1. Como viver? Como deixar viver? Como deixar de viver?
Samuel Beckett escreveu uns versos sobre todo o alarido com a vida, a morte e outras dores de meia pataca.
O alarido é político.
As dores de meia pataca giram em torno da sobrevivência. Nada importa mais à qualquer política do que a sobrevivência – quem sobrevive, quando sobrevive, por quanto tempo sobrevive. Mesmo que a sobrevivência valha meia pataca.
2. O conflito da política é como viver, ou como sobreviver.
Como viver é também como morrer.
E os conflitos são também sobre como morrer.
Como, quem e o que fica fora da vida.
3. Há a morte médica, a morte que é consequência das contingências dos órgãos dos corpos, um desaparecimento (a palavra de Heidegger sobre quem foi para a câmara de gás e não morreu, apenas foi matado). E há a morte do suicida que explode em Dizengoff. A segunda morte é a morte de alguém, algo como o fim de um ser-para-a-morte, algo como um ente que se expressa, que se faz se desfazendo.
4. Tenho o medo de que se eu explodir alguma instituição ignóbil - mesmo que eu morra - as mortes causadas não vão mais ser do segundo tipo, vão ser médicas. Ou seja, as pessoas não vão morrer, vão simplesmente desaparecer (a palavra de Heidegger sobre quem foi para a câmara de gás e não morreu, apenas foi matado). A morte física de uma personagem política é médica, mesmo se ela for assassinada. Vão dizer: "vítima de um ensandecimento, vítima de uma violência nociva, vítima de uma vontade torta" como quem diz "vítima de um aneurisma, vítima de um câncer, vítima de uma embolia". Ninguém mais pode ser agente de uma morte, nem o assassino de seu corpo assassinado, nem o suicida de seu corpo suicidado, nem o doente terminal de seu corpo terminal. O homem que ateou fogo ao próprio corpo na frente do palácio do Planalto um mês antes do golpe foi levado para o hospital. Talvez curado. Medicalizado.
Leminski estava certo: antigamente é que se morria, agora sim a vida é crônica.
Ou seja, não vão deixar que a morte seja política. Há a medicina como um aparador de arestas entre o protocolo institucional e a pura violência.
5. Há os fatos do mundo – há os fatos médicos, por exemplo. E há uma crença de que são os fatos que vão nos redimir.
Um Fatismo.
Pesquisas fatistas, tratados fatistas, tudo o que é natural, humano ou não, é apresentados como casos de fatismo. Ao final e em última instância, tudo são fatos.
Mas é claro que a grama cresce entre os fatos.
6. É uma vontade de heroísmo? De heroísmo proscrito porque a morte não pode ser mais nossa? É uma vontade de mudar as cláusulas do contrato, ao invés de só poder sair dele. Diante do rompimento do contrato social (pelas invasões, pelas propinas, pelas chacinas, pelos genocídios, pelos golpes), só há uma coisa a fazer, voltar ao estado de natureza?
Querer outra morte é querer que se possa sair do contrato social por algum meio que não seja o do desaparecimento (a palavra de Heidegger sobre quem foi para a câmara de gás e não morreu, apenas foi matado).
Mudar as cláusulas de um contrato é um avesso do fatismo. Renegociar. Mudar a fita métrica, a balança, o medidor.
7. Ou qual é o nome do projeto político anunciado pelo diagnóstico de Heidegger que encontra no Lager verenden mas não sterben?
O corpo é aquilo que é matável.
E assim se encontram duas mortes: a morte pessoal, política, extensão ou término da vida de um corpo com suas experiências e a morte médica, desprovida de qualquer conteúdo para além da impessoalidade de uma condição, de um agenciamento patológico. Órgãos prontos para o corpo ou corpos a serviço dos seus órgãos.
Como caso médico, a morte fica dissociada de toda experiência corporal da vida - e empurrada em direção a uma experiência orgânica, organísmica, organizacional da vida. Fica instituída a morte inócua. É essa morte, que a torna irrelevante à vida.
E torna o corpo irrelevante à experiência. Transforma o corpo que é recurso para toda invenção em funcionário.
E entramos em um regime de sobrevivência em que só importa quem está vivo.
Todo o resto fica cirúrgicamente desaparecido.
8. E é talvez por isso que o golpe de estado já não tenha mais a forma militar onde são engajadas a ameaça da morte (da morte inventada, épica, feita de delírio, feita de desejo mais forte que a vontade de viver). O golpe passa a querer usar a forma da lei estabelecida; a forma da sobrevivência.
Resta-lhe usar a lei para ser fora da lei. E fazer parecer que tudo está como antes – a divisa dos que escolheram sobreviver.
