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venerdì 17 novembre 2017

O lugar de fala, o lugar de escuta e o sexo das outras



O texto da audio-performance de Campina Grande, no Desfazendo Gênero:


Alice (me disse assim:) Antes que ela me contasse sobre o estupro, eu achava que a nossa seria uma longa e duradoura amizade. O tipo de amizade que uma pessoa sonha em ter com outra que conhece na adversidade; debaixo de calor e mosquitos e imaturidades e ameaças de morte. Viajaríamos e nos escreveríamos dos três cantos do mundo. Mas agora havia um esfriamento na afeição que sentíamos uma pela outra. Luna estava começando a ficar ligeiramente interessada em drogas, porque todo mundo que nós conhecíamos estava. Eu sentia inveja da descontração de sua vida. Do suporte financeiro.

Maria (me disse assim:) Vou comentar hoje algo que me aconteceu: Fui apresentar o esboço do meu projeto de monografia, um texto ainda em construção, envolvendo A Cidade das Damas e Maria Bonita. A plateia só de alunos. A única professora é a que me orienta. Foi bem recebido pelos alunos. Eles foram bem generosos. Mas a mediadora fez um comentário tão preconceituoso, que até agora estou me perguntando se negro só estuda negro; mulher só estuda mulher, e, no meu caso, nordestino só estuda nordestino. Ela disse: "adorei te ouvir. Seu trabalho tá muito bom, mas nem precisa perguntar porque você escolheu esse tema; porque você tem todos os traços, a fala e todo o jeito de nordestina! Mas eu quero saber pq vc escolheu esse tema?"  A única coisa que faltou ela dizer foi: só falta vc ser bonita. Minha orientadora ficou possessa. O ambiente aqui é hostil se comparado às apresentações que fiz em Ilheus, João pessoa… Se bem, que não consegui terminar Pensamento Negro Contemporâneo porque quando eu ia falar, as cabeças viravam e só faltavam dizer: o que essa branquela sabe sobre negros?!!

James: Era um plano mirabolante mas muito vago. Eu não queria transição. Aliás a maior parte das mulheres reais raramente usam vestido. Eu não me achava trans. Eu só queria usar vestidos. Aí a Nicole apareceu. Ela se sentava seu rabo no meu colo e eu me ficava com o peru duro e dizia, talvez essa coisa de autoginefilia é só uma coisa de criança e agora eu poderia ser um homem. O que parecia de muito mau gosto. E depois, como eu ia conseguir vestidos? Não poderia encomendar vestidos, como eu saberia os tamanhos? Eu tinha que ter minhas medidas. Mesmo se eu apostasse que meu tamanho era grande, eu poderia ter a maior decepção do mundo ao testar essa teoria.

Patrícia: Eu não posso falar no meu nome. Minha palavra está quase sempre no armário. Minha palavra. Meu rosto está no armário. Meu corpo é abjeto demais para poder ter uma opinião. O que vocês querem que eu faça? Que eu me retire como uma aberração e deixe o palco para os brancos, os cis, os hetero, os disciplinados? Ou querem que eu tenha razão? Pois eu quero ter razão nisso: tenho palavra, desconfiem vocês ou não, e não vou deixar ela no armário. Não vou deixar que meu corpo se cale. Minha voz ela mesma afeta, distorce, retorce, desarma e atormenta a inteligibilidade dominante. Nem é o que eu falo, é que eu fale. Eu tenho que falar. Mesmo fora do lugar.

James: Mas porque ela insiste que eu sou como ela? Deve ser alguma coisa que meu cérebro errado não consegue pensar. Ela diz que sabe do que está falando, mas por que ela sabe que está falando por mim? Os corpos estranhos não são lugares, são faltas de lugar e faltas de lugar não são lugares. Eu escuto o que ela diz, ela diz que quer me ajudar a ser o que eu sou. Se ela tiver toda essa heroína que ela diz que tem…

Alice: Essa é a “história”. Ela tem um final “não resolvido”. Talvez porque Freddy Pie e Luna ainda estejam vivos, como eu. Contudo, uma noite, enquanto conversava com um amigo, eu me escutei, dizendo que eu havia, na verdade, escrito dois finais para a mesma história Eu digo que se nós vivéssemos de fato em uma sociedade comprometida com o estabelecimento da justiça para todos (“justiça”, neste caso, compreendendo o direito igual à moradia, educação, acesso ao trabalho, adequado tratamento de dentes, etc.), colocando, portanto, Luna e Freddie Pye na correta relação de companheiros, então os dois se esforçariam juntos para compreender o que o estupro dela por ele significou.

Gropius: Agir com desconfiança é cuidar da própria pele––nos enredamos em novelos de desconfiança para tentar salvar nossa própria pele. A desconfiança estreita nosso campo de ação; constrói uma mentalidade defensiva; com esta mentalidade procuramos alguma coisa que seja nossa e cerramos fileiras para defendê-la. Tipo um grupo, uma raça, uma classe, uma identidade… ninguém precisa ser fiel a grupo algum para estar em uma parceria política confiável. Confiar em alguém é confiar em suas escolhas políticas; talvez não possamos evitar o tortuoso e multifacetado trabalho de manejo das nossas relações de confiança adotando um atalho de identidade. O atalho de identidade é a tentativa de compensar a incerteza acerca da ação das outras pessoas por meio de regras compulsórias associadas aos compromissos políticos da cor da pele, da genitália, dos hormônios sexuais, de sua posição na produção ou qualquer outra catraca. Quando uma militante do movimento negro decide não participar de um ato, uma nova negociação de confiança pode ser necessária–– o atalho seria chamá-la de traidora de sua própria causa. Os elos entre as pessoas podem parecer mais simples se elas estão conectadas por um compromisso natural comum; não parece que precisamos mergulhar nos espinhosos detalhes de como as identidades são construídas nos olhos de quem nos vê.

Alice: Ele me disse que não havia nada demais nos meus dois finais de história. Eu tenho uma visão bíblica da fraqueza humana. Freddie Pye provavelmente estava violentando mulheres brancas por ordens do seu governo. Eu pensei: claro. Mas, Freddie então não tinha nenhuma consciência? Perguntei. Ele respondeu: talvez. E me olhou como se dissesse que eu nunca seria capaz de entender a maldade humana. Mas ele estava equivocado.

Gropius: A confiança não se nutre de checagens e garantias e promessas e testemunhas e obrigações morais ou materiais. Desconfiar é requerer segurança; a segurança pela qual perigamos pagar mais de apólice do que o valor do que queremos segurar. A confiança sobrevive aos requisitos de segurança, e, no entanto, perde um pouco da sua intensidade e sai com a tinta erótica de que é feita arranhada. Subverter não é confiar sempre––em nossa sociedade subverter nem pode ser subverter sempre. Mas subverter parece estar próximo do esforço de criar novos espaços de confiança que, por sua vez, parece que germinam alguns novos espaços de liberdade. Diferentes mapas da confiança podem ser melhor atingidos se espalharmos confiança. Entre diferentes, as relações de confiança dão mais trabalho: não há alianças naturais, não há inimigos comuns que estabelecem a agenda, não há regras insinuadas pelo corpo. Cada relação de confiança surge com suas diferenças: não há atalho. Instituir uma ação pelas diferenças não pode ser, contudo, ignorar que as identidades são o instrumento do mestre; que o nosso regime de supremacias discrimina grupos de identidade em favor de outros e que este é um instrumento que contribui constantemente para deixar a casa em pé. Mas confiar não é deixar as casas prontas; confiar é confiar. Não deixa nada pronto. Oxum é sábia e não precisa de hidroelétricas.

Curucu: O desejo é que subverte. Quem deseja o que não se deseja inventa. Desejo é invenção, mesmo quando tenta ser simulacro e passar despercebido como mais do mesmo, mais do que mandam papai, mamãe e a pornografia oficial. O desejo que subverte ainda mais é o desejo dos outros. O desejo sem os outros fica no horizonte do meu próprio desejo. Nada mais que o mesmo, do mesmo acerca do mesmo. O melhor é o desejo interrompido: o sexo das outras. Quem sabe o desejo das outras é o macho que sabe o que a mulher quer – e a mulher que deseja o que ele quer que ela deseje porque sabe o que ele quer. Esses acoplamentos são o mito fundador da ordem heterocispatriarcal. Mas fora desse mito, não tem acoplamento. O desejo das outras é o que ninguém sabe. Mas quem vai falar por nós, pelas bichas, pelas travecas, pelas trans todas? Uai, eu falo. Lugar de fala. Isso sempre me parece arma de guerra: falar em nosso nome. Mas a guerra é necessária. Alguém tem que falar em nosso nome, gritar, abrir espaço.

