 19 dicembre 2016

oui, c'est la force

Dias correndo pelos corredores,
atravancados de livros, cachos de
cabelo, árvores de natal empacotadas,
cimento.

O quarto de Cortès, minúsculo,
e com uma janela para os campos
e os montes
e os deuses. O quarto de Achebe
que é banheiro, que é cozinha
e que cheira o bafo das coisas
antes dos pacotes.
O quarto de Trump ao lado de uma
ante-sala onde vivia Chamberlain;
automático e com um botão dourado
em cima da mesa ao lado da canapé.
Não há violência sem hospitalidade.
Não há força sem concessão.

sabato 17 dicembre 2016

Me deixar entender

Deve ser sobre zumbidos sumidos
tic-tac-tic-tac, no tempo dos outros.

No entanto o ofício das palavras é colocar cada um dos pedaços de trilho para o trem passar
e depois mudar de rota.

Ana Lama

Um dos da inauguração da Galeria Ana Lama embaixo da calçada da Sé, Lisboa:

Alguns traços anarqueológicos e lamarqueológicos de
Ana Lama em Londres, Brighton, Bruxelas e Calais

Preliminares metodológicas
O passado é um emaranhado de datas; as datas tem por natureza entulharem-se umas sobre as outras – as farsas se amontoam sobre as tragédias, as ordens constituídas se amontoam sobre os eventos constituintes. O passado, porém, é também outrora, uma outra hora, já que o tempo é sempre o que interrompe as presente e o que traz alguma coisa à presença. O passado arqueológico é o passado das datas: épocas, eras, idades. Assim também é o passado geológico que faz das camadas do chão um arquivo de sedimentações que registra sucessões, simultaneidade e ritmos. O passado anarqueológico é um passado alheio às datas, a anarqueologia estuda um tempo sem atentar ao tempo anterior e ao tempo que lhe segue. O passado anarqueológico é um passado feito de marcas e não feito antes das marcas – assim, ele é como uma assombração, como um ramo da espectrologia, atávica, virtual e também reinventado a cada aparição. O passado lamarqueológico é também alheio às eras; na lama o chão tem menos gramática expositiva, já que os traços na lama se embrenham e toda catábase é dissolução. O passado da lamarqueologia não se data, é o passado não da história, mas das histórias que contamos uns aos outros e onde o Chluthluceno de Donna Haraway se ergue em uma anábase no centro de gravidade do antropoceno. A lama é o chão onde a sedimentação se dissolve, onde as épocas se contemporanizam. De um ponto de vista anarqueológico e lamarqueológico, não falaremos de datas; talvez apenas de uma vez que era ou de outra vez que era.

Um dos elementos que distinguem a anarqueologia da arqueologia é portanto o tratamento da datação e um dos elementos que distinguem a lamarqueologia da geologia é o tratamento das eras, épocas e idades. O estudo do passado recente de Ana Lama se presta a esta metodologia porque todo intento de datar suas possíveis passagens por Londres, Brighton, Bruxelas e Calais se mostraram tanto pouco frutíferas quanto um pouco fictícias. Não podemos estabelecer – e isso apela a uma metodologia anarqueológica e lamarqueológica – o que veio antes, o que veio durante e o que ainda vem. Ademais, Ana Lama parece ter estado convencida por muito tempo que os efeitos de seus gestos se espalham de uma maneira e fabricar contemporaneidades onde antes haviam apenas badaladas sucessivas de relógios feitos de eventos e contratempos. E não havia como separar seus atos de seus efeitos. Está estabelecido que Ana Lama teria desaparecido oficialmente em 2015; porém é claro para a anarqueologia e a lamarqueologia que o estudo de seus traços se limite aos que estejam datados para além desse ano; seu desaparecimento deixou marcas em todo o seu trabalho curatorial já que ela se ocupou de espalhar invisibilidade. Ana Lama precisava que seus gestos contra-normais que entendia como cosmeresias fossem o mais distante possíveis da teatricalidade das galerias e palcos, e também das datas marcadas. Para ela, a arte possível era a arte absorvida e o trompe d'oeuil possível é aquele que mescla quem vê e quem pousa para ser visto – o outrora teria que estar absorvido naquilo que sempre vemos. Quando fez a orelha de Van Gogh e Gente que desconheço, talvez em 2011 ou 2016 ou em 2018, interessava-lhe o exercício de absorver pela escuta, ainda que produzindo o gesto insólito; a hospitalidade deve fazer a normalidade se tornar atípica, incomoda, impossível e, ao mesmo tempo, quem hospeda está em sua casa, está em si mesmo, suporta o peso de estar presente como aquilo que absorve. Ainda que presente, Ana Lama estava já desaparecida – pelo menos desaparecida dos anos que se repetem como ladainhas de calendário, um após e o outro e cada um seguindo à risca o anterior.

Duas iniciativas VRP
As vulnerabilidade radical pura (VRP) de Ana Lama a teriam levado em direção ao seu desaparecimento – como desaparecem com poucos traços os refugiados, os clandestinos, os ilegais; quantos além de Ana Lama desapareceram em Calais? Ana Lama conseguiu se tornar uma destas fugitivas que fogem e refogem, que ficam fugidos e refugidos. Não entregou seus papéis a milhares de albanesas, sudanesas, afegãs e líbias, mas trocou com eles a invisibilidade – para que alguém possa ser visto, é preciso que alguém deixe de ser visto. Ela trocou visibilidade por clandestinidade; que ela, portuguesa, egressa de Goldsmiths, curadora fique invisível e não a síria que nem faz performance como performance e nem faz instalação como instalação. Essa iniciativa de Ana Lama chamamos de 1in1out. Trata-se de poder dizer aos poderes que instituem os estados: se é possível conceder apenas a alguns tantos as vossas cidadanias, se alguns saem outros podem entrar. Outros podem ser os franceses que esperam o Beaujolais de fim de outono ou os ingleses que bebem chá com torrada e feijão. Outros podem ser os teus cidadãos e outros podem ter aquilo que é meu que só é meu se eu puder alienar. Pensar que a cidadania é um direito que só pode ser meu se eu puder fazer dele um abrigo, algo que pode receber um outro – como minha casa, meu ouvido ou meu tempo. Ana Lama encontrou uma maneira de alienar cidadania – direito não pode ser inalienável, inalienável é uma condenação.

Acreditamos que por meio de 1in1out Ana Lama conseguiu dar cidadania a 100 novos franceses e a 100 novos ingleses sem retirar de ninguém suas identidades. Para descobrir como ela procedeu, estamos tentando replicar os passos de sua iniciativa. Começamos com uma lista de pessoas dispostas a tornarem-se clandestinas para que outras possam se beneficiar de sua legalidade – pessoas dispostas a entregarem sua cidadania a outros. Ana Lama conseguiu que essa lista fosse considerada por alguma instituição que transferiu a cidadania porém não a identidade para 100 neo-franceses e neo-ingleses e portanto também à 200 neo-sírios, neo-líbios ou neo-sudaneses. Não é claro por que meio ela conseguiu esse sucesso em sua iniciativa, e uma boa parte dos nossos esforços anarqueológicos e lamarqueológicos é encontrar os meandros legais e extra-legais por que passou Ana Lama para conseguir êxito em sua iniciativa. A passagem dos tempos nos campos de refugiados são outroras incontáveis e não sabemos quantas era uma vez passou Ana Lama na jungle de Calais. Sabemos que em muitos lugares de Brighton e Bruxelas se encontram vestígios da iniciativa 1in1out que remete a uma página na internet há pouco ainda ativa e que explica a iniciativa e dá acesso a um formulário para quem quer deixar sua cidadania disponível. Como anarqueólogos, nos apropriamos desta página (os anarqueólogos, como os lamarqueólogos, não procuram preservar seus vestígios, mas fazê-los funcionar, pô-los em ação). Uma vez apropriada essa página, tentamos obter a lista de voluntários através do formulário que ela dá acesso e, em seguida, tentamos obter das autoridades respostas sobre como concretizar a empreitada. Em uma comunicação com a embaixada da Bélgica em Londres

Em uma outra iniciativa, Ana Lama conseguiu um número ainda indeterminado de pessoas dispostas a doar sua cidadania depois de sua morte. O princípio, DonateYourCitizenship, permite que se possa doar cidadania como se doa rins, fígado ou olhos em vida para serem extraídos e transplantados post-mortem. A ideia é precisamente evitar que cidadanias saudáveis possam apodrecer ou desaparecer se podem ser utilizadas por pessoas com cidadanias deficientes. A imagem, como mostram as evidências das campanhas de doação do outros órgãos de que participou Ana Lama, era médica: órgãos saudáveis para pessoas que têm órgãos inabilitados, cidadanias aceitadas para pessoas que têm cidadanias desguarnecedoras. Acreditamos que Ana Lama entendia a cidadania como um órgão e suas materialidades como utensílios. Ela deixava sempre seus passaportes em bibliotecas e livrarias, onde poderiam ser encontrados, carregados como quem faz um shoplifting do que foi objeto de um shopputting e mesmo catalogado pelas autoridades responsáveis pelos livros que assim fazem com que os passaportes possam ser emprestados ou vendidos como pequenos livros úteis em uma viagem. Parece que ela chamava este trabalho algo como o livro que é a melhor nave. Ana Lama fez imprimir cartões de doação como o de Gonca Bahar, que encontramos em Londres no Finnsbury Park, passeando com seu cachorro Mio. Gonca, filha de turca e iraniano e com cidadania britânica, disse que carregava sempre consigo o seguinte cartão:
I donate all my organs including eyes and citizenship

venerdì 25 novembre 2016

Sobre a intensificação da colonização

Ser de um país que te transforma em mendigo.


domenica 20 novembre 2016

Todtnauberg

Ontem fui com Gerson a Todtnauberg.
Nevava.
Procuramos a hütte procurada pelas colinas
e nos aproximamos de algumas outras
que poderiam ter sido
e que não eram.
Fomos em direção àquela hütte,
umas imagens no google, umas indicações em placas verdes
no caminho "Martin Heidegger's Hütte".
Mas no meio do caminho nevado, o silêncio.
Nenhuma placa mais.

Paramos no albergue de juventude e só na saída, enquanto
eu tentava limpar uma placa verde de neve (sem silêncio)
foi que Gerson encontrou Mano Alvaiade ao lado do porta-mala aberto
de um carro preto: por ali.

Na segunda hütte, já de frente à Rütte,
comparamos as janelas,
as portas, os degraus da escada
e como o telhado na parte de trás da casa
se emendava com a inclinação da montanha.
As madeiras, os revestimentos eram outros,
mas havia um esqueleto que correspondia,
correspondia.

Copio aqui uma tradução do poema de Celan:

TRANSLATED BY PIERRE JORIS

Arnica, eyebright, the
draft from the well with the
star-die on top,

in the
Hütte,

written in the book
—whose name did it record
before mine?—,
in this book
the line about
a hope, today,
for a thinker's
word
to come,
in the heart,

forest sward, unleveled,
orchis and orchis, singly,

raw exchanges, later, while driving,
clearly,

he who drives us, the mensch,
he also hears it,

the half-
trod log-
trails on the highmoor,

humidity,
much.

mercoledì 12 ottobre 2016

Adianta tudo

Sobreveio a mim o messias do dia: um moço com dez anos de yeshivah
me fazendo contar (como se isso pudesse ser contado)
que eu confundi çarşamba com perşembe.

Ou seja,
hoje com amanhã.
Não que hoje é amanhã e nem que amanhã é hoje.
Mas que o dia de Kippur que é hoje
era amanhã.
Eu fiz com ele as contas persuadido que estava
de que o calendário me diria perşembe
e no entanto as contas disseram hoje - çarşamba.

