O texto da audio-performance de Campina Grande, no Desfazendo Gênero:
Alice (me disse assim:) Antes que ela me contasse sobre o estupro, eu achava que a nossa seria uma longa e duradoura amizade. O tipo de amizade que uma pessoa sonha em ter com outra que conhece na adversidade; debaixo de calor e mosquitos e imaturidades e ameaças de morte. Viajaríamos e nos escreveríamos dos três cantos do mundo. Mas agora havia um esfriamento na afeição que sentíamos uma pela outra. Luna estava começando a ficar ligeiramente interessada em drogas, porque todo mundo que nós conhecíamos estava. Eu sentia inveja da descontração de sua vida. Do suporte financeiro.
Maria (me disse assim:) Vou comentar hoje algo que me aconteceu: Fui apresentar o esboço do meu projeto de monografia, um texto ainda em construção, envolvendo A Cidade das Damas e Maria Bonita. A plateia só de alunos. A única professora é a que me orienta. Foi bem recebido pelos alunos. Eles foram bem generosos. Mas a mediadora fez um comentário tão preconceituoso, que até agora estou me perguntando se negro só estuda negro; mulher só estuda mulher, e, no meu caso, nordestino só estuda nordestino. Ela disse: "adorei te ouvir. Seu trabalho tá muito bom, mas nem precisa perguntar porque você escolheu esse tema; porque você tem todos os traços, a fala e todo o jeito de nordestina! Mas eu quero saber pq vc escolheu esse tema?" A única coisa que faltou ela dizer foi: só falta vc ser bonita. Minha orientadora ficou possessa. O ambiente aqui é hostil se comparado às apresentações que fiz em Ilheus, João pessoa… Se bem, que não consegui terminar Pensamento Negro Contemporâneo porque quando eu ia falar, as cabeças viravam e só faltavam dizer: o que essa branquela sabe sobre negros?!!
James: Era um plano mirabolante mas muito vago. Eu não queria transição. Aliás a maior parte das mulheres reais raramente usam vestido. Eu não me achava trans. Eu só queria usar vestidos. Aí a Nicole apareceu. Ela se sentava seu rabo no meu colo e eu me ficava com o peru duro e dizia, talvez essa coisa de autoginefilia é só uma coisa de criança e agora eu poderia ser um homem. O que parecia de muito mau gosto. E depois, como eu ia conseguir vestidos? Não poderia encomendar vestidos, como eu saberia os tamanhos? Eu tinha que ter minhas medidas. Mesmo se eu apostasse que meu tamanho era grande, eu poderia ter a maior decepção do mundo ao testar essa teoria.
Patrícia: Eu não posso falar no meu nome. Minha palavra está quase sempre no armário. Minha palavra. Meu rosto está no armário. Meu corpo é abjeto demais para poder ter uma opinião. O que vocês querem que eu faça? Que eu me retire como uma aberração e deixe o palco para os brancos, os cis, os hetero, os disciplinados? Ou querem que eu tenha razão? Pois eu quero ter razão nisso: tenho palavra, desconfiem vocês ou não, e não vou deixar ela no armário. Não vou deixar que meu corpo se cale. Minha voz ela mesma afeta, distorce, retorce, desarma e atormenta a inteligibilidade dominante. Nem é o que eu falo, é que eu fale. Eu tenho que falar. Mesmo fora do lugar.
James: Mas porque ela insiste que eu sou como ela? Deve ser alguma coisa que meu cérebro errado não consegue pensar. Ela diz que sabe do que está falando, mas por que ela sabe que está falando por mim? Os corpos estranhos não são lugares, são faltas de lugar e faltas de lugar não são lugares. Eu escuto o que ela diz, ela diz que quer me ajudar a ser o que eu sou. Se ela tiver toda essa heroína que ela diz que tem…
Alice: Essa é a “história”. Ela tem um final “não resolvido”. Talvez porque Freddy Pie e Luna ainda estejam vivos, como eu. Contudo, uma noite, enquanto conversava com um amigo, eu me escutei, dizendo que eu havia, na verdade, escrito dois finais para a mesma história Eu digo que se nós vivéssemos de fato em uma sociedade comprometida com o estabelecimento da justiça para todos (“justiça”, neste caso, compreendendo o direito igual à moradia, educação, acesso ao trabalho, adequado tratamento de dentes, etc.), colocando, portanto, Luna e Freddie Pye na correta relação de companheiros, então os dois se esforçariam juntos para compreender o que o estupro dela por ele significou.