Manuela Dad: Nem tudo é guerra. Há também política. Em guerra, não podemos confiar nos homens. Eles não podem ser feministas. Mas em política, há o espaço da blasfêmia. Eu chamo de blasfeminismo. No espaço da blasfêmia, feministas são os homens, e só os homens podem ser feministas, porque só eles podem ir contra si mesmos, contra um sistema que é feito para eles. O filho do milionário de Pocilga que vai dormir com os porcos, ele faz política. Até mais do que os filhos dos operários, que fazem muitas vezes só guerra. Política é conversão, contágio, contaminação. Política se faz com guerra também, mas política não é só guerra. Os homens, só eles, podem abandonar seu lugar de fala machistas. Quando abandonam, quando são interrompidos é que fazem política. Gosto quando as mulheres trans se unem e falam em uníssono, me sinto numa trincheira pelo meu corpo, pelo que eu quero. As pessoas cis não entendem muita coisa – mas quando entendem, entendem interrompidos. Gosto desse momento em que não somos só egos maciços. Se formos sempre egos maciços, para que política? É só guerra, cada um em um quadrado e quem tem mais força prevalece. E, na guerra, as pessoas cis vão sair ganhando. As pessoas cis transfóbicas apenas se defendem, como os homens machistas apenas se defendem. A política começa com os outros. O que me interessa são as pessoas cis que não se defendem a si mesmas, por que aí há um projeto de futuro: quando eu deixar de ser nós e virar os outros. Não há política quando eu mesmo sigo sendo eu mesmo – e faço uma trincheira para isso.

Monique Pru: Não há lugar de fala. Há quem fala, e quem não consegue falar porque está sempre fora do lugar. Se ninguém sair do seu lugar, nunca nada vai deixar de ser como é – gente falando por si mesmo, pelos seu corpo, pela sua história. A fala pode ser interrompida. Mas o lugar de fala é como uma tatuagem, não sai, não importa o que você fala.

Equus: Eu fui arrastado para uma discussão sobre orientação sexual como uma opção. Se fosse uma opção, muitos se sentiriam liberados do que parecem prisões, sociais, genéticas, o que for. Mas o que significaria uma orientação sexual que fosse uma opção? Se preferências sexuais são entendidas como mais ou menos fixas, podemos supor que a opção fosse tomada mais ou menos de uma vez por todas, ou pelo menos não todos os dias, porque se fosse tomada todos os dias não se poderia falar de uma orientação. Então, a opção seria algo que permanece, que não se pode mudar (muito), mesmo que tenha começado com uma opção. Mas como seria este cenário? Ele envolveria mais autonomia: nós seríamos imunes à sedução do resto do mundo, deixaríamos de estar abertos ao cosmos por meio da estrutura mesma do desejo. A falta de autonomia é o que traz a falta dessa imunidade; a falta de imunidade deixa o desejo capaz de interromper. Sem interrupção, estaríamos cada um no seu quadrado, seguindo suas determinações, por mais escolhidas que tenham sido. Se orientação sexual fosse opção, estaríamos seguindo ordens, todo o tempo – ordens de nós mesmos. E nada no mundo interromperia esta disciplina. Seguir ordens, talvez do nosso próprio corpo. Mas se o meu corpo é uma exceção, uma clinamen, um desvio – bem, não há mais ordens para seguir; nem há verdade alguma entre meus hormônios, endorfinas, estrogênios, testosterona, intensidade e músculos. Não há nada de organizado, nem sequer um carrossel de substâncias químicas carregando verdades.

Curucu: Lugar de fala não é invenção, invenção é falar do lugar dos outros. Os outros me interrompem, paralisam minha agenda e então eu tenho que decidir o que fazer, tenho que inventar o que fazer. Eu não posso mais na minha agenda, minha agenda foi ferida. Ferida da agenda dos outros. Aí começa um processo muito diferente, um processo onde eu não sou mais apenas uma voz, sou também ato falho, engasgo, porque tenho uma fragmentação. O que posso fazer pelos outros? Não tem limite. Posso entregar minha vida. Na minha vida é onde há política. Na minha agenda interrompida.

Emmanuel: O lugar de fala é um grilhão, uma cadeia. Parece que minha aderência ao meu corpo é completo, eu apenas falo em nome dele. Falar a verdade é aceitar a servidão, aceitar que estou preso, que não posso falar senão aquilo que meu corpo manda. A verdade está toda dentro de si, basta aceitar o evangelho do seu próprio corpo que a verdade transparece. A verdade é apenas minha sinceridade, a sinceridade do meu lugar. O lugar de fala é uma cadeia, um campo de concentração. Ou pior, é o trem de passageiros que passa pela estação de Auschwitz. É cuidar da própria vida. Eu não me importo com essa verdade. A justiça não a atravessa. A justiça não a interrompe. Só quando a verdade para diante da justiça – o lugar da escuta, da escuta de quem pode ter a certeza, o consenso, a verdade – é que surge a responsabilidade e, com ela, a invenção, o investimento da liberdade.

Tazlo: A fala desde um lugar de fala é um grunhido. Mesmo que seja um grunhido sufocado, quase calado. Não basta que ele seja amplificado, ele tem que ser ouvido. Amplificar alguns lugares de fala é um atalho para não ter que escutá-lo. Mas é um atalho que perde o processo no caminho.

Aline Valério: O lugar de fala é meu ponto de partida, como minha casa, o lugar de onde saímos. Uma casa não é uma prisão. Mas uma casa que se torna um destino – origem é destino – se torna uma prisão. Eu quero que se foda de onde eu parti. Minhas palavras elas mesmas é que tecem, e meus atos, e meus desapegos. Minha casa é só minha casa, não é um grilhão. Não é uma prisão. Eu começo a pensar do meu corpo, mas meu corpo ele mesmo não tem limites, começa na minha pele e se estende até os confins do que não tem fim. E é interpelado por muita coisa. Demandado. Ele sofre irrupções. Lugar de fala não é o grunhido do corpo, é uma perspectiva.

Michela: Ela me diz que eu sou bonita, que eu tenho talento, que eu tenho o lance do palco, a presença… que eu deveria estar lá no palco ao invés de deixar este espaço para os brancos que são todos cis, todos confiáveis. Quem é ela para dizer o que uma mina negra trans tem que fazer? Quem é ela? Branca. Cis. Quem é ela? Ela quer ser minha agente, ela que ser minha promotora? Eu não preciso da opinião dela. Acho que ela deveria se calar. Ficar em silêncio, com seus privilégios.



Jota: Muito se fala sobre como o lugar de fala tem sido apropriado de modo a conceder ou não autoridade para falar com base nas posições e marcas políticas que um determinado corpo ocupa num mundo organizado por formas desiguais de distribuição das violências e dos acessos. O que as críticas que vão por essa via aparentemente não reconhecem é o fato de que há uma política (e uma polícia) da autorização discursiva que antecede a quebra promovida pelos ativismos do lugar de fala. Quero dizer: não são os ativismos do lugar de fala que instituem o regime de autorização, pelo contrário. Os regimes de autorização discursiva estão instituídos contra esses ativismos, de modo que o gesto político de convidar um homem cis eurobranco a calar a boca e pensar melhor antes de falar introduz, na realidade, uma ruptura no regime de autorizações vigente. Se o conceito de lugar de fala se converte numa ferramenta de interrupção de vozes hegemônicas, é porque ele está sendo operado em favor da possibilidade de emergências de vozes historicamente interrompidas. Assim, quando os ativismos do lugar de fala desautorizam, eles estão, em última instância, desautorizando a matriz de autoridade que construiu o mundo como evento epistemicida; e estão também desautorizando a ficção segundo a qual partimos todas de uma posição comum de acesso à fala e à escuta.

Tazlo: Mas é precisamente isso que se quer: o lugar de escuta. Ou ainda, o lugar de resposta. Como chegamos no lugar da resposta? É preciso que uma palavra seja uma palavra, que não seja um silêncio ruidoso. É a palavra que fala, é ela que desmonta a ordem epistemológica hétero, cis, branca, masculina. Mas ela fala para uma escuta. Para uma resposta. E a resposta está cheia de contingência, ela é o infinito de uma dívida. O infinito de uma dívida. E uma resposta.