Kippur-perşembe era preparado, esperado e tinha o peso do futuro
marcado,
o futuro que é previsível: um dia da desculpa
que é também um dia de culpa
e um dia de questões
(que em geral vem atormentadas
ainda que de uma tormenta
que dura só um dia):
porque jejuar?
por que não jejuar?
Questões indecidíveis.

Dia de medo, dia de irresponsabilidade,
dia de atrevimento, dia de obediência.

Tudo isso estava no Kippur-perşembe
mas por um milagre do tempo presente
não está no Kippur-çarşamba
já que o moço dos dez anos de yeshivah me apareceu hoje,
às 3 da tarde,
na hora do vão das preces
para quem jejua todo o dia.
E me disse: já não creio,
vês, estou comendo.

O kippur-çarşamba não é um Kippur
projetado, ele é lançado sobre mim,
ainda que por um erro de contas.
Os erros são milagres e são messias.
Um messias, que adianta o dia,
que libera o amanhã.

NOTA: Minha mãe dizia de quem estava mal-informado
que confundia çarşamba com perşembe
(ou seja, em turco, quarta-feira com quinta-feira)

domenica 9 ottobre 2016

Adiário

...aquela rua com sanduíches de pão e queijo no verão...
um sopro, e eu de galeria em galeria
de loja limpa em loja limpa
vomito.

mort au capital / tiro uma fotografia
não tiro.

quando eu quis deixar de ser humano
me cresceram as turbinas, os sacos plásticos,
os rabos de ratazanas
e se tornaram estranhos os meus cios.

le temps au delà de l'être / como um Prato de falafel
não como.

são tão enormes os desejos...
maiores que os planetas mas sem formas,
sem cor, sem direção. vultos.
ou nem vultos, ecos distorcidos,
descentralizações.
- Veja aqui na sua frente o que você quer.
- Ah, então é isso?
- É bem isso, não é isso que você quer?
- Não sei.
Queria querer dizer assim:
- E se algum dia ninguém me mostrar o que eu quero?
Como vou encontrar o que procurar?
Esses planetas são maiores do que tudo o que eu enxergo,
tudo o que eu penso, tudo o que eu espero.

les animaux veulent sortir de la jungle / acho os congoleses mansos
não acho.

um pé dentro de casa, um pé fora de casa,
estar habitado por um meteoro,
estar sem pé.
veio uma nuvem e me deixou ouriço
virado do avesso; como quando vinha um vento
agora não veio.


sabato 8 ottobre 2016

A esta altura

Então, arbusto, é isso. É isso?
Teus gravetos caem, tuas folhas secam, teus verdes escurecem.
Concentras tudo o que sobrou nas tuas pitangas -
sabendo que também tem uma manga para dar,
e gostarias de manufaturar peras.
Mas elas vão ser sabores das tuas pitangas. É isso?
Não, não é porque tenho saudades dos prazeres
que não me lembro quais são.
E arbusto eu fujo.
Inventaria outro prazer, que não é florir.
Nem é ir e vir
e nem sequer é fugir. Não sou arbusto
das folhas-bandeira,
nem sequer sou vegetal quando tudo o que há na minha seiva
é lingua morta
é letra morta
é arqueologia.
Uma vez achei jogado no chão
a satisfação das minhas necessidades
mas não tinha satisfação porque as necessidades
são colônias de elefantes
e a satisfação é bicicleta.
Mas agora, outra vez e depois outra vez,
eu arbusto que solto pitanga
não vou achar na rua o carvão e titânio,
um gosto como o de uma fruta,
uma luva.
Faço com as mãos uns dedos que não entram nela.
Descoplado.
Saio com a alma ardida no outono vestindo um sapato
que me faz andar na ponta dos pés.
Tu não preferes agora andar pouco
e ficar calado?



Erotex & Dyonisina no MAR mês passado

giovedì 15 settembre 2016

Erotex e Dyonisina

Meu texto para o evento de amanhã no MAR
Erotex e Dyonisina:
amor e sexualidade na farmácia contemporânea
Hilan Bensusan


Sim, há o alarido. Eu escuto barulhos. Pessoas gargalhando, convulsões, compulsões, pessoas gemendo. De perto, parece alguma coisa contagiante, um rio que arrasta as bordas com ele. De longe, dos quilômetros incontáveis que um consultório tem da coisa, eles parecem um surto, ou uma condição, ou uma pulsação do corpo, ou um caso. De perto, é coisa que está na medida de quem ri, de quem geme, de quem ri e geme ou de quem acompanha o contágio. O contágio é assunto de intensidades: para quem geme ou ri, não há terceira pessoa que contempla o excitante e o engraçado. Não há um vão entre o erótico e o corpo, entre o dionisíaco e o corpo, eles estão lado a lado, perto. É certo que Eros e Dyonisos são afeitos às máscaras, a tirar roupas quando querem, a se esconder na moita quando precisam, a provocar fingimentos – Eros e Dyonisos, são como toda physis e tem disfarces e esconderijos: kriptestai philei, como disse Heráclito. As máscaras também gemem e gargalham, porque suas caras gemem e gargalham. De longe, elas são episódios da história do corpo. De longe, quantos quilômetros? Na lonjura de um consultório, mesmo de um consultório cheio de gemidos e gargalhadas. Que perto é esse? Que lonjura é essa? O rio que arrasta as bordas com ele não é o rio do mapa – talvez seja apenas o rio da minha aldeia – mas seria possível fazer um mapa de cada pedaço de borda que é arrastado por cada pedaço do rio, mesmo que ele nunca seja o mesmo duas vezes, basta que alguma aproximação de repetição possa ser detectada. Um mapa não precisa que haja permanência, basta a ele focar em um ponto fixo – e ele alavanca uma permanência. Se permanência não há, ele consegue inventá-la. De longe, mais longe que qualquer distância perto por perto, todo corpo tem uma anatomia. E toda anatomia guarda destino.

Sim, há o alarido: anatomia é destino – o DNA que rege órgão por órgão, a coisa epigenética que rege superfície por superfície, os hormônios que regem cutícula por cutícula. O corpo erotizado e o corpo divertido tem anatomias. Anatomias que cabem em mapas. Eros e Dyonisos, se amam esconder-se, se escondem nas entranhas das anatomias, nas suas concavidades, nos seus segredos e secreções. Onde quer que eles se escondam, se eles estão em algum lugar do mapa da anatomia, eles estão embrenhados no meandro dos fatos. É um meandro tortuoso, turbulento, movediço, truculento, mas é um meandro dos fatos. Fatos podem ser encontrados, contemplados, descritos – ainda que eles escapem das nossas mãos pois eles são feitos do que é feita a descrição de uma terceira pessoa que, já não de perto, os contempla. Se Eros e Dyonisos se embrenham no meio dos fatos, eles estão em algum lugar e fazem alguma coisa – estão disponíveis para serem relatados em um boletim de ocorrência; ou como se diz mais frequentemente, seu paradeiro pode ser descoberto já que responde a… questões de fato. Eles não estão enroscados em situações, em gestos, em momentos, e nem sequer em ritmos, em badaladas, em baladas – eles são questões de fato. Há algum lugar dentro da cartografia dos fatos em que eles ficam: Eros e Dyonisos, junto dos neurônios, trepados sobre os hormônios, como um demônio que, dizem as más línguas, mora lá longe e trabalha e chacoalha no trem da central. Eros e Dyonisos anatomizados, cartografados. Anatomia é destino; há fatos anatômicos e é por isso que eles carregam o destino, trata-se de fado, de estar fadado. O fato não é apenas o que passou, é o que passou e que vai continuar passando porque fatos enfatuam, deixam as coisas enfatuadas. Os meandros dos fatos enfatuam Eros e Dyonisos, eles passam a ter endereço certo e assim ficam à disposição. Quanto à cultura contemporânea de Eros e Dyonisos, ela é fatista. A cultura contemporânea é a farmácia contemporânea. Ou, pelo menos, a porta de entrada da farmácia.

[tirando o jaleco] Mas é muito agressivo falar de fatos. É como comparecer ao encontro dos deuses ou dos vermes, dos pedidos, dos imaginados e dos futuros contingentes sempre armado. Não seria melhor ir de mãos vazias? [bota o jaleco]

Sim, há um alarido. Eu escuto. Parece uma coisa, uma coisa muito perto e ao mesmo tempo sem lugar certo. Alguma coisa fora dos fatos, alguma nódoa. Como um Eros que não está fadado, um Dyonisos que não é uma questão de fato, uma sombra como se a vida, o prazer e o gozo pudessem ser outra coisa, uma coisa, como uma coisa que morre e que leva para o chão o que carrega um rio que arrasta suas bordas com ele. Já no tempo do fatismo, não há outra cultura e nem outra farmácia senão a contemporânea – a história é a história dos fatos; ou então a história da descoberta dos fatos. Os hormônios e neurônios sempre foram o endereço de Eros, Dyonisos. Só que Eros visto de perto cega, é preciso que entre em cena um consultório, um observatório de fatos, para que ele já não possa mais se esconder quando bem entender. Só que Dyonisos misturado na embriaguez pode dar no pé como um Zé Pilintra, é preciso que ele possa ser posto em fatos, dissecado em reações inexoráveis. O tempo fatista procura puxar o fio de um inexorável; por as coisas em um nexo em que elas não possam sair – Jabés escreveu que um sábio dizia que uma necessidade leva sempre a uma outra necessidade. É de fatos acerca da anatomia que é feito todo Eros, todo Dyonisos. E há alaridos, alaridos de perto, como os últimos dos vaga-lumes que Pasolini uma vez escreveu que desapareciam da Itália. Seu desaparecimento significou o fim de qualquer outra Lebensformen, ele usa a palavra de Wittgenstein, que se contrapusesse ao fascismo – como se subitamente em algum momento de uma arqueologia do que é contemporâneo – que ele encontra em algum ponto da primeira metade dos anos 1960 – o fascismo tivesse se tornado inexorável, não mais como uma máscara, mas como uma anatomia.

Heidegger escreveu na terceira das conferências do seu Einblick in was das ist acerca daquilo que procura fazer com que as coisas estejam sempre à mostra. Aquilo que não deixa que elas se escondam ainda que mantivessem sempre um vão com quem as trata – um Abstand. Trata-se de um impulso de perseguir as coisas, de torná-las cativas, controladas. Quem está perseguido, está em perigo. O perigo é regime do ser que prepondera diante de uma pulsão posicionadora, de um arranjo, de um dispositivo. O ser é aquele que está perseguido, como Eros e Dyonisos postos a se embrenharem nos meandros dos fatos. Ele começa assim: Das Ge-Stell bestellt den Bestand. O que poderia ser: o dispositivo dispõe (d)a disponibilidade. Alguma coisa, uma coisa?, dispõe a disponibilidade, dispõe que é talvez fazer uso, ocupar, poder des-por, poder imperar como um déspota – ter prevalência. Dispõe também é instaurar – como quando uma lei dispõe – faz com que seja, promove um começo. Dispor é assim comandar alguma coisa, e começar alguma coisa. Um parente insuspeito da arché – governo e origem. A disponibilidade é aquilo que pode ou não ocorrer, o que está disponível é o que está posto para jogo, o que está à disposição. Entre uma potência e sua atualização há um vão, o vão da disponibilidade, para que algo venha e faça ou não a atualização. Entre a coisa e sua coisação – como diz Heidegger, com sua expressão de que a coisa coisa – há um Abstand. É nele que pode haver uma interferência de quem dispõe, de quem pode dispor. Porém quem dispõe a disponibilidade? O dispositivo, Ge-Stell. Aquilo que está disponível é como um recurso, algo que pode ser usado já que está guardado – como Eros e Dyonisos no endereço certo, prontos para uso. Assim, o erótico e o dionisíaco estão armazenados nos meandros de fatos que compõem o corpo – e se estão, são como recursos, prontos para serem postos em atividade, prontos para o trabalho, en-ergeia, o termo de Aristóteles para ato: em serviço. Corpos, vistos pela anatomia, são recursos e é dessa maneira que neles há o erótico e o dionisíaco. Uma vez que os recursos podem ser encontrados, já há, segundo Heidegger, um dispositivo uma vez que o que virou recurso já está à disposição, controlado, governado, domesticado e fora do âmbito em que a coisa coisa – do âmbito do rio que arrasta as bordas com ele. É assim Ge-Stell: o dispositivo que dispõe dos recursos. Não ainda o dispositivo, mas sua essência, aquilo que torna-o possível.

