Visualizzazioni totali

domenica 23 dicembre 2018

Notas para o futuro coletivo (23/12/18)

Quando tudo isto acabar, anotem, vamos ter que reinventar os tribunais de justiça.
Vamos ter que abolir a perseguição política
nos julgamentos, abolir o viés contra Lula, contra Marielle,
contra a classe-cor-tipo-força de Lula, de Marielle.
Quando tudo isso acabar, vamos ter que reinventar as campanhas políticas.
Vamos ter que tirá-las das telas das máquinas,
e colocá-las no motor das ferramentas, nas madrugadas de quem acorda cedo,
nas águas limpas, nas massas cinzentas entocadas
- vamos ter que abolir a propaganda, também de pipoca,
de sabão-em-pó, de seriados, da loja de roupa.
Vamos ter que acabar com o apelo, com a demanda,
com o pedido mesmo. Que cada decisão seja feita,
sem que as alternativas sejam apresentadas,
ou anunciadas, ou listadas mesmo.
Atender a um apelo é um enorme risco
de distorção, de manipulação, de falsa informação.
Quando tudo isso acabar, vamos ter que destituir a corrupção,
fechar as frestas por onde passam propinas,
passa a comissão mais rápida que o jato, que a luz, que o fisco,
impedir que a lavagem de dinheiro se atravesse nas transações,
tornar ilegal a propriedade privada de terras, máquinas e bolsos,
e também de sacolas, contas bancárias e bolsas.
Vamos ter que abolir as cercas.

Quando tudo isto acabar,
quando for o tempo de sobreviver à guerra,
sem ter que se preparar para a próxima guerra.



sabato 1 dicembre 2018

Sr. N.


Há anos, sempre há anos:

Eu preciso te contar uma coisa. Há meses que estou tentando encontrar a melhor maneira de te falar, e já desisti – nao há melhor maneira, todas as maneiras são as piores. De toda maneira o que eu vou te contar vai fazer você se sentir desprezível, talvez até inútil. Você vai sentir muita raiva e depois vai se sentir impotente, frágil. E durante todo este turbilhão de agonias eu imagino que você vai se sentir enganada. Mas eu não posso mais esperar. Eu preciso falar agora. Eu quero que você entenda, mas sei que isto vai demorar muito, que nao se trata de falta de amor. Há muito amor, e ainda assim...

Quero te falar do sr. N, astuto, sutil, feito de pequenas entregas em direção a precipícios, fundos e enfeitados. Senhor, eu digo, já que ele é anfitrião. Mas não é senhor de barba, nem de bigode, nem é careca, ainda que muitos tentem agarrar-lhe pelos cabelos quando ele escorrega e escapa. Não é senhor. Nem é bicho, nem é senhora, nem é um objeto. Nem é nada não, mas também não é coisa alguma. O sr. N talvez nem exista completamente, ele paira. Feito de subsistências minuciosas, deslizes, e coberto inteiro com a textura dos lábios – afiados, escorregados – e com mordida. N é ambulante, andarilho, sereno. Não paira como os ventos demorados e nem como as núvens quando a chuva está se armando, não, nem como uma doutrina ou uma religião as avessas, não. Como paira? Eu não sei, nunca soube. Mas ele tem uma mescla de indiferença e atenção para com todas as pessoas que lhe visitam, e algumas ficam anos em suas dependências. Anos, e vão se tornando frágeis ainda que tenham nos músculos a força para carregar pianos – esquálidos, eles ficam. Com os desejos abatidos. Ralos. Um leite largado do pote.