Jota: A questão ainda não é sobre "quem", mas sobre "como". No limite, o que vem sendo desautorizado pelos ativismos do lugar de fala é um certo modo privilegiado de enunciar verdade, uma forma particularizada pelos privilégios epistêmicos da branquitude e da cisgeneridade de se comunicar e de estabelecer regimes de inteligibilidade, falabilidade e escuta política. Não é que brancos não possam falar de racismo, é que eles não poderão falar como brancos: isto é, como sujeitos construídos conforme uma matriz de produção de subjetividade que sanciona a ignorância, sacraliza o direito à fala, secundariza o trabalho da escuta e naturaliza a própria autoridade. Isso significa também o fato paradoxal de que eles não poderão falar como se não fosse brancos, isto é: apagando as marcas da própria racialidade e agindo como se os privilégios da branquitude não fossem coextensivos aos sistemas de opressão das vidas e vozes não brancas.

Lucci: Falar de lugar de fala traz a necessidade de dar oportunidade para que possam ser escutados os que até então foram humilhados, tratados com negligência pelos sujeitos políticos, ignorados. Nunca neguei a importância do debate. O problema é que, quando se torna não só importante, mas fundamental a questão da identidade de quem fala, incorre-se numa verdadeira despolitização do debate. A autoridade do locutor se exerce pela forma, não pelo conteúdo. Se exerce pela aparência, pela identidade, que muitas vezes não acompanha o domínio do tema. É preciso honestidade e, principalmente, responsabilidade de quem quer falar pelo coletivo, assim como exigimos honestidade e responsabilidade dos que sempre tiveram a fala assegurada em base ao privilégio racial, patriarcal, hetero-cisnormativo.
Além disso, é preciso lembrar que o locutor sempre terá um interlocutor. Assim, se o objetivo da fala não é simplesmente falar aos seus, falar a quem já está do seu lado, essa fala precisa ser feita pensando em como melhor atingir o sujeito à que se objetiva chegar. É preciso que seja estruturada, também, sabendo que interlocutores não são meramente passivos, são pessoas que vão querer expressar discordâncias e que, se forem feitas de forma respeitosa e sensível, precisam ser consideradas.

Jota: A noção de saberes situados precisa começar a servir para que pessoas brancas se situem de sua branquitude, pessoas cis de sua cisgeneridade, e por aí. Quero dizer: o modo como essa categoria entrou na nossa vida acadêmica e política acabou por refazer os mecanismos de hipervisibilização da experiência subalterna, criando um lastro para que a posição de politicamente oprimido fosse, enfim, narrável como uma forma de conhecimento. O problema fundamental disso é que, por meio dos saberes situados, aprendemos a falar de como o mundo nos fode, de como as relações de poder nos precarizam, mas não abrimos a possibilidade de situar-nos também em nossos privilégios, em nossos modos de estender a duração da ruína que é este mundo. Quero dizer: nos últimos anos temos tido a chance de aprender a falar sobre os efeitos de subalternidade que envolvem nossa experiência com o mundo, mas infelizmente esse trabalho não foi coextensivo ao de revelação dessas posições de poder cujo sentido da existência é inseparável da reprodução de regimes subalternizantes. Por isso o conceito de saberes situados acabou se limitando a reproduzir a hipervisibilidade da posição subalterna como objeto discursivo, sem criar condições para que, ao situar-se, os sujeitos posicionados em relação de privilégio perante a cisnormatividade, a heterossexualidade e a supremacia branca fossem capazes de perceber a própria posição.

Emmanuel: Se todos forem fiéis à verdade de sua anatomia ou de seu registro corporal, não teremos mais os infinitos ecos pairando no ar, só vozes fiéis. Há uma indignidade na fidelidade a si mesmo. Para quem pode ser interrompido, para quem não está à beira da inanição pelo menos. Minha própria voz é alheia, é a consagração da minha separação e da minha soberania e do meu domínio – da minha vontade e capacidade de encontrar para mim mesmo um lugar ao sol. Mas ter um lugar ao sol não é justiça, é ter um lugar ao sol. É ter um espaço onde minha liberdade não fica investida, não responde.

Alúrio: Sexo. Tem a minha vida sexual e tem a vida sexual dos outros. Dos outros, das outras, des outres. Se o sexo é acoplamento entre um lugar e outro lugar, não tem interrupção. Tem coreografia de anatomias ou de destinos. Mas sexo nunca é isso – ainda que achamos que deveria ser, que poderia ser, que para algumas pessoas é. No meu caso, tem o meu prazer e tem o prazer de quem está comigo. E aqui tem fala, tem escuta, tem resposta. Não tem lugares. Tem troca de lugares, de posições, de cheiros, uma coreografia de respostas e de interrupções. A erótica da política não pode ser hetero. Não pode ser patriarcal. Ela é de contágios, de muitas vozes, todas se interrompendo. É o patriarcado que trepa com lugares definidos, que traz o poder pra cama, que tira a roupa e não faz sexo, faz gênero…

Patrícia T: Não sei se eu gosto ou não gosto. Mas é importante porque sempre houve tutela sobre certas vozes públicas, por isso a noção de “lugar de fala” é central para a insurreição feminista. Gosto da atitude do Não Fale De Mim Sem Mim. É um grupo de pessoas postas de lado pela vida da cidade e eles dizem: não me façam de tema, eles dizem, venham conversar comigo; não dizem parem de falar, dizem, venham conversar comigo. A conversa é a interpelação mútua das vozes – e a conversa é bastante difícil.

Duda Milonga: Lugar de fala é uma herança da ideia de que a consciência tem uma voz. É uma ideia antiga, a ideia da voz que ela mesma é justa. Uma ideia patriarcal, monoteísta, monofônica. Depois tem a consciência de classe: toda uma classe com uma só voz. Mas a consciência não tem uma voz, talvez tenha um ouvido. Ou se tem uma voz, é a voz que não sai da sua boca, que reverbera em seu tímpano. A consciência da classe operária não é uma voz da vanguarda, é estar com os ouvidos cheios da voz do patrão – a mesma voz na igreja, no emprego, na rua, na escola, na família. Não estou pensando no lugar de fala como representação em oposição às muitas falas de todos os grupos, mas estou falando da escuta. A política é uma questão de afinamento, de audição, de ouvir o som ao redor.

Aline Valério: O lugar de fala é um exercício de espectrologia – é uma estereoscopia: ouvir o que se fala e ouvir quem fala. Toda fala tem um significado porque tem um locutor e tem quem ouve, é uma interlocução. Uma voz se torna outra voz depois que uma segunda voz é ouvida. Ninguém ouve mais Gloria Steinem do mesmo modo depois de ouvir Patricia Hill Collins, depois de ouvir Julia Serano, depois de ouvir Laverne Cox. É uma interlocução, e quando se conversa sabemos de onde vem a voz. Uma voz interrompe outra, e vem de um lugar. Nenhuma fala é um relato, todas são discursos. Mas os discursos precisam ser ouvidos. E os ouvidos tem vozes.

mercoledì 25 ottobre 2017

O desarmado: A força da Nudez

Texto da performance de hoje, O Desarmado: A força da Nudez:

O desarmado
A força da nudez


De repente apareceu uma síndrome: as crianças precisam ser protegidas da nudez adulta.

A nudez seria uma arma?

A síndrome é uma vergonha: afora os disfarces que as roupas promovem, não há nada que os adultos possam oferecer aos olhos das crianças.

Não há educação em seus corpos nus. Não há inspiração em seus corpos nus. Não há nenhum exemplo de força ou coragem nos seus corpos nus. Não há nenhum exemplo de força ou coragem que possa servir aos que vieram recentemente ao mundo porque toda força ou coragem dos corpos nus deve ser tratada com desconfiança.

E assim não podem sentir, só podem vestir. Pelos menos na frente das crianças.

A proibição da nudez é a proibição da verdade: as marcas nos corpos de uma comunidade fracassada.

Sem poder suportar a verdade, os corpos ficam sendo apenas os últimos resquícios de uma força. Dos quais deve-se desconfiar. Expostos, eles são apenas instrumentos de abuso e violência. Precisam ser encobertos e com isso domesticados, disciplinados, ordenados, uniformizados. Os corpos são armas vergonhosas porque os corpos adultos brasileiros não podem suportar a comunidade que construíram.

Não conseguem sentir a catástrofe da falência de qualquer projeto bem ou mal intencionado de miscigenação, na forma de uma democracia racial ou na da criação de uma outra raça. A impossibilidade da nudez dos corpos adultos é a vergonhosa vitória do racismo. Que não pode ser sentida (sem roupa).

Não conseguem sentir a catástrofe da falência de qualquer projeto de inclusão dos marginalizados, seja na forma de uma sociedade de igualdade de oportunidades ou da projeção da classe média por toda parte. A impossibilidade da nudez dos corpos adultos é a vergonhosa vitória do elitismo: não somos iguais. Que nos cubram as roupas.