Já que a cultura contemporânea é cada vez mais a farmácia contemporânea, e é um fatismo que a molda, os humores, as atrações, as excitações e os prazeres do corpo são cada vez mais recursos para dispositivos. A anatomia é talvez o corpo-Ge-Stell. A farmácia contemporânea é para onde se transferiram, como em uma campanha de remoção de favelas para construir bairros com endereços certos, os estados de espírito, as disposições do corpo e também os géneros. Sim, o trabalho de Paul B. Preciado sugere que a diferença sexual ela mesma é farmacológica. A experiência trans é empurrada para uma quadro fatista – por exemplo: um fato é que eu sou uma mulher em um corpo de homem, como poderia ser um catador de lixo com roupa de consultório (ou de laboratório). Empurrada assim, a experiência trans pode ser monitorada por profissionais – os entendidos dos fatos – e é uma questão de acesso aos recursos. Dito de outra maneira, ela é empurrada para a farmácia contemporânea, junto com Eros e Dyonisos. A cultura? Ela é algo imaterial, dizem. Como por exemplo
o vapor / a fumaça
que é aspergido / que exala
dos frascos / dos defumadores
nessa sala. E o que exala? Pois precisamente Eros e Dyonisos; na forma de anti-depressivos, estrogênio e viagra. Eles dispõem de uma disponibilidade nos meandros dos corpos aqui presentes. E eles são o que são – e vendidos nas farmácias contemporâneas de toda esquina – por causa do fatismo que rege sobre Eros e Dyonisos. E é assim que tratamos a nós mesmos cada vez mais: fazemos com que a coisa coise, controlamos os nossos corpos porque nossos corpos estão controláveis, estão à disposição – nós os governamos, mas apenas porque eles são tidos como governáveis. Quem governa os corpos governáveis? Talvez quem exale / aspirja as proporções de Eros e Dyonisos inseridos no ar.

[tirando o jaleco] Mas nem sempre esses dispositivos vem inteiros, em uma peça só, como uma substância aristotélica feita tanto de matéria como de forma. Nas farmácias contemporâneas eu entendo que os anti-depressivos, o estrogênio e o viagra vem embalados em caixas e dentro delas vem uma bula – uma posologia. Porém nos lixões contemporâneos, nos aterros sanitários contemporâneos, nos esgotos contemporâneos, eles vem em pedaços – matéria já desprovida de forma. Ali um pedaço de maçã apodrece com um anti-depressivo, uma cerveja choca dissolve um estrogênio, uma poça de água dilui um viagra. Os dispositivos se tornam ali uma materialidade; uma materialidade ela mesma disponível mas que não alcança a disponibilidade de coisa alguma – é como um dispositivo sem anatomia, sem mapa, sem eira nem beira. Um dispositivo sem posição. E ali, a cultura contemporânea se torna uma constituinte de corpos que são afetados, mas sem tê-los à disposição. O lixo é o nada contemporâneo, porque os fatos ali se tornam o completamente outro do recurso, o avesso do disponível, o rejeitado, o entulho que é colocado à disposição do desaparecimento. E como completamente outro do recurso, também está disposto porém sem endereço certo, sem posologia, sem mapa. Estamira não encontra fatos no lixão, esbarra quem sabe com o avesso dos fatos – ela navega pelo escorregadio das gambiarras já que é como se o chorume produzisse o avesso das condições normais dos laboratórios. Estamira não trabalha com condições ceteris paribus. Achar um pedaço de pílula no lixão é encontrar também o avesso da farmácia contemporânea; nada está a disposição para aquele dispositivo sem posição. E no entanto, sem caixa, sem plástico, sem forma definida, a matéria fica perto – desprovida da distância e, mais ainda, da lonjura do sem-distância de Ge-Stell. Aqui a pílula simplesmente pilula, o pedaço se despedaça, o solúvel se dissolve e a coisa coisa.

O corpo da anatomia é um recurso. Está à disposição. A farmácia contemporânea o explora com seus dispositivos, e assim o patrocina como recurso. Não se trata de deixar o corpo corpar como a coisa coisa, já que há fatos acerca deles aos quais se deve atender – atender aos fatos dos corpos. Atender ao que há de pronto nele e que se acopla ao resto do mundo sem mesmo a intervenção de um qualquer poder de escapar do seu próprio corpo; fato é fado, anatomia é destino. Há uma verdade nos fatos do corpo que pode ser capturada. Se ela for, ela já prescinde de qualquer senhorio que se esforce para domar o corpo uma vez que o corpo mesmo já fica inteiramente governável, à disposição do senhorio, mas sem nada de pessoal que o conecte ao senhorio pois ao invés do corpo estar à mercê do senhorio ele fica à disposição. Como um recurso. O que Heidegger quer com seu diagnóstico acerca do dispositivo? É certo que ele quer anunciar a época do ser em que ele está em perigo, em que ser é ser perseguido. Emmanuel Faye, em seu esforço por associar Heidegger à introdução do nazismo na filosofia, o contrapõe à um pensamento que não perde de vista a dignidade humana. E Faye faz uso precisamente da terceira conferência do Einblick in was das ist, apropriadamente chamada Die Gefahr – O perigo –, para apontar para o modo como Heidegger fala do Lager utilizando a expressão 'fabricação de cadáveres', como se em Birkenau não houvessem pessoas que morrem, mas apenas corpos que desaparecem. Heidegger escreve que no Lager há verenden mas não sterben, termina-se mas não se morre. E ele escreve procurando a essência da morte (como a da dor e da pobreza) – algo que faça da morte uma coisa que coisa. No tempo em que o ser é ser perseguido, a morte ela mesma se transforma em um recurso. E é certo que Heidegger contrapõe a isso não a dignidade humana, mas a coisa que coisa no corpo, sua verdade que não está em fatos capturáveis, mas em sua capacidade de se desenrolar a si mesmo.

Talvez como no lixo onde as coisas se entulham e por isso se aproximam, gostaria de lembrar de um veredicto dado uma vez por Hans-Jürgen Syberberg no seu filme sobre Hitler. Ele dizia que Hitler havia vencido – na Blitzkrieg de corações e mentes. O que poderia significar essa vitória? Penso em um outro filme, de dois anos antes, de Pasolini: Saló. Na república de Saló, o último bastião do fascismo fascista, os corpos eram inteiramente colocados à disposição. Havia os senhores, sombrios ainda que histriónicos, e haviam corpos – os déspotas eram como os dispositivos. Não posso afirmar – que coisa se pode afirmar no lixo? - que a vitória de Hitler é uma vitória de Ge-Stell, ou dos dispositivos. Talvez seja uma vitória de um par opositor: o corpo anatómico à disposição de um lado, o corpo solto de qualquer fato do outro – o corpo mapeado de um lado, o corpo próximo do outro. Nos dois elementos do par, há uma verdade no corpo, uma verdade da qual se pode aproximar ou cartografando ou deixando que ela floresça e, assim, carregue as bordas de seu rio com ela. O corpo se ocupa em ser.

Em Quelques réflexions sur la philosophie de l'hitlerisme, escrito em 1934, Levinas associa a filosofia do hitlerismo à prevalência do corpo. Não se trata mais, ele escreve, de que a vida de um agente humano se separe do seu corpo e possa manter com ele uma distância que permita uma decisão, mas o agente se torna não um refém mas um entusiasta e um intensificador, ou um exaltador das verdades do seu corpo. O agente é aquele que decide propagar sua verdade já que sua verdade é sua. (Um pouco como os tantos advogados dos fatos, entusiastas dos fatos que não hesitam em fazer uso deles para terminar qualquer discussão.) O hitlerismo segundo Levinas é a tese de que no corpo – no sangue, na comunidade do solo – há verdades, e há que se ser fiel ao ser. Se trata, como ele escreve anos depois em um pós-escrito, de uma possibilidade que a filosofia ocidental não fez o suficiente para barrar e que se inscreve na prevalência do ser. Há alguma coisa no corpo que é próprio e suficiente, e que de alguma forma demanda um espaço para si, um lugar ao sol – como um recurso que precisa ser utilizado ou guardado ou como uma coisa que precisa ser deixada livre para coisar. Há no corpo uma trama da primazia daquilo que é. [bota o jaleco]

Ouço o alarido todo. Eros e Dyonisos tem uma verdade – uma verdade que está no corpo, nas suas potências, nas suas capacidades, nas suas confabulações. Talvez a contraposição de Heidegger entre a proximidade e a cartografia – entre a coisa que coisa e Ge-Stell – se insira em uma batalha contra o ocidente contemporâneo que Heidegger enxergava no hitlerismo. Na cultura contemporânea – que é cada vez mais a farmácia contemporânea e que é um fascismo fatista – é como dispositivo que aparecem Eros e Dyonisos. Porém eles não se escondem muito bem nos meandros dos fatos – eles deixam marcas em outros lugares por onde eles ficam sendo perseguidos. Deixam alaridos. É que eles não gostam do fastio da escassez que rondam os fatos, do miudinho, dos cercamentos – eles são patrícios da abundância. Perseguidos, eles parecem pandas em cativeiro, incapazes de se acender e desafiando os dispositivos – administram viagra nos pandas, filmam pornografias com os pandas e projetam nas telas dos zoológicos para eles porque eles não se excitam em cativeiro. Die Gefahr, Die Gefahr: escrevi uma vez que o erótico é o avesso do medo. O dionisíaco é talvez o avesso do dispositivo. Mas o que é esse avesso? Eros é filho do expediência. Ele não é algo de próprio e recôndito, é algo que ocorre no contato. Dyonisos é amigo do descontrole. Ele opera nas multidões, no contágio e reside talvez nas garrafas de vinho, mas em nenhuma molécula em particular.