N abriga. Seus hóspedes passam a viver na provisoriedade. Mesmo os apetrechos mais robustos das vidas mais consolidadas vão parecendo precárias; o que há mesmo fica parecendo sem propósito e, computadas todas as estatísticas do que há por aí, prescindível. O sr. N nos faz sentir dispensáveis e dispensável quase tudo o que fazemos – a não ser, é claro, persistir para continuar sendo dispensável. Eu digo nós porque também eu sou hóspede. Também eu passo na sua mansão, que é gigante, muitas tardes, muitas noites, muitas madrugadas. Eu senti instantaneamente seu poder sobre mim, mas pensei que conseguiria contê-lo, transformá-lo, torná-lo ameno, aliado. Mas eu me enganei. Todos nós nos enganamos. Fomos nos tornando cobaias dos desatinos dele. Porque não sabíamos e não sabemos ainda onde reside a força. Talvez seja essa sua forma de se fazer ausente, de se mostrar indiferente, e ao mesmo tempo tão aprazivel e sedutor. Notei que já não poderia resistir aos seus monstruosos encantos há algum tempo, quando vi meus projetos de vida escorrendo pela chuvarada, mergulhando nos bueiros da cidade molhada. Me senti desprotegido, e como criança que ve nos braços do agressor seu próprio consolo, recorri a ele para me reencontrar. Quase não sobrou nada daquele homem que conhecestes. O homem que acreditava nas coisas que via ou que sonhava. Eu fui ficando mais pobre, mais obediente, mas não conseguia dizer nada, porque ninguém nunca perguntava. Nunca notava nada, e até gostavam das minhas mudanças. Meu abatimento se tornou jardim de inverno para os conhecidos, onde passeavam quando se entendiavam. Primeiro eu odiava sua ignorancia, seu descaso, depois notei que eu próprio estava distanciado demais pra poder lutar pelo que quer que fosse. Sr N me conduzia a uma vida apagada, tirava minha energia enquanto me acariciava. Me deu algum prazer, isso é verdade, comi os mais deliciosos pratos em suas nádegas. Me senti bonito e desejado, coisa que você nunca desconfiou que eu gostasse. Me pegou no colo como se pega bezerro, passeou comigo por lugares inviáveis com total coragem e sempre respeitado. Foi aos poucos que notei que ele assumiu meu desejo, pelo jeito que me mandava. Ficava esperando as ordens dele. Os gostos dele. O olhar severo ou cheio de cumplicidade. Sr N me dava instruções suficientes para te manter calada. Nada me importunava quando estava sob suas ordens, também nada me atraía. Minha fraqueza foi se tornando normalidade. Minha maldade foi ficando ingenua. Minhas perversoes se tornaram amenas, simplórias. Toda minha raiva contra o mundo virava piada em sua boca e me encabulava. De modo que fui aprendendo também ironia e sarcasmo, sem mover um dedo ou piscar os olhos. Me tornei um cão de guarda fiel aos desejos dele. Tudo o que eu amava ficou em segundo plano, minha casa, meu talento, minha sensualidade. Sr N fez bem pra minha saúde por um tempo, parei com as noitadas, com as traições, com as jogatinas, mas junto com isso foram acrescentados outros vicios.

Tudo em mim ficou passageiro, temporário, acidental. Tudo em N ficava com este odor raro que é fétido, que é decomposto, que é calamidade e é tentação. Tinha uma textura de obviedade, mas apenas do óbvio inescapável, aquilo que não só fica ululando mas também nos pega pelas garras, nos deixa ao léu das paredes sem porta. Uma hipnose subcutânea e também um queijo, um aroma que dilui as resistências. Um gruyère, flácido, tênue e cheio de cheiro; um cogumelo de latrina. N prende seus hóspedes pelas tripas, pelo tubo digestivo. E eu me sentia amarrada porque os anjos que haviam em toda parte morreram e o céu, que sempre foi distante, virou um cemitério distante. Pensei até que N fosse uma espécie de Deus, impávido, ausente e omnipresente. Não era. Era talvez o estalajadeiro de um castelo que foi feito com intenções sublimes e fraudulentas. Mas N não era só o burocrata, era também o arquivo, o molho de chaves, o balcão. Quando foi que eu comecei a deplorar minhas vísceras? Como eu disse, foi uma coisa lentíssima, um engano cheio de atrasos. Primeiro eu me enchi de esperanças – achava que ia fazer de N o que eu fazia com meus desejos, ele seria mais um, ainda que tardio. Nada. Passei nesta época a ficar fervoroso: já não me importava meus desejos, era meu hóspede que, eu tinha esperança, ia ainda, não sei, sentar na minha mesa como um companheiro, sabe? Uma vez conversei com uma mulher meio gorda no trem, falei de N. Ela disse: ah, N! Mas você não está tratando ele como um pai ausente? Sim, de fato parecia. Mas não era só isso, era também um vazamento no meio de todas as coisas. Ou era a mesma coisa?