Não conseguem sentir a catástrofe da falência da liberação sexual que, tendo sido ou não um projeto, esbarrou na supremacia patriarcal e cis e hetero de uma comunidade de violência. A impossível nudez dos corpos adultos é sua vergonhosa condição de escravos de uma ordem sexual assassina – que nos cubram de ícones de fácil leitura.

A verdade é indecente porque ela trata de uma comunidade indecente. Mas algumas das forças nuas são livres.

25 minutos de silêncio masculino

Tradução e adaptação de "If Freud were Phyllis" de Gloria Steinem para a performance de ontem no evento Silêncio, silenciamento e escritura feminina:

25 minutos de silêncio masculino

Eu entendo que Phyllis Freud foi um produto de seu tempo, como Georgina Hegel e Emmanuelle Levinas, Na sua sociedade, em Viena, era evidente que a capacidade de ter filhos punha as mulheres em uma situação superior aos homens. Afinal, todas existiam por causa delas – mulheres e homens – e esses poderes de geração, manutenção da vida, parto e amamentação não podiam ser executados então sem um corpo feminino. Phylis Freud, como tantas outras, foi genial, mas não é possível entendê-la sem considerar a época em que ela viveu – uma época em que a superioridade feminina era não apenas mais reconhecida como também tida como ainda mais natural do que é hoje.

Não era difícil de encontrar, entre muitos homens, sintomas de inveja do útero. O direito de dominar das mulheres era tido como incontroverso e essa certeza era o pilar de todas as instituições, das milenares às mais recentes. Era claro que a originalidade, a capacidade de criar, requeria em última instância um útero, e portanto ninguém precisava ser persuadida de que os homens poderiam talvez imitar ou copiar, fazer utensílios de alguma valia, mas jamais poderiam ser pintoras, escultoras, filósofas, poetas já que não dispunham da capacidade feminina de inventar, de gerar o novo; não tinham a fonte mesma da originalidade. Os homens, com seus seios como que castrados, poderiam ser adequadamente treinados para cozinharem e fazerem tarefas domésticas, mas não poderiam evidentemente serem cheffes, degustadoras, nutricionistas ou mesmo médicas – afinal, os sistemas de saúde são muito mais necessários às mulheres que têm tarefas importantes a cumprir na promoção da invenção. Nem sequer para desenhar suas próprias roupas os homens eram empregados – a não ser que se esperasse resultados repetitivos. Quando se vestiam sós, não faziam mais do que repetir representações dos atributos femininos. É compreensível que os jovens homens das classes abastadas que circulavam em busca de esposas preferissem estar vestidos por costureiras mulheres famosas.

Quando se falava em sociedade ou civilização, era implícito que se tinha em mente a convivência das mulheres. É certo que havia eventualmente alguns grupos onde homens estavam presentes, mas eles eram raros e, na maior parte das vezes, sua presença era bem-vinda como uma maneira de apimentar encontros e ocasiões especiais, especialmente com os raros homens que conseguiam participar de uma genuína conversação social – e não apenas falar de suas esposas, de suas cozinhas e de suas crias. E, em todo caso, como escreveu Phyllis anos mais tarde, “o charme e a vaidade dos homens foi sempre mais desenvolvido, como efeito da inveja do útero já que eles tinham que encontrar modos de compensar sua sexualidade inferior”. Apesar disso, era claro que a falta de experiência dos homens em assuntos de nascimento e de não-nascimento, de concepção e
contracepção que são parte da vida das mulheres em todos os seus anos férteis, fazia com que eles tivessem um senso de justiça inibido em seu desenvolvimento. Isso incapacitava eles para serem filósofos – e pensarem sobre a existência – ou para tomarem parte nas funções judiciárias. Os poucos homens que podiam participar das conversas sociais eram precisamente aqueles que aprenderam a pensar como mulheres – a pensar como se tivessem um útero.

Depois do útero e dos peitos que eram capazes de sustentar a vida, a capacidade de menstruar era tida como a prova mais óbvia da superioridade feminina. Só as mulheres podiam perder sangue sem ferimento ou morte; só elas podiam se erguer todo mês como Fenix, só os seus corpos estão em sintonia como o universo e o com as marés. Sem esse senso lunar, como os homens poderiam ter um senso de ciclo, de ondas, de tempo, de medida? Como poderiam ter uma conexão religiosa com o universo? Como poderiam ser fiéis aos ritmos que são descritos no novo e no velho Ovarimento?

Phyllis, quando foi aos Estados Unidos, entendeu que o excesso de educação dos homens por lá levaria a um aumento do divórcio. Hoje, muitos estudiosos que fazem parte da família Freud insistem que o aumento da criminalidade é causado pelo fim da família nuclear matriarcal: o excesso de pais solteiros e de pais que trabalham é um perigo. Se os homens saem de casa, quem vai cuidar dos filhos? As mulheres já os concebem, não seria justo que tivessem também que criá-los. Há tarefas domésticas que dispensam a capacidade intelectual das mulheres, já que não envolvem criatividade mas um mero exercício de habilidades manuais que qualquer homem possui. Também aqui Phyllis foi profética: uma sociedade sem a marcada superioridade feminina, ela dizia, explodiria em uma miríade de batalhas por poderes. Uma vez, durante sua visita aos Estados Unidos, ela disse que as mulheres se casam muito jovens por lá e não podem exercer sua autoridade completa já que ainda não estão plenamente maduras. “Na Europa, ela disse, as coisas são diferentes. A mulher domina a vida doméstica. É assim que deve ser”. E perguntada se não seria melhor que homens e mulheres fossem iguais no casamento ela respondeu de forma clara e sensata: “Esta é uma impossibilidade prática. Deve haver desigualdade, e a superioridade da mulher é o menor dos males”.

Esta receita para um casamento articulado era conhecida e aplicada por Phyllis. Basta examinar para a carta que escreveu para seu noivo e futuro esposo Mart quando estava traduzindo um panfleto de Harriet Stuart Mill sobre a sujeição dos homens: “O argumento principal do panfleto é que um homem casado pode receber um salário igual ao de sua esposa. Eu diria que nós concordamos que manter uma casa e cuidar dos filhos toma o tempo todo de uma pessoa e praticamente impede qualquer profissão. […] Tudo isso ele simplesmente esquece, como omite todas as considerações relativas à sexo… Deveria eu pensar que meu robusto e doce garoto é um rival? A posição do homem não pode ser outra daquela que é: ser um adorado objeto de afeição quando jovem e um esposo amado na maturidade. E, além disso, a autora insiste no voto masculino! Ora, todo garoto, mesmo sem voto ou direitos, que já foi cortejado por uma mulher que está disposta a correr um risco de vida por seu amor, seria capaz de explicar para ela o que ela não entende”.

O gênio de Phyllis marcou a história do último século. As ideias que ela formulou como a de inveja do útero e de ansiedade de castração dos peitos fizeram entender a estrutura da vida subjetiva de homens e mulheres – nos deu um mapa para entender as amarras de cada vida psíquica e principalmente para mostrar que uma estrutura familiar matriarcal está profundamente assentada nos dispositivos mesmos que dão origem e mantêm os desejos. Mas o elemento mais heróico da jornada de Phyllis foi seu interesse no tratamento da testeria – tão associado aos homens que tinham convulsões e faniquitos sem nenhuma razão aparente e que, de tão frequente entre homens, muitos pesquisadores assumiam que era uma condição associada aos testículos. Phyllis chegou a acreditar que os homens que sofriam do mal – um mal muitas vezes tratado como mal sem nome – tinham atravessado experiências traumáticas na infância, na maioria das vezes envolvendo iniciações sexuais com mulheres de sua família. Logo no início de sua carreira de pesquisadora, Phyllis parecia ter obtido evidências de que abusos desse tipo eram comuns até nas mais respeitáveis famílias matriarcais. A reação de suas pares nos estabelecimentos médicos mostraram a ela que tais suposições seriam desastrosas para as mulheres de bem que se empenhavam em manter acesa a chama da civilização. Ela entendeu que o caminho a trilhar era outro: era preciso ter sempre uma pitada de desconfiança quando se ouvia os relatos dos homens testéricos. Eles podiam estar às voltas com episódios de fantasia, podiam estar apenas projetando os desejos que os superiores corpos femininos lhes inspirava, o que por sua vez Phyllis viu como uma consequência ainda que oblíqua da inveja do útero.