Gropius: Agir com desconfiança é cuidar da própria pele––nos enredamos em novelos de desconfiança para tentar salvar nossa própria pele. A desconfiança estreita nosso campo de ação; constrói uma mentalidade defensiva; com esta mentalidade procuramos alguma coisa que seja nossa e cerramos fileiras para defendê-la. Tipo um grupo, uma raça, uma classe, uma identidade… ninguém precisa ser fiel a grupo algum para estar em uma parceria política confiável. Confiar em alguém é confiar em suas escolhas políticas; talvez não possamos evitar o tortuoso e multifacetado trabalho de manejo das nossas relações de confiança adotando um atalho de identidade. O atalho de identidade é a tentativa de compensar a incerteza acerca da ação das outras pessoas por meio de regras compulsórias associadas aos compromissos políticos da cor da pele, da genitália, dos hormônios sexuais, de sua posição na produção ou qualquer outra catraca. Quando uma militante do movimento negro decide não participar de um ato, uma nova negociação de confiança pode ser necessária–– o atalho seria chamá-la de traidora de sua própria causa. Os elos entre as pessoas podem parecer mais simples se elas estão conectadas por um compromisso natural comum; não parece que precisamos mergulhar nos espinhosos detalhes de como as identidades são construídas nos olhos de quem nos vê.
Alice: Ele me disse que não havia nada demais nos meus dois finais de história. Eu tenho uma visão bíblica da fraqueza humana. Freddie Pye provavelmente estava violentando mulheres brancas por ordens do seu governo. Eu pensei: claro. Mas, Freddie então não tinha nenhuma consciência? Perguntei. Ele respondeu: talvez. E me olhou como se dissesse que eu nunca seria capaz de entender a maldade humana. Mas ele estava equivocado.
Gropius: A confiança não se nutre de checagens e garantias e promessas e testemunhas e obrigações morais ou materiais. Desconfiar é requerer segurança; a segurança pela qual perigamos pagar mais de apólice do que o valor do que queremos segurar. A confiança sobrevive aos requisitos de segurança, e, no entanto, perde um pouco da sua intensidade e sai com a tinta erótica de que é feita arranhada. Subverter não é confiar sempre––em nossa sociedade subverter nem pode ser subverter sempre. Mas subverter parece estar próximo do esforço de criar novos espaços de confiança que, por sua vez, parece que germinam alguns novos espaços de liberdade. Diferentes mapas da confiança podem ser melhor atingidos se espalharmos confiança. Entre diferentes, as relações de confiança dão mais trabalho: não há alianças naturais, não há inimigos comuns que estabelecem a agenda, não há regras insinuadas pelo corpo. Cada relação de confiança surge com suas diferenças: não há atalho. Instituir uma ação pelas diferenças não pode ser, contudo, ignorar que as identidades são o instrumento do mestre; que o nosso regime de supremacias discrimina grupos de identidade em favor de outros e que este é um instrumento que contribui constantemente para deixar a casa em pé. Mas confiar não é deixar as casas prontas; confiar é confiar. Não deixa nada pronto. Oxum é sábia e não precisa de hidroelétricas.