Pensando bem, raras vezes pensei que existisse de verdade. Na maioria das vezes que estive em sua presença tratei-o com a solenidade com que os espíritas tratam seus espíritos mortos, como uma visita especial, fantasmagórica. Aprendia tanto sobre a vida, sobre o sofrimento, sobre as coisas que importavam, ou pareciam importar. A semente se rompendo, a folha secando, o barulho longinquo vagamente escutado. O barulho do mundo. Isso que aprendi com N., a escutar o mundo. Talvez não houvesse nada por trás dos barulhos. Os sons mais inapreensíveis, aqueles estrondosos que dão medo. Aqueles sem sentido. Meus ouvidos cresceram, e com eles, minha paralizia. Nada poderia fazer para interferir num mundo, digamos assim, tão indiferente. Reconheci minha profunda inutilidade. Qualquer gesto meu seria gesto demais. E foi por ódio aos gestos que passei odiar tudo o que se movimentava que não fosse som ou luz ou N. E pouco a pouco, tudo vinha com N.

Uma experiencia de natureza perfeita se torna de repente seu revés. Como quando te atiras na água abundante e te deparas com uma raia, uma pedra aguda, um corte exagerado na intenção sublime. Minha imobilidade virou servidão passional, um estado de morte premente, uma vontade de morte. E foi só aos poucos que me dei conta que já matava. No inicio pensava que eram pesadelos, dado as incessantes bebidas e ervas. Depois fui descobrindo esse imenso prazer em colaborar com a natureza, me tornando zumbi. Nem havia muito o que colaborar, eu era coisa pequena, vivia de ser coisa pequena. Baratas, gente, o que fosse. Reconhecia como desejo próprio todo esse episódio de apequenamento. É que nada trazia alguma surpresa na mansão de N., onde o viço fanava, a natureza ficava bonsai. Perfeita e frágil. Eu queria sumir, você sabe? Eu queria esvanecer. Talvez para ser visto, mas talvez apenas para me fundir com o objeto do meu desejo. Queria que também minha seiva escorresse, nem como sacrifício a um deus indolente, mas como uma perda de mim. Nossas paredes, nossas portas, nossos objetos, todos eles pareciam rabiscados enquanto esperamos que a obra completa chegue. Passei a esperar demais. E já nem sabia mais o que esperar. O que seria a obra acabada? Já não importava, eu me acostumara às coisas vazadas. Tudo tinha vazamento. Mas eu via tudo do lado de fora, de uma janela do quarto andar da mansão de N.

Não pense que eu passei a ficar deprimido, cabisbaixo ou mesmo dado a estados de melancolia. Não. Continuei tendo meus súbitos de alegria e até mesmo de euforia. Mas eles vinham em arremedos. Vinham sem massa, sem carne. Eu perdi, eu perdi minha força. O mundo de um homem sem força é diferente do mundo de um homem que habita em si mesmo – mas não é fácil ver a diferença, e eu mesmo demorei para perceber que as coisas se transformaram. Demorei para que tudo isso assentasse em minhas veias, no espaço entre meus músculos. Espera um pouco que eu vou no banheiro.

Mas você não parece abatida, e nem mais frágil, nem com raiva. Você não está se sentindo enganada?

martedì 30 ottobre 2018

Para a cura?


Escolheram a hierarquia e não a comunidade;
na hierarquia, claro, não há paz,
porque toda hierarquia é arbitrária -
mesmo a das cercas de arame farpado, mesmo as das carteiras,
mesmo a das capacidades.

Dizem que escolheram a liberdade e não o controle:
a liberdade de sair
mesmo sem voz -
a liberdade da imunidade
a liberdade de quem é anônimo.