[tirando o jaleco] Nos depósitos de lixo, eu encontro marcas de Eros e Dyonisos como os últimos vaga-lumes. Pasolini fala de um fascismo inexorável e sem precedentes que sucedeu ao fascismo democrata-cristão e o fascismo fascista: um fascismo que não é mais representação através de gesto que agradam os caudilhos, mas corpos à disposição dos caudilhos – como na Repubblica di Saló. Já não há mais outras luzes, não há mais outra forma de vida recôndita. É assim a era da farmácia contemporânea: de um fascismo fatista. No entanto, em “Amor no Lixão”, parte do Breviário de Pornografia Esquizotrans que escrevi com Fabiane Borges, a personagem que vai procurar Eros no depósito de lixo diz: nunca deixei de achar que lixo é relíquia dos exageros. O lixão aparece como um espaço de composição, de gambiarra, de bricolagem e por isso de êxtase. Não é a promiscuidade do lixo, mas a invocação – não o chorume, mas o vento quente de que fala Sappho. Mais que no contágio, talvez os vaga-lumes estejam nos pedidos. O cheiro do lixo se impõe, Eros e Dyonisos tentam. Eros e Dyonisos são agentes da sedução, da saída do caminho, da abundância que se contrapõe à agenda de cada um que se ocupa com um quinhão de ser. Eles tentam. Eros e Dyonisos, feitos de tentação, são interrupções. Se há algum vaga-lume cintilando por meio dos fatismos, é o da interrupção, de uma convocação, de um pedido. Agamben uma vez pensou na potencialidade em termos do que podia Akhmatova quando ela dizia que não tinha capacidade de escrever um poema para uma causa – não tinha dentro dela essa capacidade, essa potencialidade, e é por isso que o faria. O pedido invoca a expediência e a expediência é não é feita do que é feita os fatos, é feita do que provoca os fatos. Os vaga-lumes não estão no mapa, mas há tramas que rasgam o mapa.


lunedì 15 agosto 2016

Jesús going

Um grande amigo de um grande amigo, Jesús, que se foi e se disse assim:

La añoranza del mañana

mercoledì 10 agosto 2016

Credo

A Deusa, aquela das mensagens impossíveis,
que outrora contou aos eleatas que nada não é,
veio ter comigo no fim de noite,
na aurora, se diria.
Hora da virada.

Ela disse-me assim: a próximidade
é para gigantes; ou ela se torna
a vazão dos imperativos - a necessidade
que engendra sempre outra necessidade.
Ela disse com o sussurro das coisas grandes
que ficam escondidas à luz do sol
(e mais escondidas ainda sem luz alguma).

O espírito é vasto para ter luxos,
e seu vulnerável não corrói seus espaços;
ele é feito de pedidos, de ingratidão possível;
o esqueleto também é vasto para ter luxos,
virado para o lado de fora.
O avesso do gigantesco não é o ínfimo,
é a mesquinharia.
Protocolar.

Já a megalomania é como Ela,
como a Deusa, como a Natureza,
como a Senhora das Nuvens de Chumbo,
como o Silêncio: anfitriã.

Próximos são os anfitriões,
entendo a Deusa, os que carregam
a força dos imperativos e que não imperam,
entendo na hora do sol nascer, os que carregam
a força do contentamento e que não desabrigam.
Os que são maiores que a lei.


giovedì 4 agosto 2016

Contra Brasil

Apenas vergonha desta nacionalidade que eu porto.
Me dão um passaporte, porque alguém de fora
ainda entende que lá dentro há um país.
Quem pode ver ali um país?
Cruzo as fronteiras para torná-las menos grades,
menos de ferro, menos torpes.
E de onde venho só me encabula e
ao mesmo tempo me amordaça.

Contra Brasil.

Sim, contra, com furor.
Se não suporto um país dominado por banqueiros,
uma ditadura da mídia com um judiciário sem justiça,
entregue às corporações globais
e portanto reacionário como o capital em forma pura,
não suporto Brasil.

Não há nada que me apegue a um país
que tolera um golpe sujo como este golpe branco.
Nada mais.
Que vivam os Guaranis, os botos, o Capão Redondo e a Boca do Rio.
E vivam as pedras de Trindade, mesmo que disponíveis à Angra.
E vivam todas as praias, os calangos, as mangueiras contra o Estado.

Mas não me falem do Brasil.
Sumam daqui com as histórias nacionais,
já suspeito que todos os heróis dos livros,
Pedros, Deodoros, Barbosas,
eram todos Temer de suas épocas,
todos reacionários de má fé,
todos à serviço de fazer a ditadura ficar mais inevitável.
Mais irrespirável.
Portanto não, não sobrou nada;
as palmeiras e o sabiá?
Esvoaçam e gorgeiam,
mas sempre
melhores que qualquer bandeira ou hino nacional.

martedì 26 luglio 2016

Adiamento da coisa

Não deixando que coise
carregamos a coisa para todo o lado,
do armazém pro mobiliário,
da mochila pro armário,
pro pé da escada.
Nunca atuando, sempre disposta,
sempre servida, nunca salvando.
Nós somos nós da espécie dos adiadores,
dos que deixam mundo esperando
até que terminemos de comer nossos biscoitos
e tomar nosso licor.

Quando coisa
ela inventa um tempo que é uma bolha
dois polos, os meridianos, um equador,
uma parte voltada para os dias idos,
uma parte indo.
A coisa também é um adiamento.
Também ela faz um tempo de sombras,
uma dobra escondida e uma quina a mostra,
como o pé da escada.
Também a coisa acende o abajur
e deixa a noite pra mais tarde,
segura o dia como um ponteiro,
como se não fosse o milênio
uma outra coisa.


mercoledì 20 luglio 2016

Cor

Meus espíritos larvais são marionetes
do fio da meada.
O fio? É uma cor, a cor uterina das luzes do corredor com armários
que ficava acesa nos dias de chuva
quando minha mãe dobrava as roupas.

Acendo ela ao meio-dia, meio-dia de sol.
O mundo ensolarado não é meu útero
e nem minha tumba porque eu desisti
de sua cor.
Prefiro com as luzes do corredor com armários
que arrancam do que acontece a cor,
a cor da meada.

domenica 3 luglio 2016

Lembrança do facebook

A escrita do mundo é em um entulho de pedaços de papel rasgado. Mas os garranchos acumulados e o relevo das palavras escritas umas sobre as outras dão a cada pedaço de papel uma marca d'água.

de 3 de julho de 2013

giovedì 30 giugno 2016

Toda a trama subreptícia de quem vive na floresta

Não é a ruga, o viço ou a lisura da árvore
que atrai a trepadeira.
É o cheiro.
A essência do lado de fora.

Tradução

Mudo mundo =(trad)
Wordly world

sabato 4 giugno 2016

Sobre o golpe


1.
Tristes tempos de golpe em uma terra de golpes.
Neste país em que os Guarani algum dia formaram uma sociedade que perseguia com determinação qualquer forma de instituição estatal, agora são todas as instituições estatais que perseguem as sociedades. As sociedades de pessoas, as associações de pessoas com plantas, as associações de animais, as aldeias, os quilombos, as comunidades, as redes de computadores e muitas outras estão as voltas com essa perseguição. Perseguição de controle, perseguição de morte. E aqui mesmo por essas terras por onde andavam os Guaranis - ficar parado atrai os estados de Estado - as instituições estatais se proliferam. Elas se espalham como uma praga descontrolada: os três poderes deles se capilarizando em muitos guardas da esquina que ocupam os vãos onde crescia grama, a mídia cobrindo os passos de quem se move no Estado das coisas, os aparelhos ideológicos do Estado cada dia mais ideológicos em favor dele e cada dia mais aparelhados e mais parecidos com os dispositivos plug-and-play, os aparelhos repressivos do Estado que tem cada vez mais não apenas o monopólio da violência de direito mas também de fato já que armas do Estado são cada dia mais potentes, exclusivas e rápidas que todas as armas que podem conseguir os que operam para dissolvê-los. E ao seu lado, o mercado provendo a maior parte da comunicação entre as pessoas. Ao seu lado, em um tango estrutural, em um bolero estruturante, em uma relação de predação mútua que dá as cartas no campinho. Uma mão lava a outra. E assim marcham pelos golpes afora sobre a terra arrasada. Não foi diferente dessa vez.
Os Guarani, mais uma vez, perdem e sua suspeita dos Estados que fazem tudo para serem os únicos fica ainda mais dizimada. A espera de ser ressuscitada quando a vulnerabilidade não for sinal de rendição.

2.
Na estação do golpe, aqui mesmo em Brasília, ao lado dos três poderes que são tantos, a estação das mixiricas é abundante. Parece uma espécie de compensação cósmica para tanta tristeza - ninguém melhor que as tangerinas sabem amortizar e prover as pequenas alegrias. Ou talvez seja como o que se passa com uma mangueira ferida, ou com a terra cheia de radioatividade em Chernobyl: ela se torna mais frutífera, ela se concentra em dar frutos nas condições adversas. As mixiricas, melhores amigas das pessoas, percebem que suas bocas ficaram amargas, insólitas, sem saber como degustar e por isso mesmo intangíveis. E encheram suas árvores de frutas e o ar com o cheiro de tangerina.
O cheiro de tangerina simultâneo ao golpe. Simultâneo ao cheiro do arbítrio. Há mais de duas semanas de estado de exceção não declarado, já não há mais dúvidas do diagnóstico e, ainda assim e por isso mesmo, o supremo tribunal tem seus membros visitando o caudilho em sua casa - como acontecia na Espanha de Franco. E por muitas estações, a Espanha de Franco deu laranjas, tangerinas, bergamotas em pencas pelas ruas. Nada incrimina as mixiricas que, mais certo que tudo, tem seu próprio tempo. Quem não tem seu próprio tempo é o funcionário Gilmar Mendes que se ocupa de passar o fim de semana agendando uma visita ao caudilho.
E a mídia informa que o golpe foi arquitetado com afinco pelos funcionários do Estado e do Mercado, os de sempre. Conta como eles conversavam, como eles conspiravam, como eles montavam o bote. A conspiração não é crime no país. A mídia pode contar porque ela não diz que ruim ou que é criminoso - e que pode ser criminoso ainda que não haja crime.
As ilações e os nexos, aquilo que move a invenção da justiça, eles mesmos estão tomados pelo golpe.

3.
O golpe não é nada de sui generis na história do país e do continente. Sempre os mesmos atores, sempre as mesmas agendas - aquelas do mercado, da condição de bantustão do capitalismo mundial que as Américas não americanas precisam permanecer. Não é só parte da conspiração contra a Venezuela e nem só da campanha do Grupo Macri para colocar a própria corporação no poder na Argentina. É parte de uma disputa secular entre o capital que quer bater na mesa e alguma outra força que quer se exprimir mesmo sem ser rica. O cspital, claro, não se importa em ser fraco, desde que não seja pobre. E assim aparece o ministério: homens, brancos, com elos fortes com o capital mundial, subvencionados pelos fundos de submissão do continente e - importante e por tudo isso - ricos. O golpe dos ricos. E os ricos do capital não são aqueles que esbanjam em banquetes abertos a todos, mas aqueles que contam seus centavos para que se multipliquem.
Dizem que de 10 em 10 anos, ou de 12 em 12, há uma intervenção mais violenta do capital na América Latina para garantir que as dívidas vão continuar aumentando, que mais acumulação primitiva vai estar disponível, que as empresas sejam propriedade internacional etc. Trata-se de construir um bloco histórico com políticos, endinheirados locais, a mídia e os magistrados que sempre se mantêm em amor dedicado às causas da sua própria classe social. Ou seja, de tempos em tempos precisam de um golpe. E seus porta-vozes dirão sempre que golpes assim são democráticos. Para isso, é bom que quando der, eles possam ser absorvidos pelo ritual democrático. Para ver esses golpes de vista, as vezes é preciso enxergar que não há democracia no ritual democrático.