Curucu: O desejo é que subverte. Quem deseja o que não se deseja inventa. Desejo é invenção, mesmo quando tenta ser simulacro e passar despercebido como mais do mesmo, mais do que mandam papai, mamãe e a pornografia oficial. O desejo que subverte ainda mais é o desejo dos outros. O desejo sem os outros fica no horizonte do meu próprio desejo. Nada mais que o mesmo, do mesmo acerca do mesmo. O melhor é o desejo interrompido: o sexo das outras. Quem sabe o desejo das outras é o macho que sabe o que a mulher quer – e a mulher que deseja o que ele quer que ela deseje porque sabe o que ele quer. Esses acoplamentos são o mito fundador da ordem heterocispatriarcal. Mas fora desse mito, não tem acoplamento. O desejo das outras é o que ninguém sabe. Mas quem vai falar por nós, pelas bichas, pelas travecas, pelas trans todas? Uai, eu falo. Lugar de fala. Isso sempre me parece arma de guerra: falar em nosso nome. Mas a guerra é necessária. Alguém tem que falar em nosso nome, gritar, abrir espaço.
Manuela Dad: Nem tudo é guerra. Há também política. Em guerra, não podemos confiar nos homens. Eles não podem ser feministas. Mas em política, há o espaço da blasfêmia. Eu chamo de blasfeminismo. No espaço da blasfêmia, feministas são os homens, e só os homens podem ser feministas, porque só eles podem ir contra si mesmos, contra um sistema que é feito para eles. O filho do milionário de Pocilga que vai dormir com os porcos, ele faz política. Até mais do que os filhos dos operários, que fazem muitas vezes só guerra. Política é conversão, contágio, contaminação. Política se faz com guerra também, mas política não é só guerra. Os homens, só eles, podem abandonar seu lugar de fala machistas. Quando abandonam, quando são interrompidos é que fazem política. Gosto quando as mulheres trans se unem e falam em uníssono, me sinto numa trincheira pelo meu corpo, pelo que eu quero. As pessoas cis não entendem muita coisa – mas quando entendem, entendem interrompidos. Gosto desse momento em que não somos só egos maciços. Se formos sempre egos maciços, para que política? É só guerra, cada um em um quadrado e quem tem mais força prevalece. E, na guerra, as pessoas cis vão sair ganhando. As pessoas cis transfóbicas apenas se defendem, como os homens machistas apenas se defendem. A política começa com os outros. O que me interessa são as pessoas cis que não se defendem a si mesmas, por que aí há um projeto de futuro: quando eu deixar de ser nós e virar os outros. Não há política quando eu mesmo sigo sendo eu mesmo – e faço uma trincheira para isso.
Monique Pru: Não há lugar de fala. Há quem fala, e quem não consegue falar porque está sempre fora do lugar. Se ninguém sair do seu lugar, nunca nada vai deixar de ser como é – gente falando por si mesmo, pelos seu corpo, pela sua história. A fala pode ser interrompida. Mas o lugar de fala é como uma tatuagem, não sai, não importa o que você fala.
Equus: Eu fui arrastado para uma discussão sobre orientação sexual como uma opção. Se fosse uma opção, muitos se sentiriam liberados do que parecem prisões, sociais, genéticas, o que for. Mas o que significaria uma orientação sexual que fosse uma opção? Se preferências sexuais são entendidas como mais ou menos fixas, podemos supor que a opção fosse tomada mais ou menos de uma vez por todas, ou pelo menos não todos os dias, porque se fosse tomada todos os dias não se poderia falar de uma orientação. Então, a opção seria algo que permanece, que não se pode mudar (muito), mesmo que tenha começado com uma opção. Mas como seria este cenário? Ele envolveria mais autonomia: nós seríamos imunes à sedução do resto do mundo, deixaríamos de estar abertos ao cosmos por meio da estrutura mesma do desejo. A falta de autonomia é o que traz a falta dessa imunidade; a falta de imunidade deixa o desejo capaz de interromper. Sem interrupção, estaríamos cada um no seu quadrado, seguindo suas determinações, por mais escolhidas que tenham sido. Se orientação sexual fosse opção, estaríamos seguindo ordens, todo o tempo – ordens de nós mesmos. E nada no mundo interromperia esta disciplina. Seguir ordens, talvez do nosso próprio corpo. Mas se o meu corpo é uma exceção, uma clinamen, um desvio – bem, não há mais ordens para seguir; nem há verdade alguma entre meus hormônios, endorfinas, estrogênios, testosterona, intensidade e músculos. Não há nada de organizado, nem sequer um carrossel de substâncias químicas carregando verdades.