Sempre que eu falo de Phyllis sou acometido não apenas de uma admiração mas também de uma reverência. Sempre digo que ela foi um produto de seu tempo. Mas no fundo acho que isso ajudou bastante sua lucidez – os seus eram tempos melhores. E, de fato, Phyllis abriu, mesmo sem querer, caminhos para que as coisas piorassem: sua psicanálise acabou se tornando parte de uma cultura onde os homens tem a ilusão de poderem ser iguais às mulheres – ainda que saibamos que as estruturas fundamentais da subjetividade os impeçam de serem capazes de pensar e agir com a abrangência, a profundidade e a inventividade que os corpos femininos possibilitam. Melhores eram os tempos em que os homens sabiam seu lugar, não se subalternos, mas de complementos à sombra. É este o lugar que eu vejo para mim, um lugar menor, mas um lugar em consonância na ordem psíquica da convivência. É como Aaron Rand uma vez escreveu, um homem jamais poderia aspirar a um poder supremo, como o de presidente da república, já que a natureza dos homens é o de cultuar uma heroína, de cultuar uma grande mulher poderosa. Por isso eu jamais votaria em um homem para a presidência da república.

E é por isso que eu encontro refúgio entre as filósofas. Mesmo hoje em um mundo em que os homens participam mais de toda espécie de atividade pública, como se fossem dotados para isso, há certos espaços em que a supremacia feminina – que Phyllis ajudou a deixar explícito que é não apenas um fato mas um fato que carrega consigo a força da boa norma – ainda é mantida um tanto intacta. Sei que há hoje muitos filósofos e organizações que promovem a filosofia no masculino – ainda que a maioria dos editores de texto de computador rejeitem o masculino “filósofo” ou “filósofos” já que é de comum saber que se espera sempre que haja filósofas, ainda que possa haver professores ou divulgadores de filosofia. A filosofia ainda é um campo frequentado em sua maioria por mulheres onde os homens tem pouca chance de sucesso ou de um carreira sem acidentes. Mesmo nos dias de hoje, quando a setorização é a norma e surgem por todas as partes Centro de Estudos Masculinos, Institutos de Estudo de Homens Brancos etc., a filosofia, com seu cânone estabelecido, permanece fiel às práticas civilizadas. A filosofia resiste, ainda diante de provocações como a dos que dizem que os Departamentos de Filosofia deveria passar a se chamar Departamento de Estudos Femininos! É preciso que fique clara a distinção entre a genuína filosofia e estudos menores que dizem respeito ao que carece de universalidade, ainda que, sob certos pontos de vista, esses assuntos mereçam alguma atenção. Porém nada se compara aos feitos das grandes mulheres do pensamento no passado que, como Phyllis e que, mesmo sendo produtos do seu tempo, foram capazes de pensar à altura do sua época se se deixar levar por demandas mesquinhas que em geral são cegas para os grandes temas. O cânone da filosofia é o seu grande escudo contra os modismos: ela lida com perpetuidade. E ninguém se inicia no âmbito do que é eterno sem a ajuda das grandes timoneiras do passado.

giovedì 12 ottobre 2017

Manifesto das partículas soltas

Sou uma partícula de excesso solta, logo nem tenho cabimento

Esta é minha experiência: Eu sinto a chibata e tenho que encontrar os grilhões.

Diz o Drummond: << Preso à minha classe e a algumas roupas, Vou de branco pela rua cinzenta. Melancolias, mercadorias espreitam-me. Devo seguir até o enjôo? Posso, sem armas, revoltar-me'? Olhos sujos no relógio da torre: Não, o tempo não chegou de completa justiça. [...] O sol consola os doentes e não os renova. As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. >>

Então são as minhas roupas
que me colocam
entre as coisas
na Europa Conceptual (SS)
em um filo de coisas que são pessoas que tem o carimbo da SS e que no
organograma estratosférico da SS come bichos e cria crianças e no
dispositivo panorâmico da SS é uma roldana que gira no meio das bactérias no
meio dos tratores eficientes da SS que tratam a terra como fábrica no
chão para preservar os bichos da SS gordos e bem-nutridos no
pasto que é o depósito do supermercado em expansão da SS no
meio das multidões carimbadas da SS que querem sacrificar seus excessos no
altar de uma ordem milimetrada que a SS sonha e que eu não quero. No
filo das coisas que são pessoas estou preso a uma classe cúmplice no
seu estômago catequisado pela SS e que não come cru, requenta o bicho no
fogo controlado da SS. Estou preso às minhas roupas já que no
centro do poder colonial equipadíssimo da SS me impedem de ficar nu.

É claro que essa proibição da nudez - e esse medo da nudez -
faz Eros ver o sol nascer quadrado. Aquela inveja do colonizador vestido
diante do índio nu. A inveja - ou foi a cobiça? - fez com que ele
odiasse o índio nu, quisesse ser diferente dele, acusasse quem não veste
de atentado ao pudor e fechasse o museu.

Do ponto de vista da partícula solta, somos a caça.




Emendas à auto-constituição

Autoconstituição

Preâmbulo:
não nada o nada em tudo
nada o quase-nada porém
nado os cinco oceanos

Artigo 1:
sou uma partícula
de excesso solta. logo nem
tenho cabimento

Artigo 2:
eu próprio sou impróprio
sou só rios inquilinos
e pedras de comer

Artigo 3:
não trato da vida
é ela que me trata – e até bem
mas ela é tratante

Artigo 4:
amo fevereiros
sombra e luz do ano inteiro
num esplendor no chão

Artigo 5 (ou, minha vida em desessete capítulos):
nasci da W-3
revoguei as indisposições
flori de insensatez

Artigo 6:
gosto de ver rostos
até dentro de uniformes
espirram e bocejam

Artigo 7:
bem que adoro as exceções
mal percebo os trens no trilho
só o besouro entre os vagões

Artigo 8:
enquanto transtorno
desenho em mim outra forma
e depois transbordo

Artigo 9:
não invento palavras
os outros é que me dizem
o que eu quero dizer

Artigo 10
sonho um Freud andróide
maquiando a tireóide
e meu pomo-de-adão

Artigo 11
na vida é iminente
que uma eminência imanente
me manda e me mente

Artigo 12
o que é que eu sou mesmo?
uma antena entre torresmos,
mais uma lesma a esmo?

Artigo 13
sem lugar fluo e flutuo
não deixo que a experiência
distraída conclua

Artigo 14
prego ambivalência
amo a insolência indolente
mesmo a sonolenta

Artigo 15
sou confusionista
nem prazeres tem prazos
nem neuroses validade

Artigo 16
excreto quase tudo
exceto o excesso; e o que falta.
e como as migalhas

Artigo 17
nunca venho a calhar
misturo o momento certo
com o calendário ao léu

Artigo 18
gosto dos desejos
rimo remela e sapiência,
coceira e citação

Artigo 19
crio exageros novos.
o plural de caô é caos
e o de ordens é ordem

Artigo 20
quero mais palavras
ao vento, ao fogo, ao matagal
e com um ninho dentro

Artigo 21
amo papel em branco
solto na rua, já que há vultos
avulsos em tudo

mercoledì 16 agosto 2017

venham os estrangeiros

8526 milhões de quilômetros quadrados tombados sobre minha cabeça
esse é meu território: bruto e confundido na medula com minha fisiologia,
e esse é o ônus: bruto e confundido na medida com meu complexo de cinderela.

Uma conversa distante entre duas pessoas anônimas
marca o lugar de um trabalho, ou de um encargo,
ou de um encontro.

Não querendo encontrar, eu chamo os estrangeiros.

mercoledì 9 agosto 2017

Voltando aos escombros

Voltando aos escombros

Depois de um ano fora da UnB e do Brasil, volto. A vergonha da nacionalidade, que eu sinto desde maio de 2016, onde quer que eu esteja, se acirra quando por toda parte há pouco espaço para a invenção. A humilhação generalizada, contudo, é um sentimento novo quando ando pelas ruas, pelos corredores, pelos sinais de trânsito. A presença explícita ainda que incapaz de dizer seu nome do arbítrio e da truculência vejo por toda parte – o arbítrio e a truculência em coalizão tomaram o poder estatal federal à golpe de constitucionalidade no ano passado e desde então capilarizaram-se por muitos rincões de um país que se viu obrigado a endossar uma subalternidade privilegiada. É certo que este estado de coisas de governo pelo medo não é inédito nem no Brasil e nem no resto do mundo – é algo cada vez mais frequente. O controle das populações ultrapassa quase todos os dispositivos de participação e interferência nos espaços públicos e as democracias parecem perder intensidade a cada ciclo eleitoral. E, no entanto, percebo a diferença entre a humilhação dos que foram golpeados e o clima de expectativa – ainda que raramente de protagonismo – que imperava antes do ano passado tenebroso.