4.
A cada dia uma guerra de nervos. Nervos desaforados. Ver o golpe como um golpe - e como um golpe do capital - torna os dias sombrios. Me sinto minguado. Para que então qualquer trabalho - mesmo aqueles que ninguém registra - se o capital compra tribunais, televisões, pílulas, ideias, campos de árvores de mixiricas e molho de passas? Parece que somos lembrados de um cabresto que está por perto, que somos lembrados que estamos na mira de um punhal, e a qualquer momento um golpe pode vir pelas costas. Os golpes tem essa finalidade, o terrorismo do capital. Somos sociedades podadas, que não criam nada porque tem medo da força tonitruante do dinheiro que vem de fora.
Durante o golpe - e esse golpe se arrasta e melhor que se arraste já que não posso ver ele consumado - entendo que estamos aterrorizados. E por isso estamos em perigo. Tomar uma sociedade de assalto é cada vez mais fácil: basta tomar suas rédeas.
E os Guarani massacrados, logo eles, foram substituídos por uma sociedade com rédeas.


giovedì 26 maggio 2016

A ars poética do comecinho

As pedras, as folhas, todas as coisas jazem no chão
- que caralho jazem?
Já os pós, as folhas, todas as coisas voam no céu
- que boceta voam?
Na sala fechada da noite
com a lâmpada estromboscópica intermitente
os que vieram a ser homens,
os que voltaram de ser mulheres
dançam, dançam, dançam.
Ali na esquina, com umas luzes de neon,
com um leão de chácara que guarda a porta
- que merda guarda?

Dando voltas em torno da esquina da boate
não procuro as palavras
fico com as que já estão aqui
para serem ditas - que coisa dizem?
Talvez não procurar seja ser procurado.
Fecho e abro uma portinha de plástico
no parque de plástico; nem procurar
e nem ser procurado.

Sem as palavras procuradas, as piruetas
solitárias,
há só os nexos inexoráveis?
Ainda não é noite e nem a manhã começou.
Mas vejo um vagalume sem mágoa.


mercoledì 18 maggio 2016

Duas mortes: texto

1. Como viver? Como deixar viver? Como deixar de viver?
Samuel Beckett escreveu uns versos sobre todo o alarido com a vida, a morte e outras dores de meia pataca.
O alarido é político.
As dores de meia pataca giram em torno da sobrevivência. Nada importa mais à qualquer política do que a sobrevivência – quem sobrevive, quando sobrevive, por quanto tempo sobrevive. Mesmo que a sobrevivência valha meia pataca.

2. O conflito da política é como viver, ou como sobreviver.
Como viver é também como morrer.
E os conflitos são também sobre como morrer.
Como, quem e o que fica fora da vida.

3. Há a morte médica, a morte que é consequência das contingências dos órgãos dos corpos, um desaparecimento (a palavra de Heidegger sobre quem foi para a câmara de gás e não morreu, apenas foi matado). E há a morte do suicida que explode em Dizengoff. A segunda morte é a morte de alguém, algo como o fim de um ser-para-a-morte, algo como um ente que se expressa, que se faz se desfazendo. 

4. Tenho o medo de que se eu explodir alguma instituição ignóbil - mesmo que eu morra - as mortes causadas não vão mais ser do segundo tipo, vão ser médicas. Ou seja, as pessoas não vão morrer, vão simplesmente desaparecer (a palavra de Heidegger sobre quem foi para a câmara de gás e não morreu, apenas foi matado). A morte física de uma personagem política é médica, mesmo se ela for assassinada. Vão dizer: "vítima de um ensandecimento, vítima de uma violência nociva, vítima de uma vontade torta" como quem diz "vítima de um aneurisma, vítima de um câncer, vítima de uma embolia". Ninguém mais pode ser agente de uma morte, nem o assassino de seu corpo assassinado, nem o suicida de seu corpo suicidado, nem o doente terminal de seu corpo terminal. O homem que ateou fogo ao próprio corpo na frente do palácio do Planalto um mês antes do golpe foi levado para o hospital. Talvez curado. Medicalizado.
Leminski estava certo: antigamente é que se morria, agora sim a vida é crônica.
Ou seja, não vão deixar que a morte seja política. Há a medicina como um aparador de arestas entre o protocolo institucional e a pura violência. 

5. Há os fatos do mundo – há os fatos médicos, por exemplo. E há uma crença de que são os fatos que vão nos redimir.
Um Fatismo.
Pesquisas fatistas, tratados fatistas, tudo o que é natural, humano ou não, é apresentados como casos de fatismo. Ao final e em última instância, tudo são fatos.
Mas é claro que a grama cresce entre os fatos.

6. É uma vontade de heroísmo? De heroísmo proscrito porque a morte não pode ser mais nossa? É uma vontade de mudar as cláusulas do contrato, ao invés de só poder sair dele. Diante do rompimento do contrato social (pelas invasões, pelas propinas, pelas chacinas, pelos genocídios, pelos golpes), só há uma coisa a fazer, voltar ao estado de natureza?
Querer outra morte é querer que se possa sair do contrato social por algum meio que não seja o do desaparecimento (a palavra de Heidegger sobre quem foi para a câmara de gás e não morreu, apenas foi matado).
Mudar as cláusulas de um contrato é um avesso do fatismo. Renegociar. Mudar a fita métrica, a balança, o medidor.

7. Ou qual é o nome do projeto político anunciado pelo diagnóstico de Heidegger que encontra no Lager verenden mas não sterben?
O corpo é aquilo que é matável.
E assim se encontram duas mortes: a morte pessoal, política, extensão ou término da vida de um corpo com suas experiências e a morte médica, desprovida de qualquer conteúdo para além da impessoalidade de uma condição, de um agenciamento patológico. Órgãos prontos para o corpo ou corpos a serviço dos seus órgãos.
Como caso médico, a morte fica dissociada de toda experiência corporal da vida - e empurrada em direção a uma experiência orgânica, organísmica, organizacional da vida. Fica instituída a morte inócua. É essa morte, que a torna irrelevante à vida.
E torna o corpo irrelevante à experiência. Transforma o corpo que é recurso para toda invenção em funcionário.
E entramos em um regime de sobrevivência em que só importa quem está vivo.
Todo o resto fica cirúrgicamente desaparecido.

8. E é talvez por isso que o golpe de estado já não tenha mais a forma militar onde são engajadas a ameaça da morte (da morte inventada, épica, feita de delírio, feita de desejo mais forte que a vontade de viver). O golpe passa a querer usar a forma da lei estabelecida; a forma da sobrevivência.
Resta-lhe usar a lei para ser fora da lei.  E fazer parecer que tudo está como antes – a divisa dos que escolheram sobreviver.

giovedì 5 maggio 2016

As duas mortes (abstrato do ato)


Qual é o nome do projeto político anunciado pelo diagnóstico de Heidegger que encontra no Lager verenden mas não sterben? Trata-se decerto da matabilidade - mas essa noção mesma pode ser ampla o suficiente para estender a dicotomia a dois corpos e, assim, a duas experiências corporais já que o corpo é aquilo que é matável. E assim se encontram duas mortes: a morte pessoal, política, extensão ou término da vida de um corpo com suas experiências e a morte médica, desprovida de qualquer conteúdo para além da impessoalidade de uma condição, de um agenciamento patológico. No segundo caso, a morte fica dissociada de toda experiência corporal da vida - e empurrada em direção a uma experiência orgânica, organísmica, organizacional da vida. É essa segunda morte, que a torna irrelevante à vida (Antigamente é que se morria... diz um verso do Leminski), que parece estar associada a uma sociedade de controle, ou a uma sociedade do cansaço. Precisamente porque a contraposição entre vida e morte se torna a-política, irrelevante à disputa entre as formas de vida, é que entramos em um regime biopolítico em que apenas importa quem está vivo - todo o resto fica apenas medicamente desaparecido. E é talvez por isso que o golpe de estado já não tenha mais a forma militar onde são engajadas a ameaça da morte (heróica). O golpe passa a querer usar a forma da lei estabelecida - e assim quer usar a lei para ser fora da lei.

Este ato vai procurar investigar algumas dessas consequências (para a vida política) da instituição de uma morte inócua.

sabato 30 aprile 2016

esses dias

Via Camille Desmoulins:
"Il n’y a pas un moment à perdre. J’arrive de l'Explanada. Mme. Dilma est en train d'être renvoyée ; ce renvoi est le tocsin d’une Saint Barthélémy des ouvriers, des périphéries, des patriotes. Ce soir même, tous les bataillons de Temer et Cunha seront la pour nous égorger. Il ne nous reste qu’une ressource, c’est de courir aux armes et de prendre des cocardes pour nous reconnaître".

venerdì 22 aprile 2016

Trechos de uma Haggadah da Hospitalidade

Em um trecho do início do último livro de Jabès, "O Livro da Hospitalidade", de 1991, ele fala sobre o conflito na palestina em uma tonalidade que me interessa. Ele começa dizendo que anti-semitismo hoje signiica: acreditar que os judeus de todo mundo devem defender israel aconteça o que acontecer. E ele prossegue: o que significa dizer "aconteça o que acontecer"? Esta expressão mesma pauta toda a sua relação com Israel (e isso no início dos ano 90) e com respeito a tudo o que ocorre e que beira o intolerável. E ele se posiciona através de uma inquietude e de uma convicção: jamais uma ferida vai curar uma ferida. E ele adiciona: sei que esta palavra é frágil e que não se apoia senão sobre ela mesma. E seguem duas vozes, como as duas vozes judaicas dos encontros do Klein e do Gross Jude de Paul Celan:
Subscrever, em princípio, a política do governo do momento no estado hebreu não é reduzir, a cada vez, a imagem do país à política do momento?
E se eu penso, no meu foro íntimo, que esta política é detestável, perigosa, nefasta para este mesmo estado, devo me calar?
Me calar em nome do que?
Me calar seria de uma certa maneira aprovar, coadunar, pelo meu silêncio, com aquilo que me agride e me revolta; com o que, além do mais, é o que eu denuncio e condeno alhures.
E seria uma traição.
Uma palavra solitária não diz, em princípio, da solidão na qual ela se debate.
Mas se esta palavra é aquela que salva, palavra íntima de dor e de razão, palavra de apelo? Este apelo, privado de ecos, se ajunta àquele dos militantes lúcidos, agrupados em torno de duas palavras solares: Justiça e Paz.
Duas palavras, dependentes uma da outra, como dois batentes de uma mesma porta. Possam Israelenses e Palestinos, juntos, abrir largamente essa porta para deixar entrar o dia.
Simplifique o discurso
Limite-se ao essencial
A força é ilusão perigosa. Esquecer isso é recusar-se a olhar a realidade de frente.
A que realidade faço alusão? Àquela que dilacera um país sem esperança mas que para sobreviver precisa continuar a ter esperança.
[…]
A chance de todo diálogo está no diálogo mesmo.

giovedì 14 aprile 2016

Duas mortes (um rascunho para um ato)