Samuel Beckett escreveu uns versos sobre todo o alarido com a vida, a morte e outras dores de meia pataca.
O alarido é político.
As dores de meia pataca giram em torno da sobrevivência. Nada importa mais à qualquer política do que a sobrevivência – quem sobrevive, quando sobrevive, por quanto tempo sobrevive. Mesmo que a sobrevivência valha meia pataca.
2. O conflito da política é como viver, ou como sobreviver.
Como viver é também como morrer.
E os conflitos são também sobre como morrer.
Como, quem e o que fica fora da vida.
3. Há a morte médica, a morte que é consequência das contingências dos órgãos dos corpos, um desaparecimento (a palavra de Heidegger sobre quem foi para a câmara de gás e não morreu, apenas foi matado). E há a morte do suicida que explode em Dizengoff. A segunda morte é a morte de alguém, algo como o fim de um ser-para-a-morte, algo como um ente que se expressa, que se faz se desfazendo.
4. Tenho o medo de que se eu explodir alguma instituição ignóbil - mesmo que eu morra - as mortes causadas não vão mais ser do segundo tipo, vão ser médicas. Ou seja, as pessoas não vão morrer, vão simplesmente desaparecer (a palavra de Heidegger sobre quem foi para a câmara de gás e não morreu, apenas foi matado). A morte física de uma personagem política é médica, mesmo se ela for assassinada. Vão dizer: "vítima de um ensandecimento, vítima de uma violência nociva, vítima de uma vontade torta" como quem diz "vítima de um aneurisma, vítima de um câncer, vítima de uma embolia". Ninguém mais pode ser agente de uma morte, nem o assassino de seu corpo assassinado, nem o suicida de seu corpo suicidado, nem o doente terminal de seu corpo terminal. O homem que ateou fogo ao próprio corpo na frente do palácio do Planalto um mês antes do golpe foi levado para o hospital. Talvez curado. Medicalizado.
Leminski estava certo: antigamente é que se morria, agora sim a vida é crônica.
Ou seja, não vão deixar que a morte seja política. Há a medicina como um aparador de arestas entre o protocolo institucional e a pura violência.
5. Há os fatos do mundo – há os fatos médicos, por exemplo. E há uma crença de que são os fatos que vão nos redimir.
Um Fatismo.
Pesquisas fatistas, tratados fatistas, tudo o que é natural, humano ou não, é apresentados como casos de fatismo. Ao final e em última instância, tudo são fatos.
Mas é claro que a grama cresce entre os fatos.
6. É uma vontade de heroísmo? De heroísmo proscrito porque a morte não pode ser mais nossa? É uma vontade de mudar as cláusulas do contrato, ao invés de só poder sair dele. Diante do rompimento do contrato social (pelas invasões, pelas propinas, pelas chacinas, pelos genocídios, pelos golpes), só há uma coisa a fazer, voltar ao estado de natureza?
Querer outra morte é querer que se possa sair do contrato social por algum meio que não seja o do desaparecimento (a palavra de Heidegger sobre quem foi para a câmara de gás e não morreu, apenas foi matado).
Mudar as cláusulas de um contrato é um avesso do fatismo. Renegociar. Mudar a fita métrica, a balança, o medidor.
7. Ou qual é o nome do projeto político anunciado pelo diagnóstico de Heidegger que encontra no Lager verenden mas não sterben?
O corpo é aquilo que é matável.
E assim se encontram duas mortes: a morte pessoal, política, extensão ou término da vida de um corpo com suas experiências e a morte médica, desprovida de qualquer conteúdo para além da impessoalidade de uma condição, de um agenciamento patológico. Órgãos prontos para o corpo ou corpos a serviço dos seus órgãos.
Como caso médico, a morte fica dissociada de toda experiência corporal da vida - e empurrada em direção a uma experiência orgânica, organísmica, organizacional da vida. Fica instituída a morte inócua. É essa morte, que a torna irrelevante à vida.
E torna o corpo irrelevante à experiência. Transforma o corpo que é recurso para toda invenção em funcionário.
E entramos em um regime de sobrevivência em que só importa quem está vivo.
Todo o resto fica cirúrgicamente desaparecido.
8. E é talvez por isso que o golpe de estado já não tenha mais a forma militar onde são engajadas a ameaça da morte (da morte inventada, épica, feita de delírio, feita de desejo mais forte que a vontade de viver). O golpe passa a querer usar a forma da lei estabelecida; a forma da sobrevivência.
Resta-lhe usar a lei para ser fora da lei. E fazer parecer que tudo está como antes – a divisa dos que escolheram sobreviver.
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