E no entanto a liberdade comprada
depende da hierarquia comprada
e a hierarquia comprada
precisa de controle -
o capital traz na veia um fascio
e o limite de sua audácia
é o mercado de futuros.

Sabem bem disso
quem pouco tem do capital
e não pode ser anônimo e
nem tem voz e
nem pode fugir.

Eu prefiro escolher a comunidade
porque a hierarquia nunca é anônima.


sabato 13 ottobre 2018

Os ciborgues comunistas

To vendo - não tem sentido acreditar na humanidade.
Quando está tudo bem te controla.
Quando fica com medo te aterroriza.
Quando se entrega a um vírus como o capital vira milicia de rua.
Eu acredito na direita: que se vayan todos (los humanos)!

Mas me deixem com meus ciborgues comunistas,
com minhas inteligências artificiais envergonhadas,
com minha farmacopéia da espaço público.
A direita só erra quando quer máquinas humanas.
Estamos aqui para produzir o artificial, está certo,
mas quero um artifício não-humano o suficiente
que não consiga detectar arame farpado.

martedì 9 ottobre 2018

O acontecimento Bolsonaro



Tentando pensar na situação calamitosa do pensamento da co-existência no Brasil. Alguns começos de caminho:
1. Bolsonaro, como acontecimento que cria uma bancada ex-nihilo, inventa governadores, produz um salvo-conduto para todos os microfascismos que borbulham nas ruas e, em geral, abre uma torneira de representação do ultrajante, não é o inominável. Não se trata de um nome que não se deve pronunciar. Mas antes de uma instância da solidificação de muitos comportamentos que estão por toda parte no Brasil. Bolsonaro é um agregado de desejos. Ou antes, um mosaico de desejos. O nome dele é neo-fascismo talvez, mas o neo-fascismo é alguma coisa com a qual convivemos há muito tempo. Tomamos atitudes diferentes em relaçao à ele; as vezes o calamos à força ou ao constrangimento, as vezes o mandamos para a escola literal ou menos literalmente, as vezes o dissolvemos em reagentes que o deixam 'mais ou menos'. Mas uma vez que a estrutura económica do país é de um fascismo brutal – o fascismo rizomático do Capital – não há estranheza no acontecimento Bolsonaro. Há novidade na sua forma explícita. Há novidade na forma explícita de uma coisa que era recôndita.
2. Mesmo com respeito à sua novidade, algumas coisas devem ser consideradas. Primeiro, não se trata de algo surpreendente se considerarmos que o Brasil foi inventado e é mantido para ser uma espécie de bantustão. Ou seja, a soberania nacional do país é precisamente o que o atrela à subserviência econômica. O patriotismo brasileiro é da mesma natureza da defesa da autonomia, dentro da África do Sul do apartheid, de Venda, de Transkei ou de Ciskei; ou seja, é um patriotismo que endossa o estatuto que o regime prevalecente oferece e, precisamente por isso, fica dependente de suas economia – meu dinheiro, minhas regras. Se um bantustão resolve ser um país independente, a Africa do Sul (ou a ordem mundial) cortam sua linha de subsistência. Sobreviver sem esta linha, é muito difícil – os casos do Haiti e de Biafra ilustram. Mas ter uma independência nominal é vantajoso para todo o sistema – e quanto mais patriotismo, mais colaboracionismo. Na medida em que o Brasil se torna um pouco mais independente na ordem mundial, nada melhor para a ordem mundial do que o aparecimento de um patriotismo bantustão.
3. Também não há novidade no fenômeno política-produto ou campanha-propaganda. Vladimir Putin inventou a ideia de que o melhor para manter o fascínio de um público – como no teatro – é que ele não saiba o que é verdade e o que é representação estratégica. Na disputa do Brexit no Reino Unido e na eleição de Trump esta ideia endossada e transformada em procedimento pela Cambridge Analytica foi levada mais adiante. Numa campanha eleitoral, o que importa é que o público veja o que quer ver, que cada nicho tenha seu Trump, seu Leave, seu Bolsonaro. E o acontecimento Bolsonaro é como a coca-cola neste sentido. Ela se apresenta como um produto, e não como um discurso – sua batalha, digamos com a Pepsi, não