Tento começar a exorcizar esse sentimento de destituição na exposição Não matarás do Museu da República organizada por Wagner Barja. A exposição gira em torno de mais de 50 obras de José Zaragoza sobre os rastros do golpe de 1964 e abarca outros trabalhos recentes acerca da nação golpeada. Na exposição retomo minha performance O desarmado que comecei a fazer na praça de Tlalteloco na Cidade do México em 2014. Escrevo na tabuleta que acompanha meu gesto:

Em vez de revoluções,
golpes de estado.
A polícia protege os governos
contra os governados.
Sobraram a ditadura constitucional
e os desarmados.

Ao mesmo tempo, em Brasília, como que para amortizar minha aterrissagem, a exposição de Traplev onde a pos-democracia é um dos ingredientes: o diagnóstico de que os dispositivos democráticos se tornaram rituais de legitimação sem efeito diante do poder econômico de endinheirados globais que atuam dentro da ordem constitucional e indiferentes à encenação dos rituais democráticos. Pois então: chego a uma ditadura constitucional. Um regime que talvez tenha que ser pós-democrático já que a democracia tem que ter sido experimentada em alguma intensidade para se tornar a constitucionalidade uma liturgia que dispensa a participação pelas formas democráticas. Há uma tensão entre democracia e constitucionalidade. Essa é a tensão que deu o bote. A democracia, se precisa se expandir para sobreviver, esbarra nos direitos adquiridos e nas instituições estabelecidas. A ordem constitucional é uma liturgia que pode ser preservada em ambientes crassamente antidemocráticos. Esta é a experiência por que passa o Brasil para onde volto. Um regime de exceção e de direito.

Não sei se entendo bem o que perdi – talvez demore muitos anos para entender. O que perdemos na universidade é claro: recursos para investigar, capacidade para inventar, importância. Somos obrigados mais uma vez a engolir pílulas de subalternidade. De um ponto de vista mais amplo, o tamanho do dano não posso dimensionar. Porém percebo já que uma ditadura constitucional é a mais terrível das formas de governo. Ela é o avesso da democracia e também o avesso do domínio de um déspota soberano que prescinde de leis. A lei se protege a si mesma – com a ajuda dos aparelhos de segurança que a balizam e a transformam em lei. Chegamos nisso. Talvez a experiência brasileira – como tantas experiências de fascismo que foram inventariadas no último século – seja precisamente o futuro das humanidades governadas em um planeta em perigo. Penso que o golpe brasileiro é mesmo a vanguarda de uma distopia. Nada que mereça que eu escreva para casa contando. Além disso, a casa ruiu.


mercoledì 2 agosto 2017

O desarmado (para amanhã talvez)

Talvez, em "Não matarás", Museu da República:

Em vez de revoluções,
golpes de estado.
A polícia protege os governos
contra os governados.
Sobraram as ditaduras constitucionais
e os desarmados.

sabato 1 luglio 2017

o país?

to achando o brasil o país mais triste do mundo. onde não mora nem esperança, nem ousadia. onde só moram rebanhos e rebanhos de gente com medo. perdemos tudo: o sentido da parada, a vergonha da presepada , o fio da meada. não sobrou nada, aliás sobrou só um nada, intenso nada. falam de horror ao vácuo mas tenho achado que do lado de baixo do Oiapoque não há mais nada além do nada. nem o horror. nem mesmo o olulante: uma revolução completa que se seguisse das premissas maiores e menores de um silogismo traduzido: necker est reenvoyé (i.e. temer e aécio e gilmar seguem no prumo), c'est le tocsin d'une saint-barthélemy (é um ultraje, um golpe a cada dia) - aux armes (não tem armas, tem contas pra pagar).

mercoledì 14 giugno 2017

- Mesmo quando não tem nada em cima de você, tem céu.

Vrim embaixo de um céu verde e sem nuvens: onde está o céu? Os passarinhos comeram ele todo?


venerdì 9 giugno 2017

A coroa de Ferro

Por meio de Carla Ferro e com uma coroa de pedrinhas de brilhante
me coroei hoje princesa persa.

Tenho os pelos levantados, e de muitas cores e altos e um manto
feito de veludo cor-de-pistache
um bastão de limas e me concedo as regalias,
cada uma delas com cereja:
um passeio pela manhã, um descanso depois do almoço e
me deixo dar os pulinhos.

Claro que me encarcero, com barras de ferro
nas veias e grilhões nas asas
vermelhas.
Mas os fios das têmporas, revoltos encaracolados,
sentem a textura de Isfahan
e se acalmam.

domenica 14 maggio 2017

Sem língua

O Temer e a empáfia
não me roubam só tranquilidade
ou justiça, me roubam minha língua -
minha única língua natal.

Fico com uma língua envergonhada de si,
fico querendo me esconder atrás de palavras,
que ficaram tão raquíticas
que deixam ver através dos seus ossos
meus dentes mordendo os lábios.

martedì 9 maggio 2017

Meu romance com a humanidade

Quando vi os primeiros exemplares, achei que eles eram enormes,
mãos que me carregavam, olhos que me olhavam inteiro
de um só relance, sem mexer a cabeça.

Mas não me lembro mais da língua dos meus pensamentos.

(No filme do Jarmusch, que vi na entrelinha
entre o primeiro verso e o segundo,
um japonês de Osaka se senta ao lado de Paterson,
um poeta motorista de ônibus de Paterson
que escrevia em um caderno sem cópia
devorado por seu cachorro quando ele foi ao cinema
com a namorada que vendeu 263 dólares de bolinhos
no sábado. O poeta tinha o mundo sem seu caderno de poemas
aberto a sua frente - bem, não o mundo, mas a cachoeira
e a ponte de Paterson. E ele, Paterson, sentado no banco
agora ao lado do japonês que lhe fala que escreve em japonês,
sem tradução -
poetry in translation is like taking a shower with a raincoat.)

Mas não me lembro mais da língua dos meus pensamentos.

Depois eles, os humanos, se tornaram cheios de capacidades
que eu não entendia como cada um deles de repente adquiria.
Eles se juntavam em praças, em praias, em parques,
e faziam amigos. Com baldinhos de areia,
com regadores, com pázinhas que eu fazia castelos,
eles faziam amigos.
Eu queria fazer amigos com eles, e
um dia iria lhes perguntar como juntar os grãos de areia
molhados em um castelo
sem que cada grão vá para o seu canto?

Depois entendi que as pessoas gostavam de ver nos outros
coisas enormes. Era isso que eu via, era isso que eu mostrava.
Uma grandiloquência, feita de cerejas distribuídas na noite
de ano-novo aos desconhecidos. A humanidade não recusa
as cerejas. Nem no Canal da Mancha, nem no Titicaca.
O lago Titicaca me deixou com febre.

Passei dias no barco de palha pelo lago,
onde todos os peixes nativos foram substituídos
por peixes pescados.

Ontem fui ao parque onde sobre uma toalha enorme
havia comida de toda parte, galinhas assadas,
e as beterrabas com creme que eu trouxe
e as folhas de parreira. Havia gente de toda parte.
Achei que eles eram grandes, mas mordiam.
Achei que eles me acharam grande, e que eu mordia.
Dei uns passos para trás, e sentei na grama.
Seria melhor pedir o divórcio?

venerdì 21 aprile 2017

Agora a colher

* Mais uma tentativa de escrever sobre lavar a colher na pia. No blog tem outra, de junho de 2008

Uma sobra de gordura, matéria pura sem forma nem cor,
grudou na colher que a senhora, o senhor,
que traz quase toda sua vida
espalhada por toda sua coluna doída,
ou não traz nada,
lava.

Onde estava a senhora? Atrás de uma cortina branca
no interior da Frisia. Mas a Frísia é apenas o nome do pedaço de mundo
onde a Antonia come––e lava a colher.
Ela despeja no metal um detergente qualquer––amarelo.
O detergente é gosmento, suas mãos são feitas de carne
já tocaram o ríspido e o belo, já apalparam o tenro e o espinhoso;
ou não apalparam nada.
A pessoa que lava a colher é polifónica:
está por toda parte,
por toda cozinha,
universal, quotidiano, empacado e abstrato.
E é eterna.
Sempre lava a colher.