Curucu: Lugar de fala não é invenção, invenção é falar do lugar dos outros. Os outros me interrompem, paralisam minha agenda e então eu tenho que decidir o que fazer, tenho que inventar o que fazer. Eu não posso mais na minha agenda, minha agenda foi ferida. Ferida da agenda dos outros. Aí começa um processo muito diferente, um processo onde eu não sou mais apenas uma voz, sou também ato falho, engasgo, porque tenho uma fragmentação. O que posso fazer pelos outros? Não tem limite. Posso entregar minha vida. Na minha vida é onde há política. Na minha agenda interrompida.
Emmanuel: O lugar de fala é um grilhão, uma cadeia. Parece que minha aderência ao meu corpo é completo, eu apenas falo em nome dele. Falar a verdade é aceitar a servidão, aceitar que estou preso, que não posso falar senão aquilo que meu corpo manda. A verdade está toda dentro de si, basta aceitar o evangelho do seu próprio corpo que a verdade transparece. A verdade é apenas minha sinceridade, a sinceridade do meu lugar. O lugar de fala é uma cadeia, um campo de concentração. Ou pior, é o trem de passageiros que passa pela estação de Auschwitz. É cuidar da própria vida. Eu não me importo com essa verdade. A justiça não a atravessa. A justiça não a interrompe. Só quando a verdade para diante da justiça – o lugar da escuta, da escuta de quem pode ter a certeza, o consenso, a verdade – é que surge a responsabilidade e, com ela, a invenção, o investimento da liberdade.
Tazlo: A fala desde um lugar de fala é um grunhido. Mesmo que seja um grunhido sufocado, quase calado. Não basta que ele seja amplificado, ele tem que ser ouvido. Amplificar alguns lugares de fala é um atalho para não ter que escutá-lo. Mas é um atalho que perde o processo no caminho.
Aline Valério: O lugar de fala é meu ponto de partida, como minha casa, o lugar de onde saímos. Uma casa não é uma prisão. Mas uma casa que se torna um destino – origem é destino – se torna uma prisão. Eu quero que se foda de onde eu parti. Minhas palavras elas mesmas é que tecem, e meus atos, e meus desapegos. Minha casa é só minha casa, não é um grilhão. Não é uma prisão. Eu começo a pensar do meu corpo, mas meu corpo ele mesmo não tem limites, começa na minha pele e se estende até os confins do que não tem fim. E é interpelado por muita coisa. Demandado. Ele sofre irrupções. Lugar de fala não é o grunhido do corpo, é uma perspectiva.
Michela: Ela me diz que eu sou bonita, que eu tenho talento, que eu tenho o lance do palco, a presença… que eu deveria estar lá no palco ao invés de deixar este espaço para os brancos que são todos cis, todos confiáveis. Quem é ela para dizer o que uma mina negra trans tem que fazer? Quem é ela? Branca. Cis. Quem é ela? Ela quer ser minha agente, ela que ser minha promotora? Eu não preciso da opinião dela. Acho que ela deveria se calar. Ficar em silêncio, com seus privilégios.
Jota: Muito se fala sobre como o lugar de fala tem sido apropriado de modo a conceder ou não autoridade para falar com base nas posições e marcas políticas que um determinado corpo ocupa num mundo organizado por formas desiguais de distribuição das violências e dos acessos. O que as críticas que vão por essa via aparentemente não reconhecem é o fato de que há uma política (e uma polícia) da autorização discursiva que antecede a quebra promovida pelos ativismos do lugar de fala. Quero dizer: não são os ativismos do lugar de fala que instituem o regime de autorização, pelo contrário. Os regimes de autorização discursiva estão instituídos contra esses ativismos, de modo que o gesto político de convidar um homem cis eurobranco a calar a boca e pensar melhor antes de falar introduz, na realidade, uma ruptura no regime de autorizações vigente. Se o conceito de lugar de fala se converte numa ferramenta de interrupção de vozes hegemônicas, é porque ele está sendo operado em favor da possibilidade de emergências de vozes historicamente interrompidas. Assim, quando os ativismos do lugar de fala desautorizam, eles estão, em última instância, desautorizando a matriz de autoridade que construiu o mundo como evento epistemicida; e estão também desautorizando a ficção segundo a qual partimos todas de uma posição comum de acesso à fala e à escuta.
