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martedì 12 aprile 2016

A polarização

Sempre tive vergonha de estar em um país que houve 1964. É certo que há vergonhas por toda parte, que a história dos vencedores é uma história de usurpações mais ou menos disfarçadas. 1964 foi das menos disfarçadas. O disfarce as vezes, é certo, é parte da crueldade. Nesse caso, ele foi rude e modesto como um cobertor curto, mas bastante cruel. 1964 foi uma usurpação, em nome de poucos, e o disfarce não era muito mais do que um apelo à ordem. É certo que o fascismo venceu e não sobrou muito mais a ser feito - mas sobrou alguma coisa. O suficiente para passarmos décadas nos convencendo de que 1964 havia passado. A cada virada de março para abril, um arrepio. E agora, tantos anos depois, isso. O arrepio todo dia. 1964 não acabou.

E tem a forma de uma polarização. Uma polarização que é magnética, convoca forças mesmo as que já nem pareciam feitas de metal. Estou polarizado. O que torna toda polarização difícil de ser exorcizada é que quem está em um pólo não consegue conceber outro. Há um slogan, inspirado na fala do Lula, que diz: este não será o país do ódio. E, eu penso, é melhor que este não seja o país odiável. Não concebo o outro pólo, não posso conceber. Odiável é um país que interrompa um governo decepcionante para atender aos apelos das corporações do petróleo. E sim, atender às corporações, e deixar gente miserável tem um nome: 1964. Eu suponho que 1964 também era um tempo de polarizações. Entre aqueles que queriam ordem - e era a igreja, os bons costumes, os zeladores das propriedades - e aqueles que preferiam que não houvesse 1964. Como hoje há aqueles que querem ordem - e chamam quem desvia de uma restrita taxonomia sexual de produtos de uma ideologia, os bons costumes, os zeladores das propriedades que pensam que o dinheiro dos bancos importa mais do que a distribuição de verba para a subsistência. Eu simplesmente não posso conceber o odiável defendido - ainda que tenha que conceber o odiável acontecido, acontecido quotidianamente em um país que parece um enorme museu que celebra o fascismo dos usurpadores de 1964.

Não consigo pensar fora da polarização. Mas dentro dela, há universos inteiros - negligenciados por uma estratégia de unificação rápida, ou por uma estratégia de unificação dialogada. Já a polarização não comporta universos. A polarização não é só de pontos de vista políticos - como isso pudesse ser separado das maneiras de viver que eu aprecio, das que eu adoto e das que eu abomino. A polarização não é só o alambrado na explanada que a torna arquibancada de torcidas onde o palco é mais uma vez os tais três poderes instituídos e tornados em estátuas - afinal de contas, os três poderes são um só, o deles. A polarização não é só moral, mas é moral. É certo, a luta de classes é moral.

Trata-se de uma indignação. Como podem os que estão do outro lado do cercado, ou dentro da câmara dos deputados votando pela destituição de um governo e da subsequente entrega do poder aos abutres que são mais abutres que todos os abutres (os abutres comezinhos, já que nem sequer são abutres) serem pensados senão como aqueles que amam incondicionalmente seu rico dinheirinho e querem ordem para protegê-lo e progresso para construir rodovias de alta precisão para sua corrida pelas batatas? Ou seja, eles são impensáveis. E estão ali, do outro lado da cerca, não apenas como inimigos, mas como perigosas ameaças. Talvez seja uma cegueira - talvez os outros mereçam alguma espécie de diálogo que eu não sei fazer. Talvez estejamos todos fora do caminho. Obcecados, ou mesmo manipulados. A indignação mereceria, neste caso, ser dissolvida, decomposta, desarmada. E no entanto eu não poderia colocar os dois pólos no mesmo pólo - eles são como os círculos polares da Terra, vistos de longe podem ser semelhantes, mas quem consegue vê-los de longe?

Tento dar um passo atrás. Claro, a polarização ela mesma interessa a alguns - o clima re-1964 interessa também. O próprio governo se beneficia disso para colocar uma multidão (ainda que ou demasiadamente amorfa ou demasiadamente organizada) a seu lado na rua. Ele se torna de esquerda pelas palavras mágicas "não vai ter golpe". Portanto, para que polarizar? Não deveríamos antes nos agrupar para fazer uma okupa no plenário da câmara e lutar pela democracia inventando uma e não gritando por uma formalidade de baixíssima intensidade? (Ou quem acha que uma assembléia presidida por quem tem negócios escusos na África que se não for negócio de lavagem de dinheiro é negócio de racismo econômico pode ser uma instância defensora de algum status quo que mereça ser defendido?) Não deveríamos estar todos do lado de fora talvez ateando fogo no próprio corpo em frente a um palácio presidencial para mostrar a inflamabilidade da carne de toda essa disputa que vai terminar de qualquer jeito beneficiando algum setor do capitalismo polimorfo? Não seria melhor inaugurar outra assembléia, outra praça de outros poderes que tivesse um pouco mais do que só um, dois ou três deles? Todas estas alternativas me atraem muito. Chega de ser refém da sinuca de bico que os governos de esquerda colocam seus simpatizantes: ou o mais ou menos (já que o ótimo é inimigo do bom) ou a catástrofe da direita (que geralmente é bem mais catastrófica do que os próprios governos mais à esquerda querem fazer acreditar). Seria bom romper com isso e gritar que a polarização já é um golpe.

Porém, não posso. Sinto os cheiro dos abutres comezinhos que não são abutres. Parece que é cheiro de petróleo, e é cheiro plastificado na forma de cartões de crédito - dinheiro que perde o cheiro. Tanto melhor se pudermos inventar alguma democracia para defender, mas enquanto isso estou na polarização, no medo, já que 1964 não acabou, já começou e ensinou que a democracia de baixa intensidade pode ser seguida de uma ditadura do de alta intensidade - ainda que as instituições (quem pode ainda olhar só para elas?) permaneçam as mesmas. Não consigo arredar o pé deste lado da polarização. Acho que só saio daqui quando esta praça não tiver mais nenhum poder - quando a geografia for outra. Enquanto isso, finco o pé no pólo mais justo.

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