Eu agora da senhora.
da agrura dos objetos
da cozinha sem endereço,
sem latitude.
Amanhã lavo a colher,
em Copacabana lavo a colher,
em Veracruz esfrego a colher,
no Mississippi lavo a colher,
na Walonia ela lava a colher,
na Patagônica ponho pra secar e desligo a torneira
esvaecer a sobra de gordura––esgoto abaixo.
Duas mãos compostas de minutos gordos e magros,

Talvez consigas encostar tua testa nelas.

venerdì 14 aprile 2017

O rodapé da Mars Poetica


<< Il cavallo scalpita, i sonagli squillano, schiocca la frusta.—Ehi là!— Soffii il vento gelido, cada l'acqua e nevichi, a me che cosa fa? >>

Mars Poetica

Não é sentir uma temperatura em um pacote;
não é fixar os olhos nas extremidades das portas
onde elas ficam afiadas e afinadas em um pacote.
Não se trata de uma confissão.
Mas na pele onde tem dermatologia
tem analogia.
E outra, e outra - querendo chegar na Mesma.
Dá no mesmo.
É claro que parece nessa tarde de sexta-feira santa
a 3 milhas do Mississippi e depois de ouvir Pietro Mascagni
que estou à esmo.
Mas não era a rima e nem a razão que dedilhavam
pelos meus dedos, nem era a sensação.
Era a minha incapacidade de sorver
o vento quando a porta está aberta.

domenica 5 marzo 2017

Nähe\Beckett

Duas luzes, a da imensidão contemplada com os olhos de quem incorpora
(compreende, aprende, descobre, dispõe, alicia) e
a do pequeno vaga-lume que o imigrante sírio de 3 anos
encontra nos olhos de mãe.
A psicologia papai-mamãe fala do vasto mundo e do sentimento oceânico.
Há os oceanos, e há uma invencível armada.
Há Cook e há aquela esposa do bombeiro de Chernobyl que Alexièvich descreve
(não há como escolher entre o amor e a vida).
Queria entrar de um delírio (beckettesco)
sem pai nem mãe.

Um paciente sem paciência.

venerdì 3 marzo 2017

O messias chegou, salvou ou danou, e já se foi

se foi virar fumaça o cidadão enquadrado e respeitado e agora é trapo sem ter escolhido a sordidez nem por um segundo
não se trata de punição, as portas são ralos, e ralos não tem soleira, não tem batente, não tem dobradiças
me entupo de bolo de mel com lavanda
como pode haver um bolo de lavanda. e sei que a lucidez patas de aranha é uma composição química
uma farmácia, e mais que isso, bem mais.

escrevo sobre o cansaço - a grande porta.
é a porta que me interessa nos enlutados, nos traumatizados, nos que estão pós-esperança
nos que não mais galgam.
estar por aí ainda como entre os que sobreviveram e descobriram a vida depois e
não antes do messias chegar.

termino as páginas do museu da inocência de pamuk
também kemal ultrapasou o que queria da vida e seu museu é o de depois
os museus são sempre de depois, é por isso que soltam um ar tranquilo
de quem já terminou os anos
e apenas se lembra por alto do que foram os meses cheios de dias.

no café do garden district tocam un nino rota, acho que de amarcord
a infância relembrada como um bicho empalhado;
virar pós-criança

Bu na Ana Lama


O Coletivo Bu chega à Ana Lama bem jázinho. Assim escrevi para a ocasião:

Listar, listar, listar, é para isso que estamos aqui

Os Bu tem uma forma toda particular de negar. Certo, já acreditamos que cada negação, seja compulsiva ou compulsória, é uma negação e não outra negação; elas podem ter uma semelhança de família entre elas – um dedinho se movendo da esquerda para a direita e depois voltando da direita para a esquerda como quem risca as linhas escritas e depois risca as entrelinhas esboçadas ou uma cabeça que se move de um lado para o outro como quem procurasse e procurasse e não encontrasse nem à leste e nem à oeste – porém cada não é um não singularíssimo, uma mão aberta que pára um fluxo seja de acontecimentos ou de ensaios de acontecimentos, uma contramão que torna algum pedacinho suspeito de não-ser, ainda que flutuando em afirmações suculentas. Tem a negação viscosa, tem a negação vistosa, tem a negação indiferente e tem aquela que insiste em colocar alguma coisa em um canto diferente. Mais que isso, cada não é um não – tem um meandro irrepetível, tem um meneio que não pode ser copiado nem pela memória (essa Wolfgang Beltracchi de mãos tão leves) e não há um não igual a cada não dos Bu em nenhum dos mundos possíveis e em nenhum dos que não seriam possíveis. Cada não é uma nau – e é assim cada negação uma inauguração. E os Bu inauguram um continente de negações imóveis – uma derivada por uma avenida sem saída – que pretendem refutar sem sair da janela onde contemplam contra o horizonte, contra os viadutos, contra a catedral, contra as escadas do banheiro público. Negação gorda de imensidão, “o movimento do homem imóvel”. A imobilidade não vai a parte alguma, nem ao oriente e nem ao desoriente, não tem mesmo horizonte algum – é mapa da ferrovia sem trem, é um dia hora por hora sem agora e sem mais tarde. É como aquela eternidade sem tempo, aquela que nega porque nunca deixa acontecer. Os Bu são uns negalhões, negam tão imensamente que chegam a dizer mascarados de validade muda.

Os Bu tem uma forma turbulenta de estarem cansados. O cansaço é uma negação do tipo daquela que não aguenta mais. Mas tem o cansaço também do que pede apenas um último esforço. O cansaço é a negação nas vísceras: sim, claro, poderia fazer isso também mas já não aguentam de pé os meus pés. Discutem os sábios se o corpo mente, desmente, omite ou só manda. O cansaço dos corpos parece a última das autenticidades – como insistir com um corpo que é o que está cansado, com um corpo que não tem o ímpeto de ter ímpeto, com um corpo que é fiel às garras que o prendem sentado e que não se arrependem de nenhuma de suas imobilidades. Exaurir, exaurir, exaurir: para isso estamos? E, para negarmos na viscosidade, fazemos para nós um corpo exaurido. Sim, um corpo exaurido já não mais pode ser condenado ou aprovado ou recomendado ou punido. Como podem os Bu estarem tão cansados? Eu também recebi um convite (foi deles?): cansa-te. Também um convite que se derretia, que pingava em gotas vermelhas viscosas enquanto eu caminhava à beira de um rio (era o Mississipi ou era o Tejo ou era o Das Almas?). O convite para me cansar vinha ilustrado: veja os exauridos, eles podem ser deixados em paz pela maçada que é acreditar que há uma monte Fuji a ser escalado pelos acontecimentos sucessivos que cavalgam pelas nossas vísceras.

Os Bu tratam da ansiedade. Bem, certo, não há talvez mais nada a ser tratado. Nada mais além da ansiedade. Nada mais além da pressa em percorrer os próximos cinco minutos ou a demora em percorrer os próximos cinco minutos. E a ansiedade faz listas como as que fazia Erik Satie que não sabia viver: dormir 2 horas, almoçar em 29 garfadas, procurar um pássaro no céu. Fazer listas, levá-las ao infinito. Acostumar-se a nada mais que listas infinitas. Não uma receita para alcançar a redenção ou um caminho para o rendez-vous com o messias, nada disso – apenas uma lista, um item depois do outro. Nenhum acontecimento-preliminar, nenhum acontecimento-tira-gosto, nenhum acontecimento-amuse-bouche e nenhum acontecimento-climax ou acontecimento-apoteose: pisar no meio-fio, comer uma mordida do pão, fazer uma exposição, receber 1000 refugiados, casar, comprar leite, parir, descascar o abacaxi, se apaixonar, ler o jornal, envelhecer. Um horizonte aberto de itens e mais itens sem picos e sem vales. Não mais cumprir a tarefa da vida, mas cumprir as tarefas da vida. A lista é um gênero; ela é uma escultura, uma escultura plana. E é um gênero sem gênero nem espécies – a lista não tem hormónios e nem surtos de ansiedade ou de desejo, quem lista não deseja. A lista é apenas um amontoado de itens. E os Bu são especialistas já que vivem na imobilidade e na imensidão: quem lista não se move, não se acelera, não se apressa. A lista é a receita contra toda ansiedade: o Everest e o Mar Morto são apenas itens, e itens estão apenas um depois do outro.

Os Bu regurgitam ontologia plana. Planíssima: um plano de listas infinitas, imensas, imóveis. Nada está mais importante que nada mais; os olhos cansados que já não se atiçam diante do puré de castanha com creme de alfarroba e nem se apavoram diante do chamado de Cthulhu. E o cansaço é estética e é ética plana – se tudo está em um mesmo plano de quem dexiste da espera, um ainda outro interromper tudo; aquilo que não pode estar listado. Os Bu nem se preparam para o deslistado. Não há preparação, há uma planície de afazeres. E um pano de fuga. Ali onde estão pintadas paredes e nuvens e uma foto tamanho de passaporte de uma curadora portuguesa que talvez nunca tenha ainda.