A permanência de certos conflitos no mundo são testemunha de como nos colocam para viver - e para o que está antes da vida, depois da vida, ao lado da vida e fora da vida. Não por algo mais uniforme do que uma transversalidade, não por causa de alguma condição geral que tem exemplos por toda parte, e exemplos bons (ou seja, protótipos, exemplos ideais) em algumas partes. Não pela uniformidade, talvez pelo sintoma.
Assim é com o conflito entre os Israelenses - que começaram como filhos dos judeus, reconhecidos no ocidente, e que lembravam de sua Terra sem terra - e os Palestinos - que começaram surgidos do limbo da inexistência, desconhecidos fora do oriente, e que ficavam pela terra sem Terra. Um conflito sobre como se ocupar na vida - ou seja, um conflito político, o que quer dizer sobre o emprego do tempo. Ou antes, sobre a vida regrada pelas instituições e protocolos e a violência atrás de um muro, ou atrás das câmeras, ou atrás da rotina.
Mas também um conflito sobre o que morre, como morre e não somente quem morre - o que fica fora da vida. Há a morte médica, a morte que é consequência das contingências dos órgãos dos corpos, um desaparecimento (a palavra de Heidegger sobre quem foi para a câmara de gás e não morreu, apenas foi matado). E há a morte do suicida que explode em Dizengoff. A segunda morte é a morte de alguém, algo como o fim de um ser-para-a-morte, algo como um ente que se expressa, que se faz se desfazendo.
Tenho o medo de que se eu explodir alguma instituição ignóbil - mesmo que eu morra - as mortes causadas não vão mais ser do segundo tipo, vão ser do primeiro. Ou seja, as pessoas não vão morrer, vão simplesmente desaparecer (a palavra de Heidegger sobre quem foi para a câmara de gás e não morreu, apenas foi matado). A morte física de uma personagem política é médica, mesmo se ela for assassinada. Vão dizer: "vítima de um ensandecimento, vítima de uma violência nociva, vítima de uma vontade torta" como quem diz "vítima de um aneurisma, vítima de um câncer, vítima de uma embolia". Ninguém mais pode ser agente de uma morte, nem o assassino de seu corpo assassinado, nem o suicida de seu corpo suicidado, nem o doente terminal de seu corpo terminal. O homem que ateou fogo ao próprio corpo na frente do palácio presidencial foi levado para o hospital. Talvez curado. Medicalizado.
Leminski estava certo: antigamente é que se morria, agora sim a vida é crônica.
Ou seja, não vão deixar que a morte seja política. Há a medicina como um aparador de arestas entre o protocolo institucional e a pura violência.
Há os fatos do mundo - os fatos médicos, por exemplo. E há uma crença de que são os fatos que vão nos redimir. Um Fatismo. Pesquisas fatistas, tratados fatistas, natureza apresentada como um caso de fatismo. Mas a grama cresce entre os fatos.
É uma vontade de heroísmo? De heroísmo proscrito porque a morte não pode ser mais nossa? É uma vontade de mudar as cláusulas do contrato, ao invés de só poder sair dele. Diante do rompimento do contrato social (pelas invasões, pelas propinas, pelas chacinas, pelos genocídios), só há uma coisa a fazer, voltar ao estado de natureza? Querer outra morte é querer que se possa sair do contrato social por algum meio que não seja o do desaparecimento (a palavra de Heidegger sobre quem foi para a câmara de gás e não morreu, apenas foi matado).

martedì 12 aprile 2016

A polarização

Sempre tive vergonha de estar em um país que houve 1964. É certo que há vergonhas por toda parte, que a história dos vencedores é uma história de usurpações mais ou menos disfarçadas. 1964 foi das menos disfarçadas. O disfarce as vezes, é certo, é parte da crueldade. Nesse caso, ele foi rude e modesto como um cobertor curto, mas bastante cruel. 1964 foi uma usurpação, em nome de poucos, e o disfarce não era muito mais do que um apelo à ordem. É certo que o fascismo venceu e não sobrou muito mais a ser feito - mas sobrou alguma coisa. O suficiente para passarmos décadas nos convencendo de que 1964 havia passado. A cada virada de março para abril, um arrepio. E agora, tantos anos depois, isso. O arrepio todo dia. 1964 não acabou.

E tem a forma de uma polarização. Uma polarização que é magnética, convoca forças mesmo as que já nem pareciam feitas de metal. Estou polarizado. O que torna toda polarização difícil de ser exorcizada é que quem está em um pólo não consegue conceber outro. Há um slogan, inspirado na fala do Lula, que diz: este não será o país do ódio. E, eu penso, é melhor que este não seja o país odiável. Não concebo o outro pólo, não posso conceber. Odiável é um país que interrompa um governo decepcionante para atender aos apelos das corporações do petróleo. E sim, atender às corporações, e deixar gente miserável tem um nome: 1964. Eu suponho que 1964 também era um tempo de polarizações. Entre aqueles que queriam ordem - e era a igreja, os bons costumes, os zeladores das propriedades - e aqueles que preferiam que não houvesse 1964. Como hoje há aqueles que querem ordem - e chamam quem desvia de uma restrita taxonomia sexual de produtos de uma ideologia, os bons costumes, os zeladores das propriedades que pensam que o dinheiro dos bancos importa mais do que a distribuição de verba para a subsistência. Eu simplesmente não posso conceber o odiável defendido - ainda que tenha que conceber o odiável acontecido, acontecido quotidianamente em um país que parece um enorme museu que celebra o fascismo dos usurpadores de 1964.

Não consigo pensar fora da polarização. Mas dentro dela, há universos inteiros - negligenciados por uma estratégia de unificação rápida, ou por uma estratégia de unificação dialogada. Já a polarização não comporta universos. A polarização não é só de pontos de vista políticos - como isso pudesse ser separado das maneiras de viver que eu aprecio, das que eu adoto e das que eu abomino. A polarização não é só o alambrado na explanada que a torna arquibancada de torcidas onde o palco é mais uma vez os tais três poderes instituídos e tornados em estátuas - afinal de contas, os três poderes são um só, o deles. A polarização não é só moral, mas é moral. É certo, a luta de classes é moral.

Trata-se de uma indignação. Como podem os que estão do outro lado do cercado, ou dentro da câmara dos deputados votando pela destituição de um governo e da subsequente entrega do poder aos abutres que são mais abutres que todos os abutres (os abutres comezinhos, já que nem sequer são abutres) serem pensados senão como aqueles que amam incondicionalmente seu rico dinheirinho e querem ordem para protegê-lo e progresso para construir rodovias de alta precisão para sua corrida pelas batatas? Ou seja, eles são impensáveis. E estão ali, do outro lado da cerca, não apenas como inimigos, mas como perigosas ameaças. Talvez seja uma cegueira - talvez os outros mereçam alguma espécie de diálogo que eu não sei fazer. Talvez estejamos todos fora do caminho. Obcecados, ou mesmo manipulados. A indignação mereceria, neste caso, ser dissolvida, decomposta, desarmada. E no entanto eu não poderia colocar os dois pólos no mesmo pólo - eles são como os círculos polares da Terra, vistos de longe podem ser semelhantes, mas quem consegue vê-los de longe?

Tento dar um passo atrás. Claro, a polarização ela mesma interessa a alguns - o clima re-1964 interessa também. O próprio governo se beneficia disso para colocar uma multidão (ainda que ou demasiadamente amorfa ou demasiadamente organizada) a seu lado na rua. Ele se torna de esquerda pelas palavras mágicas "não vai ter golpe". Portanto, para que polarizar? Não deveríamos antes nos agrupar para fazer uma okupa no plenário da câmara e lutar pela democracia inventando uma e não gritando por uma formalidade de baixíssima intensidade? (Ou quem acha que uma assembléia presidida por quem tem negócios escusos na África que se não for negócio de lavagem de dinheiro é negócio de racismo econômico pode ser uma instância defensora de algum status quo que mereça ser defendido?) Não deveríamos estar todos do lado de fora talvez ateando fogo no próprio corpo em frente a um palácio presidencial para mostrar a inflamabilidade da carne de toda essa disputa que vai terminar de qualquer jeito beneficiando algum setor do capitalismo polimorfo? Não seria melhor inaugurar outra assembléia, outra praça de outros poderes que tivesse um pouco mais do que só um, dois ou três deles? Todas estas alternativas me atraem muito. Chega de ser refém da sinuca de bico que os governos de esquerda colocam seus simpatizantes: ou o mais ou menos (já que o ótimo é inimigo do bom) ou a catástrofe da direita (que geralmente é bem mais catastrófica do que os próprios governos mais à esquerda querem fazer acreditar). Seria bom romper com isso e gritar que a polarização já é um golpe.

Porém, não posso. Sinto os cheiro dos abutres comezinhos que não são abutres. Parece que é cheiro de petróleo, e é cheiro plastificado na forma de cartões de crédito - dinheiro que perde o cheiro. Tanto melhor se pudermos inventar alguma democracia para defender, mas enquanto isso estou na polarização, no medo, já que 1964 não acabou, já começou e ensinou que a democracia de baixa intensidade pode ser seguida de uma ditadura do de alta intensidade - ainda que as instituições (quem pode ainda olhar só para elas?) permaneçam as mesmas. Não consigo arredar o pé deste lado da polarização. Acho que só saio daqui quando esta praça não tiver mais nenhum poder - quando a geografia for outra. Enquanto isso, finco o pé no pólo mais justo.

giovedì 24 marzo 2016

Vrim

O que mais me assusta na ideia de te ter
é que a vida passa a ter dois tempos.
É certo que a vida sempre teve vários tempos presentes -
e que o tempo presente ele mesmo só é presente
se ele é endereçado ao futuro, feito para passar,
como um repetidor que deixa uma marca,
um sulco, um traço que vira nódoa.
Mas este endereçamento recebeu os teus olhos.
Eu sempre soube que tua importância era tão grande
que eu jamais poderia ver meu próprio presente
e todo o futuro que faz dele passado
apenas com os meus olhos. Seria preciso
que tudo isso fosse visto também por você.
Você futura, que eu não conheço
por mais que conheça em você presente
todas as marcas, os sulcos,
os traços do teu rosto quando nos meus braços
nós abraçamos as árvores
e você balbucia: é (ou eh!).
Mas é a você futura que eu não conheço
que eu oriento também meus passos
(e meus saltos, e meus galopes,
e meus vacilos).
E é um futuro indeterminado, como a de uma mensagem
que pode chegar a qualquer momento
já que nunca termina de chegar.
Você futura é uma multidão
da qual eu não vejo os rostos.
Uma falta de solidão avassaladora
me acompanha já que você existe.
Como se o meu presente não bastasse,
só porque é meu.
Na víscera do meu presente, os teus olhos
futuros - minha insuficiência de fato
não importa com quantas medidas
de suficiência de direito.
Que outros olhos futuros são estes?

Uma vez, de noite, no Parque Juarez, em Xalapa,
seis meses antes de você nascer eu pensei:
vou suportar estar tão pouco desacompanhado?

I gionani infelice (P. P. Pasolini)

Uno dei temi più misteriosi del teatro tragico greco è la predestinazione dei figli a pagare le colpe dei padri.

Non importa se i figli sono buoni, innocenti, pii: se i loro padri hanno peccato, essi devono essere puniti.

È il coro – un coro democratico – che si dichiara depositario di tale verità: e la enuncia senza introdurla e senza illustrarla, tanto gli pare naturale.

Confesso che questo tema del teatro greco io l'ho sempre accettato come qualcosa di estraneo al mio sapere, accaduto «altrove» e in un «altro tempo». Non senza una certa ingenuità scolastica, ho sempre considerato tale tema come assurdo e, a sua volta, ingenuo, «antropologicamente» ingenuo.

Ma poi è arrivato il momento della mia vita in cui ho dovuto ammettere di appartenere senza scampo alla generazione dei padri. Senza scampo, perché i figli non solo sono nati, non solo sono cresciuti, ma sono giunti all'età della ragione e il loro destino, quindi, comincia a essere ineluttabilmente quello che deve essere, rendendoli adulti.

Ho osservato a lungo in questi ultimi anni, questi figli. Alla fine, il mio giudizio, per quanto esso sembri anche a me stesso ingiusto e impietoso, è di condanna. Ho cercato molto di capire, di fingere di non capire, di contare sulle eccezioni, di sperare in qualche cambiamento, di considerare storicamente, cioè fuori dai soggettivi giudizi di male e di bene, la loro realtà. Ma è stato inutile. Il mio sentimento è di condanna. I sentimenti non si possono cambiare. Sono essi che sono storici. È ciò che si prova, che è reale (malgrado tutte le insincerità che possiamo avere con noi stessi). Alla fine – cioè oggi, primi giorni del '75 — il mio sentimento è, ripeto, di condanna. Ma poiché, forse, condanna è una parola sbagliata (dettata, forse, dal riferimento iniziale al contesto linguistico del teatro greco), dovrò precisarla: più che una condanna, infatti il mio sentimento è una «cessazione di amore»: cessazione di amore, che, appunto, non da luogo a «odio» ma a «condanna».