Tazlo: Mas é precisamente isso que se quer: o lugar de escuta. Ou ainda, o lugar de resposta. Como chegamos no lugar da resposta? É preciso que uma palavra seja uma palavra, que não seja um silêncio ruidoso. É a palavra que fala, é ela que desmonta a ordem epistemológica hétero, cis, branca, masculina. Mas ela fala para uma escuta. Para uma resposta. E a resposta está cheia de contingência, ela é o infinito de uma dívida. O infinito de uma dívida. E uma resposta.
Jota: A questão ainda não é sobre "quem", mas sobre "como". No limite, o que vem sendo desautorizado pelos ativismos do lugar de fala é um certo modo privilegiado de enunciar verdade, uma forma particularizada pelos privilégios epistêmicos da branquitude e da cisgeneridade de se comunicar e de estabelecer regimes de inteligibilidade, falabilidade e escuta política. Não é que brancos não possam falar de racismo, é que eles não poderão falar como brancos: isto é, como sujeitos construídos conforme uma matriz de produção de subjetividade que sanciona a ignorância, sacraliza o direito à fala, secundariza o trabalho da escuta e naturaliza a própria autoridade. Isso significa também o fato paradoxal de que eles não poderão falar como se não fosse brancos, isto é: apagando as marcas da própria racialidade e agindo como se os privilégios da branquitude não fossem coextensivos aos sistemas de opressão das vidas e vozes não brancas.
Lucci: Falar de lugar de fala traz a necessidade de dar oportunidade para que possam ser escutados os que até então foram humilhados, tratados com negligência pelos sujeitos políticos, ignorados. Nunca neguei a importância do debate. O problema é que, quando se torna não só importante, mas fundamental a questão da identidade de quem fala, incorre-se numa verdadeira despolitização do debate. A autoridade do locutor se exerce pela forma, não pelo conteúdo. Se exerce pela aparência, pela identidade, que muitas vezes não acompanha o domínio do tema. É preciso honestidade e, principalmente, responsabilidade de quem quer falar pelo coletivo, assim como exigimos honestidade e responsabilidade dos que sempre tiveram a fala assegurada em base ao privilégio racial, patriarcal, hetero-cisnormativo.
Além disso, é preciso lembrar que o locutor sempre terá um interlocutor. Assim, se o objetivo da fala não é simplesmente falar aos seus, falar a quem já está do seu lado, essa fala precisa ser feita pensando em como melhor atingir o sujeito à que se objetiva chegar. É preciso que seja estruturada, também, sabendo que interlocutores não são meramente passivos, são pessoas que vão querer expressar discordâncias e que, se forem feitas de forma respeitosa e sensível, precisam ser consideradas.
Jota: A noção de saberes situados precisa começar a servir para que pessoas brancas se situem de sua branquitude, pessoas cis de sua cisgeneridade, e por aí. Quero dizer: o modo como essa categoria entrou na nossa vida acadêmica e política acabou por refazer os mecanismos de hipervisibilização da experiência subalterna, criando um lastro para que a posição de politicamente oprimido fosse, enfim, narrável como uma forma de conhecimento. O problema fundamental disso é que, por meio dos saberes situados, aprendemos a falar de como o mundo nos fode, de como as relações de poder nos precarizam, mas não abrimos a possibilidade de situar-nos também em nossos privilégios, em nossos modos de estender a duração da ruína que é este mundo. Quero dizer: nos últimos anos temos tido a chance de aprender a falar sobre os efeitos de subalternidade que envolvem nossa experiência com o mundo, mas infelizmente esse trabalho não foi coextensivo ao de revelação dessas posições de poder cujo sentido da existência é inseparável da reprodução de regimes subalternizantes. Por isso o conceito de saberes situados acabou se limitando a reproduzir a hipervisibilidade da posição subalterna como objeto discursivo, sem criar condições para que, ao situar-se, os sujeitos posicionados em relação de privilégio perante a cisnormatividade, a heterossexualidade e a supremacia branca fossem capazes de perceber a própria posição.