O texto foi uma resposta ao texto do Bu:
Recebi um convite. Não veio em papel material mas logo o transformei pois acredito e necessito da acumulação, não sei se acredito mas a maior parte das vezes sinto que necessito. Demorei vários dias, meses, semanas, a lê-lo e cada momento que passava ele ia ficando mais pesado e quando li a última linha o início já tinha apodrecido a tal ponto que escorria uma gosma que colava. Essa gosma viscosa conheço-a bem e por afecto não a limpo. Também eu sou um ser viscoso, viscoso por fatalidade e condição. É essa viscosidade que me prende em casa, causando repugnância à vizinha da frente. Viscosidade como resistência do fluido ao escoamento. Esse movimento com o objectivo de sair ou abandonar determinado lugar lembra-me logo daqueles que fogem, daqueles que rapidamente encontram um buraco para se enfiar. Nunca fui assim, sempre demasiado picudo para esses lugares, nunca tive essa visão aguçada de ponto de fuga. Um corpo tem mais viscosidade quanto maior o seu atrito, como a hiperacumulação que sofro e que sempre me faz sentir imiscuída e ao mesmo tempo sem lugar. As camadas, o pó, os papéis, as ideias, os projectos, vão-se sobrepondo, misturando-se, criando uma espécie de bolo alimentar malcheiroso e repugnante que deveria fazer o seu caminho ao longo de uma estrada sinuosa. Falta-nos intestinos na cabeça e por isso, esse bolo vai-se adensando, compactando até não mais sair (parecido com uma couve-flor sem água). A minha história, também pela minha (in)feliz condição, conta-se, então, pelo que não se vê mas existe. Será como a relação do sim e o seu contrário, entre a essência e a transcendência. A potência da acção também é a não acção, senão seria a acção por inteiro, perdendo a condição/característica/vestimenta da potência. A potência de fazer é também não fazer como o gato que está vivo ou está morto e afinal está vivo e está morto, as possibilidades são todas possíveis e coexistem. Possibilidades totais que levam à incerteza e à entropia que me faz sentir mais pertença, que faço parte de uma natureza cosmológica. Contradição (aparente) de ser e não-ser no mesmo espaço-tempo é uma forma extrema de vida. E com isto recordei o meu convite vindo de uma curadora famosa mas triste que encontrou o seu ponto de fuga na arte hardcore e na fuga em si. Uma clássica que ainda acredita que arte extrema tem que ver com esporra e sexo mas que no fundo é boazinha e defende os artistas não monumentais como se fossem refugiados. Gosto disso dela porque nunca gostei de fronteiras. Como ela, também tenho esse dom de causar consequências e aceitei o convite. Só para lhe mostrar que há várias artes extremas e apoiamos também a sua fuga para as ilhas (?). Invejo-a pelo seu ponto de fuga que foi a fuga talvez em barco para os Açores, mas mesmo em fuga quer traçar bem o seu caminho mandando postas de atum aqui para a capital artística portuguesa. Ontem fui a uma exposição composta por um objecto de ferro forjado, pequeno, disforme e detestável. Com esse objecto à partida simples, o artista conseguira falar e reflectir sobre a morte, os povos ancestrais e a sua morte, a fome causada pela crise e o caos deixado pelo FMI em Portugal. Fiquei fascinado e comecei logo a pensar numa peça que representasse tudo aquilo que me apoquentasse. Fiz listas, escrevi, li muito, pesquisei e não consegui. Penso que é uma incapacidade minha pois abro a agenda cultural e vejo muitas exposições, se calhar todas a falar de vários assuntos numa só peça. Tenho uma debilidade e um defeito e agora vejo como é patética a minha tentativa de adaptação. Sou viscoso e tenho muito atrito interno que dificulta o escoamento disse-me a interna no hospital mas ela estava com pressa e na verdade ainda não tive condições de consultar um especialista especializado. Mas o não conseguir materializar não necessariamente significa que não existe. E aqui está o meu drama. Tenho tudo em notas de rodapé que levam a outras notas de rodapé viciosamente como em suspensão, numa linha precária. Como a ambiguidade é, na boca do povo, a arte da suspensão, o meu ser e o meu trabalho (???) é ambíguo. Ambíguo e imenso. “A imensidão é o movimento do homem imóvel”, explicou-me o meu senhorio quando soube que eu passava os dias em casa a olhar pela janela, imaginando que nada do que via existia. Mas para ele a imobilidade não tinha nada de inútil nem de improdutivo. Era só uma questão de movimento, de aceleração, de física. Algo imóvel, como máximo de velocidade. Como se a imensidão fosse palpável e não tivesse nada de metafísica. Interessa-me isso à medida que vou escrevendo. As listas, ao invés de me ajudarem a estruturar a minha debilidade, tomaram conta dos meus dias criando assim uma vida paralela que, apesar de não vivida, era tão perfeita que começou a ocupar o lugar da minha vida tão desordenada e ambígua. Essa organização fictícia é um simulacro, uma representação artificial da realidade onde eu me adaptei a viver. Vejo-me (quando por vezes consigo projectar-me fora de mim mesmo) numa espécie de simulacro de ponto de fuga, como se fosse aquela estatuazinha de ferro forjado que vira. Uma concepção ao revés, um trabalho do não, uma distorção, destruição do real, do que existe (?). Encontro-me num projecto quase fadado ao fracasso, mas sempre tendo em conta a incerteza, as possibilidades, as ambiguidades. Será e é sempre um processo em bruto, um trabalho contínuo, como aquele em que alguém pelava batatas durante toda uma noite e ninguém comia. Algo assim. Em forma de provocação e desculpa, simultaneamente, deixar-vos com esta tentativa prévia e conscientemente condenada ao desastre, absurda simulação mascarada de validade muda, de certa forma (talvez) apenas para me continuar a orgulhar desta mania constante que tenho de renascer depois de todos os fracassos.

martedì 31 gennaio 2017

Christopher Norris on structuralism (and others)

Cristopher Norris published five poems in Performance Philosophy This is the one on structuralism:


STRUCTURALISM AND ITS DISCONTENTS
"The mind cannot remain at rest in a mere repertorization of its own recurrent aberrations; it is bound to systematize its own negative self-insight into categories that have at least the appearance of passion, novelty, and difference."

Paul de Man, ‘Roland Barthes and the Limits of Structuralism’ (1990)


Neat theory, but I doubt it fits our case.
Granted, all signifiers slip and slide,
Yet bygone signifieds still leave their trace.

The gap between might be just empty space
With nothing meant since meaning’s open wide.
Neat theory, but I doubt it fits our case.

If breaking up seems easier to face
When past intent affords no future guide,
Those bygone signifieds still leave their trace.

Splendid idea for structuralists to base
Their doctrine on, though here it’s misapplied:
Neat theory, but I doubt it fits our case.

Too much gets lost in synchrony’s embrace
As it canutes all thought of time and tide
While bygone signifieds still leave their trace.

‘If signs make sense,’ they say, ‘then it’s by grace
Of signifiers, not things signified.’
Neat theory, but I doubt it fits our case.

And if they say such doubts are out of place
Since theorists have the whole thing cut-and-dried,
Then bygone signifieds still leave their trace.

Behold those structures crumbling apace.
Time-lapse affirms what synchrony denied.
Neat theory, but I doubt it fits our case.

Lacanians think the signifier-chase
Goes on and on, but that idea’s belied
When bygone signifieds still leave their trace.

For we’re the sorts who need to interlace
Times past and present lest they subdivide
And that neat theory retrofits our case
So bygone signifieds can leave no trace.

martedì 10 gennaio 2017

O medo da soberba

Ontem nas margens do Veredinha
falava com Guto da hospitalidade
aquela que as igrejas evangélicas fazem
nas nossas cidades.
Se houvesse uma completa igualdade
não haveria um espaço de acolhida
em que pudesse a hospitalidade se exercer.
E ele me disse: como assim.
pensemos em um exemplo.
Se houvesse igualdade material
todos os que chegassem em Brazlândia
teriam já casa e comida
(cada um tem seu tempo
e o tempo é alguma coisa que é sempre
diferente. Por isso não pensamos
senão em uma igualdade material, e
acreditamos que entendemos o que estamos
dizendo.)
Pois bem, ele retrucou, eu moro no 301
e você no 101, quando você chega na minha casa
você já precisa de um copo d'água.
Mas se a igualdade material for completa
todos sempre vão ter água para beber,
na mesma quantidade,
na mesma condição.
Ah sim, tudo isso é uma fantasia
para entender o acolhimento.
Mas quem vai prover tudo isso
- sim um grande provedor.

Hoje então sonhei: quem seria esse
grande provedor? Uma estrutura burocrática?
Sim, já há funcionários e muitos deles.
Mas não podem fazer isso com perfeição,
isso nunca é perfeito.
Quem disse esses últimos versos?
E no meu sonho apareceu a cara do arquiteto
mouro de Andaluz
que construía pequenas imperfeicões
porque a perfeição é um pecado
de soberba.