Io ho qualcosa di generale, di immenso, di oscuro da rimproverare ai figli. Qualcosa che resta al di qua del verbale: manifestandosi irrazionalmente, nell'esistere, nel «provare sentimenti». Ora, poiché io — padre ideale – padre storico – condanno i figli, è naturale che, di conseguenza, accetti, in qualche modo l'idea della loro punizione.

Per la prima volta in vita mia, riesco così a liberare nella mia coscienza, attraverso un meccanismo intimo e personale, quella terribile, astratta fatalità del coro ateniese che ribadisce come naturale la «punizione dei figli».

Solo che il coro, dotato di tanta immemore, e profonda saggezza, aggiungeva che ciò di cui i figli erano puniti era la «colpa dei padri».

Ebbene, non esito neanche un momento ad ammetterlo; ad accettare cioè personalmente tale colpa. Se io condanno i figli (a causa di una cessazione di amore verso di essi) e quindi presuppongo una loro punizione, non ho il minimo dubbio che tutto ciò accada per colpa mia. In quanto padre. In quanto uno dei padri. Uno dei padri che si son resi responsabili, prima, del fascismo, poi di un regime clerico-fascista, fintamente democratico, e, infine, hanno accettato la nuova forma del potere, il potere dei consumi, ultima delle rovine, rovina delle rovine.

La colpa dei padri che i figli devono pagare è dunque il «fascismo», sia nelle sue forme arcaiche, che nelle sue forme assolutamente nuove – nuove senza equivalenti possibili nel passato?

Mi è difficile ammettere che la «colpa» sia questa. Forse anche per ragioni private e soggettive. Io, personalmente, sono sempre stato antifascista, e non ho accettato mai neanche il nuovo potere di cui in realtà parlava Marx, profeticamente, nel Manifesto, credendo di parlare del capitalismo del suo tempo. Mi sembra che ci sia qualcosa di conformistico e troppo logico — cioè di non-storico — nell'identificare in questo la colpa.

Sento ormai intorno a me lo «scandalo dei pedanti» — seguito dal loro ricatto – a quanto sto per dire. Sento già i loro argomenti: è retrivo, reazionario, nemico del popolo chi non sa capire gli elementi sia pur drammatici di novità che ci sono nei figli, chi non sa capire che essi comunque sono vita. Ebbene, io penso, intanto, che anch'io ho diritto alla vita – perché, pur essendo padre, non per questo cesso di essere figlio. Inoltre per me la vita si può manifestare egregiamente, per esempio, nel coraggio di svelare ai nuovi figli, ciò che io veramente sento verso di loro. La vita consiste prima di tutto nell’imperterrito esercizio della ragione: non certo nei partiti presi, e tanto meno nel partito preso della vita, che è puro qualunquismo. Meglio essere nemici del popolo che nemici della realtà.

I figli che ci circondano, specialmente i più giovani, gli adolescenti, sono quasi tutti dei mostri. Il loro aspetto fisico è quasi terrorizzante, e quando non terrorizzante, è fastidiosamente infelice. Orribili pelami, capigliature caricaturali, carnagioni pallide, occhi spenti. Sono maschere di qualche iniziazione barbarica. Oppure, sono maschere di una integrazione diligente e incosciente, che non fa pietà.

Dopo aver elevato verso i padri barriere tendenti a relegare i padri nel ghetto, si son trovati essi stessi chiusi nel ghetto opposto. Nei casi migliori, essi stanno aggrappati ai fili spinati di quel ghetto, guardando verso noi, tuttavia uomini, come disperati mendicanti, che chiedono qualcosa solo con lo sguardo, perché non hanno coraggio, ne forse capacità di parlare. Nei casi né migliori né peggiori (sono milioni) essi non hanno espressione alcuna: sono l'ambiguità fatta carne. I loro occhi sfuggono, il loro pensiero è perpetuamente altrove, hanno troppo rispetto o troppo disprezzo insieme, troppa pazienza o troppa impazienza. Hanno imparato qualcosa di più in confronto al loro coetanei di dieci o vent'anni prima, ma non abbastanza. L'integrazione non è un problema morale, la rivolta si e codificata. Nei casi peggiori, sono dei veri e propri criminali. Quanti sono questi criminali? In realtà, potrebbero esserlo quasi tutti. Non c'è gruppo di ragazzi, incontrato per strada, che non potrebbe essere un gruppo di criminali. Essi non hanno nessuna luce negli occhi: i lineamenti sono lineamente contraffatti di automi, senza che niente di personale li caratterizzi da dentro. La stereotipia li rende infidi. Il loro silenzio può precedere una trepida domanda di aiuto (che aiuto?) o può precedere una coltellata. Essi non hanno più la padronanza dei loro atti, si direbbe dei loro muscoli. Non sanno bene qual è la distanza tra causa ed effetto. Sono regrediti — sotto l'aspetto esteriore di una maggiore educazione scolastica e di una migliorata condizione di vita — a una rozzezza primitiva. Se da una parte parlano meglio, ossia hanno assimilato il degradante italiano medio — dall'altra sono quasi afasici: parlano vecchi dialetti incomprensibili, o addirittura tacciono, lanciando ogni tanto urli gutturali e interiezioni tutte di carattere osceno. Non sanno sorridere o ridere. Sanno solo ghignare o sghignazzare. In questa enorme massa (tipica, soprattutto, ancora una volta!, dell'inerme Centro-Sud) ci sono delle nobili élites, a cui naturalmente appartengono i figli dei miei lettori. Ma questi miei lettori non vorranno sostenere che i loro figli sono dei ragazzi felici (disinibiti o indipendenti, come credono e ripetono certi giornalisti imbecilli, comportandosi come inviati fascisti in un lager). La falsa tolleranza ha reso significative, in mezzo alla massa dei maschi, anche le ragazze. Esse sono in genere, personalmente, migliori: vivono infatti un momento di tensione, di liberazione, di conquista (anche se in modo illusorio). Ma nel quadro generale la loro funzione finisce con l'essere regressiva. Una libertà «regalata», infatti, non può vincere in esse, naturalmente, le secolari abitudini alla codificazione.

Certo: i gruppi di giovani colti (del resto assai più numerosi di un tempo) sono adorabili perché strazianti. Essi, a causa di circostanze che per le grandi masse sono finora solo negative, e atrocemente negative, sono più avanzati, sottili, informati, dei gruppi analoghi di dieci o vent'anni fa. Ma che cosa possono farsene della loro finezza e della loro cultura?

Dunque, i figli che noi vediamo intorno a noi sono figli «puniti»: «puniti», intanto, dalla loro infelicità, e poi, in futuro, chissà da che cosa, da quali ecatombi (questo è il nostro sentimento, insopprimibile).

Ma sono figli «puniti» per le nostre colpe, cioè per le colpe dei padri. È giusto? Era questa, in realtà, per un lettore moderno, la domanda, senza risposta, del motivo dominante del teatro greco.

Ebbene sì, è giusto. Il lettore moderno ha vissuto infatti un'esperienza che gli rende finalmente, e tragicamente, comprensibile l'affermazione — che pareva cosi ciecamente irrazionale e crudele – del coro democratico dell'antica Atene: che i figli cioè devono pagare le colpe dei padri. Infatti i figli che non si liberano delle colpe dei padri sono infelici: e non c’è segno più decisivo e imperdonabile di colpevolezza che l’infelicità. Sarebbe troppo facile e, in senso storico e politico, immorale, che i figli fossero giustificati – in ciò che c’è in loro di brutto, repellente, disumano – dal fatto che i padri hanno sbagliato. L’eredità paterna negativa li può giustificare per una metà, ma dell'altra metà sono responsabili loro stessi. Non ci sono figli innocenti. Tieste è colpevole, ma anche i suoi figli lo sono. Ed è giusto che siano puniti anche per quella metà di colpa altrui di cui non sono stati capaci di liberarsi.

Resta sempre tuttavia il problema di quale sia in realtà, tale «colpa» dei padri.

È questo che sostanzialmente, alla fine, qui importa. E tanto più importa in quanto, avendo provocato una cosi atroce condizione nei figli, e una conseguente così atroce punizione, si deve trattare di una colpa gravissima. Forse la colpa più grave commessa dai padri in tutta la storia umana. E questi padri siamo noi. Cosa che ci sembra incredibile.

Come ho già accennato, intanto, dobbiamo liberarci dall'idea che tale colpa si identifichi col fascismo vecchio e nuovo, cioè coll'effettivo potere capitalistico. I figli che vengono oggi cosi crudelmente puniti dal loro modo di essere (e in futuro, certo, da qualcosa di più oggettivo e di più terribile), sono anche figli di antifascisti e di comunisti.

Dunque fascisti e antifascisti, padroni e rivoluzionari, hanno una colpa in comune. Tutti quanti noi, infatti, fino oggi, con inconscio razzismo, quando abbiamo parlato specificamente di padri e di figli, abbiamo sempre inteso parlare di padri e di figli borghesi.

La storia era la loro storia.

Il popolo, secondo noi, aveva una sua storia a parte, arcaica, in cui i figli, semplicemente, come insegna l'antropologia delle vecchie culture, reincarnavano e ripetevano i padri.

Oggi tutto è cambiato: quando parliamo di padri e di figli, se per padri continuiamo sempre a intendere i padri borghesi, per figli intendiamo sia i figli borghesi che i figli proletari. Il quadro apocalittico, che io ho abbozzato qui sopra, dei figli, comprende borghesia e popolo.

Le due storie si sono dunque unite: ed è la prima volta che ciò succede nella storia dell'uomo.

Tale unificazione è avvenuta sotto il segno e per volontà della civiltà dei consumi: dello «sviluppo». Non si può dire che gli antifascisti in genere e in particolare i comunisti, si siano veramente opposti a una simile unificazione, il cui carattere è totalitario – per la prima volta veramente totalitario – anche se la sua repressività non è arcaicamente poliziesca (e se mai ricorre a una falsa permissività).

La colpa dei padri dunque non è solo la violenza del potere, il fascismo. Ma essa è anche: primo, la rimozione dalla coscienza, da parte di non antifascisti, del vecchio fascismo, l’esserci comodamente liberarti della nostra profonda intimità (Pannella) con esso (l’aver considerato i fascisti «i nostri fratelli cretini», come dice una frase di Sforza ricordata da Fortini); secondo, e soprattutto, l'accettazione — tanto più colpevole quanto più inconsapevole — della violenza degradante e dei veri, immensi genocidi del nuovo fascismo.

Perché tale complicità col vecchio fascismo e perché tale accettazione del nuovo fascismo?

Perché c'è — ed eccoci al punto — un'idea conduttrice sinceramente o insinceramente comune a tutti: l'idea cioè che il male peggiore del mondo sia la povertà e che quindi la cultura delle classi povere deve essere sostituita con la cultura della classe dominante.

In altre parole la nostra colpa di padri consisterebbe in questo: nel credere che la storia non sia e non possa essere che la storia borghese.

[Pier Paolo Pasolini, Lettere luterane. Roma 1991, 5-12.]