Emmanuel: Se todos forem fiéis à verdade de sua anatomia ou de seu registro corporal, não teremos mais os infinitos ecos pairando no ar, só vozes fiéis. Há uma indignidade na fidelidade a si mesmo. Para quem pode ser interrompido, para quem não está à beira da inanição pelo menos. Minha própria voz é alheia, é a consagração da minha separação e da minha soberania e do meu domínio – da minha vontade e capacidade de encontrar para mim mesmo um lugar ao sol. Mas ter um lugar ao sol não é justiça, é ter um lugar ao sol. É ter um espaço onde minha liberdade não fica investida, não responde.
Alúrio: Sexo. Tem a minha vida sexual e tem a vida sexual dos outros. Dos outros, das outras, des outres. Se o sexo é acoplamento entre um lugar e outro lugar, não tem interrupção. Tem coreografia de anatomias ou de destinos. Mas sexo nunca é isso – ainda que achamos que deveria ser, que poderia ser, que para algumas pessoas é. No meu caso, tem o meu prazer e tem o prazer de quem está comigo. E aqui tem fala, tem escuta, tem resposta. Não tem lugares. Tem troca de lugares, de posições, de cheiros, uma coreografia de respostas e de interrupções. A erótica da política não pode ser hetero. Não pode ser patriarcal. Ela é de contágios, de muitas vozes, todas se interrompendo. É o patriarcado que trepa com lugares definidos, que traz o poder pra cama, que tira a roupa e não faz sexo, faz gênero…
Patrícia T: Não sei se eu gosto ou não gosto. Mas é importante porque sempre houve tutela sobre certas vozes públicas, por isso a noção de “lugar de fala” é central para a insurreição feminista. Gosto da atitude do Não Fale De Mim Sem Mim. É um grupo de pessoas postas de lado pela vida da cidade e eles dizem: não me façam de tema, eles dizem, venham conversar comigo; não dizem parem de falar, dizem, venham conversar comigo. A conversa é a interpelação mútua das vozes – e a conversa é bastante difícil.
Duda Milonga: Lugar de fala é uma herança da ideia de que a consciência tem uma voz. É uma ideia antiga, a ideia da voz que ela mesma é justa. Uma ideia patriarcal, monoteísta, monofônica. Depois tem a consciência de classe: toda uma classe com uma só voz. Mas a consciência não tem uma voz, talvez tenha um ouvido. Ou se tem uma voz, é a voz que não sai da sua boca, que reverbera em seu tímpano. A consciência da classe operária não é uma voz da vanguarda, é estar com os ouvidos cheios da voz do patrão – a mesma voz na igreja, no emprego, na rua, na escola, na família. Não estou pensando no lugar de fala como representação em oposição às muitas falas de todos os grupos, mas estou falando da escuta. A política é uma questão de afinamento, de audição, de ouvir o som ao redor.
Aline Valério: O lugar de fala é um exercício de espectrologia – é uma estereoscopia: ouvir o que se fala e ouvir quem fala. Toda fala tem um significado porque tem um locutor e tem quem ouve, é uma interlocução. Uma voz se torna outra voz depois que uma segunda voz é ouvida. Ninguém ouve mais Gloria Steinem do mesmo modo depois de ouvir Patricia Hill Collins, depois de ouvir Julia Serano, depois de ouvir Laverne Cox. É uma interlocução, e quando se conversa sabemos de onde vem a voz. Uma voz interrompe outra, e vem de um lugar. Nenhuma fala é um relato, todas são discursos. Mas os discursos precisam ser ouvidos. E os ouvidos tem vozes.