[http://www.guardabassi.it/download_05_11_07.asp]

venerdì 4 marzo 2016

Ars prosaica

Escrever é um artifício no tempo.
Dichtung é complicação das asas,
explicação das asas é grande narrativa.
Blog é uma batida da asa, ou fica
meu carburador escondido
comprimindo
o ar que sai das asas que nem vejo?
Os diários do Leonilson: uma confissão
guarda muito
porque guarda
noites e dias de uma vida?

Eu gosto do tempo das bicicletas.
Apenas o tempo de ver dois olhos
de ameixa do menino que sorri
na parada de ônibus.
Queria fazer um filme sobre a invasão
das Américas:
um filme sobre uma felicidade nas aldeias
que viesse com a passagem dos anos
numa legenda: 1480, 1490, 1500, 1510.
Nenhum outro drama senão
a passagem dos anos.

O passado são as asas, a ameixa,
o gravador, a passagem dos anos.
O presente complica tudo e escreve
para um leitor que é uma escultura
na única pedra-sabão que temos.
Svetlana Alexièvich diz que escreve
para que o leitor não seja abatido,
não deixe o livro na estante
sem ler.
Ela não é uma médica. Ela inventa
a dor, nervo por nervo. Escreve.






mercoledì 2 marzo 2016

Monster Poem - Dennis Saddleman


(Came to this poem while watching this talk by Suzzanne Simard

I hate you residential school, I hate you,
You're a monster,
A huge hungry monster,
Built with steel bones. Built with cement flesh,
You're a monster,
Built to devour innocent native children,
You’re a cold-hearted monster,
Cold as cement floors,
You have no love, no gentle atmosphere,
Your ugly face, your monster eyes glare from grimy windows,
Monster eyes through evil, monster eyes watch and terrify children, who cower with shame.

I hate you residential school, I hate you.
You’re a slimy monster, go away you’re following me wherever I go,
You’re in my dreams, in my memories, go away, monster, go away,


I hate you, residential school, I hate you.
You’re a monster with huge watery mouth, mouth of double doors,
Your wide mouth took me, your yellow-stained teeth chewed the Indian out of me,
Your teeth crunched my language, grinded my rituals and my traditions,
Your taste buds became bitter when you tasted my red skin,
You swallowed me with disgust, your face wrinkled when you tasted my
strong pride,


I hate you residential school, I hate you.
You’re a monster. Your throat muscles forced me down to your stomach,
Your throat muscles squeezed my happiness, squeezed my native ways,
And you throat became clawed with my sacred spirit,
You coughed and you choked and could not stand my spiritual songs and dances,


I hate you, residential school, I hate you.
You’re a monster, your stomach upset every time I wet my bed,
Your stomach rumbled with anger ever time I fell asleep,
Your stomach growled at me very time I broke the school rules,
You didn’t care how you ate up my native culture,
Your veins clotted with cruelty and torture,
Your blood poisoned with loneliness and despair, your heart was cold,
You put fear into me,


I hate you residential school, I hate you.
You sqeezed my confidence, squeezed my self-respect,
Your anals squeezed me and then you dumped without parental support,
Without life skills, without any moral character, without individual talents, without a hope of success,


I hate you, residential school, I hate you.
You’re a monster.
You dumped me in the toilet and you flushed out my good nature,
My personality, I hate you, residential school, I hate you.
You’re a monster.
I hate, hate, hate you.

SOURCE: http://canadianchildabusewatch.com/monster-poem.html

martedì 1 marzo 2016

O dono do cemitério

Quando virou dia no céu,
uma onça apareceu no quintal,
ficou atrás da mangueira caída
e em silêncio olhou para longe,
para a tina de água cheia de barro,
para os gravetos secos
e para a pequena casa,
onde eu estava na janela.
A tina já tinha sido uma fonte
e as crianças colocavam os pés
e batiam gotas para a terra nos dias de calor
que passaram.

A onça rondava os gravetos da mangueira caída
como uma predadora, ou como uma cobra
que se instala no passado de um bote.
Ela estava diante da minha janela,
repartindo a mesma manhã sem abelhas.

Era uma falta de barulho que ela entendia,
voltava do córrego onde também as vacas eram levadas
no fim da tarde, e se abstinham de beber água,
olhavam em volta, como se não vissem o que precisavam
ver e se retiravam. A água recusada.
A onça também não via o que precisava ver,
e sabia que não via. Escutava o silêncio
das abelhas, como eu, na mesma terra
fechada a chave.

Contaminada.

Como eu poderia lhe contar que já não era eu
que poderia lhe caçar, que também no balde de água
ao lado da tina, e na torneira do tanque,
e na poça de água que escorre do cano,
também não havia água,
porque não há água na água?
Como eu poderia lhe contar que já era a água,
a água que era minha e dela, a água repartida entre nós
mesmo com a nossa indiferença,
era a água que eu havia caçado?
E que era a água mesma do córrego
em que ela bebeu todos os dias
que agora a caçava e que caçava
também a mim?

Eu olhei a onça como se o silêncio
contasse que a constituição mudou,
eu tinha rompido o mais consensual
dos contratos sociais com a mangueira,
com as abelhas, com as vacas e com ela.
E que agora vivemos sobre um outro direito,
eu não sou mais o dono do balde da água,
ou da tina cheia de barro, eu sou o dono
do cemitério.

No silêncio, ela sabia.
Ela só não sabia que os refugiados
da nova constituição humana na terra
não tem refúgio.

lunedì 15 febbraio 2016

o ceú se abaixa para a montanha

(Para TB)

O vento, bem experiente e cheio de cheiro,
atraca na pele do meu braço nu.
Impele.

Noto o que há nos graus a menos da pele.

Quando tudo é um prosseguimento, um desvio ressoa.
Resolvo buscar inspiração e tiro o resto da roupa.

Tuda Bilal
me pergunta se acreditar e duvidar é a mesma coisa.
O amigo do anfitrião se senta ao meu lado na escada,
no colo, uma enorme melancia vermelha
e uma pequena colher na mão,
de onde vens, no teu país, as frutas são doces?
- Algumas frutas são doces. As frutas doces.
Aqui, ele me diz, todas as frutas são doces.
Por isso eu não me queixo.
Nem destes ventos, nem de ter que tirar a roupa,
para buscar inspiração.
Queria morar em um lugar sem estas cercas,
sem estes preços.
Mas aqui todas as frutas são doces.



mercoledì 10 febbraio 2016

Guia da felicidade para Devrim

É a terça de carnaval
e eu desembarco em São Paulo na hora do último sol
- o seu sol, o mesmo, aquele que está toda hora outro
e que agora se espalha pelas pontas das coisas
e pela ponta da janela do avião. A hora boa, eu penso,
para chegar a uma cidade – uma hora acolhedora porque desocupada,
ainda que seja uma hora ocupada para quem está na cidade,
é uma outra hora para quem chega. A boa hora, eu penso,
dos pedaços de sol largados na cidade,
é parte de um guia que eu faria
para a tua felicidade. O guia serviria
para tratar o mundo como boa companhia.
Um guia talvez tivesse que ter regras, c
omo as instruções para o uso, como um manual
ou pelo menos algumas pistas. Ou alguns atalhos.
Como por exemplo: chegue.
Ou então: aproveite para flagrar a cidade
quando ela estiver com o último sol largado nela,
em pedaços. Flagrar, porque com uma cidade,
ou com um urso ou com uma onda,
nós encontramos só em flagrante, ou de soslaio ou de lampejo –
se demoramos muito tempo observando, ela se esconde
por trás da nossa própria cara.
Outro exemplo: há coisas que só se iluminam
com pouca luz – claro que elas podem
ficar obscuras, como quase tudo o que vemos
quando ainda não sabemos se nos importa.
Mas há uma lucidez em cada tipo de luz.
Olho para trás no avião lotado, e uma garota que me parece
muito mais jovem que eu e muito mais velha que você
olha para a multidão confinada esperando a hora de desembarcar
com um olhar distante. Ela veste uma camiseta preta em que se lê:
“escape the ordinary”.
Deve ser uma outra regra do manual. Eu gosto de escape – fuja.
Todos os direitos humanos
e não-humanos – todo direito, se é que há algum –
poderiam se resumir neste: o direito de fugir.
Porque casa, comida ou nome próprio
são prisões se você não pode fugir.
Fugir e chegar – já não é mais uma coleção de regras, é uma história,
um esquema de história.
Dizem que as histórias começam com o que vai e com o que fica.
The ordinary: você pode começar alguma coisa,
você pode não prosseguir coisa alguma.
Poder começar, poder fugir – senão, de onde vem a dignidade,
a possibilidade mesma de uma outra órbita, uma revolução?
Direitos. Quando você está imbricada com alguma coisa,
todos eles evaporam.
Você não fica declarando direitos,
você nem fica declarando amores,
você gruda.
Este grudinho é um tudo que não é nada – quero dizer:
não é nada e é tudo.
Ele é diferente do que te compele, porque ele só te conduz.
O que parece tudo e nada é mais turbulento quando
as vezes parece tudo
e as vezes nada.
Não sei o que te dizer sobre isto. Então a regra é: cozinhe e coma.
E ofereça.
As farinhas, os alhos, os tubérculos, as ervas
são cúmplices das tuas forças
mais inesperadas – você não sabe o que elas vão te fazer fazer.
E são manuais. Do tipo que te segura pela mão.
Quanto a mim, já em San Alfonso de Maipo, sentado diante da montanha,
ouvi dizer ontem que escrevi
em algum lugar na internet que você era feliz.
Você vai me dizer se é por isso que,
já que há este espaço absoluto que não tem passado e nem futuro,
olho a terra da cordilheira
na hora boa vinte e quatro horas depois e por isso mesmo também
olhei ontem ainda mais para o sol espalhado na cidade.

PS: Em que língua se escreve para daqui a muitos anos?
E onde encontrar um dicionário para ler o meu diário?

martedì 9 febbraio 2016

Schifanoia

O ovo cozido não tinha esquinas.
(mas tinha uma escrita, cheia de palavras tentadas,
como a carta que Francesco del Cossa escreveu pedindo mais dinheiro
ao conde como
Ali Smith
imaginou e que não enviou porque as autoridades,
elas sabem de tudo)
Mas Francesco largou as roupas da mãe.
E foi ter com as encruzilhadas: como se escreve uma carta pedindo mais dinheiro?

O ovo cozido, o ovo cozido, sem esquinas.
- Tem a curva onde todos os pontos são esquinas.

Presságio

Et avec le livre de Tarussa (Paul Celan)

(…)
De la pierre de taille
du pont, d’où
il est allé
s’écraser dans la vie, initié
au vol par les blessures,— du
Pont Mirabeau.
Où ne coule pas la rivière Oka. Et quels
amours ! (Ça aussi , les amis, du cyrillique,
j’en ai passé à cheval de l’autre côté de la Seine,
de l’autre côté du Rhin.)
(…)

sabato 16 gennaio 2016

A educação dos frissons não era bem feita

passei a madrugada lambendo pílulas
como se eu fosse boreal
e quisesse hilan de manhã artificial -
mas não serviu, preferi ser mãe,
esquecida, vaga, gratuita ou ser um pedaço de colher
aquele pedaço que curva e depois abaula
segura o pedaço de cenoura ou a gota de água
e espera e retém.
disse a ela que eu inundava e ela
me disse que a educação dos frissons não era bem feita
era preciso me esticar e redobrar de novo
raspar minha auréola com ferrugem,
com insônia, com a ponta do grampeador ou
abrir a boca até cansar as duas mandíbulas
e sair andando pela calçada da Dom Bosco
até fazer amor com os restos do sanduíche da madrugada
na porta de serviço do pronto-socorro e
debaixo da mangueira enorme
agora mesmo que acabou a estação.