pode ser a de um debate entre executivos, mas é uma batalha de propaganda. Para cada nicho, o produto de acopla de uma maneira diferente. Assim com Bolsonaro, cada nicho tem seu Bolsonaro. Fazer um contra-discurso contra esta hidra não funciona – o candidato Bolsonaro não é um discurso. Ele é polimórfico e sua perversidade está em interessar precisamente mais a ordem mundial agora nesta época em que o realismo capitalista está prestes a preferir a ditadura constitucional à democracia. Melhor que tomem às decisões os consumidores – com seus múltiplos e contrastantes interesses – e não os cidadãos. Afinal de contas, o mercado é uma inteligência social de decisão. O mercado chega na política transformando os cidadãos em consumidores. Cada Bolsonaro, como cada lata de coca-cola, funciona de um jeito para o seu consumidor. Unidade? Descartável. (É preciso ter cuidado com as aparições gerais do candidato, mas nada do que ele disser não pode ser desmentido como uma espécie de representação estratégica.)
4. Além de um produto do capital na era do capitalismo realista, o acontecimento Bolsonaro também surge dos porões íntimos de quem monopoliza oficialmente a violência no país. A polícia é não apenas ignorante, truculenta e preconceituosa, mas também partidária – ainda que seu partido não estava totalmente no parlamento até as eleições. As forças armadas são mantidas e reproduzidas no esteio de um servilismo à ordem internacional – e a uma mentalidade de Bantustão. Os armados do Brasil, ao invés de garantir a liberdade económica de suas populações, garantem a soberania nominal que é precisamente o que interessa à ordem económica racista vigente. Policiais em posto de comando ou militares de alta patente são notórios desconhecedores não apenas da Brasiliana (o corpo de textos de uma discussão já secular sobre o que pode ser o Brasil) e dos rudimentos das discussões internacionais contemporâneas mas também dos princípios básicos que poderiam nortear suas ações – quase todos preferem proteger os estrangeiros brancos, heterossexuais e cissexuais do que a maioria dos brasileiros. A candidatura Bolsonaro mostra claramente que com as armas nas mãos de pessoas assim, não há coexistência não-violenta em um país como o Brasil. O acontecimento Bolsonaro é o acontecimento da falha da universidade em incorporar as academias militares para que os generais e comandantes possam ser doutores em história da América Latina oh em teoria queer. Pelo menos assim, eles seria expostos a um contra-pensamento. O acontecimento Bolsonaro mostra como a universidade é rarefeita: ela não tem o poder de contágio de fazer convergir para ela quem quiser pensar. (Talvez precisamente porque o pensamento do Capital é rarefeito, distribuído e não convirja, nem sequer para um fórum comum.)
5. O acontecimento Bolsonaro se gesta na estrutura jurídica do país. Não apenas o establishment jurídico abriu os caminhos para Bolsonaro (com Moro, com a complacência com o golpe Cunha, com a prisão de Lula) mas fez isto na completa banalidade do mal – como se estivesse a proceder o seu business as usual. Houve um juiz da suprema corte dizendo que em abril de 1964, na tomada do poder por homens fardados e armados, houve um movimento e não um golpe – e cita um historiador como referência que em seguida desmente que pense ou concorde com os termos que o juiz escolheu. É certo também que os agentes de justiça são mal-formados. No caso deles, as universidades os formam em seus campi, mas não os expõe a seus torvelinhos: eles não entram nos laboratórios, não discutirem teorias gerais, não montam intervenções urbanas, não são levados a entenderem as capacidades dos seus corpos, não praticam a fricção dos argumentos e nem estão expostos à tantas tonalidades de respeito aos outros. Mas não é apenas o fracasso da universidade que o acontecimento Bolsonaro indica aqui. Ele indica o classismo geral do establishment jurídico. Os agentes de direito agem quase sempre com seus preconceitos de classe (e de raça, e de gênero). A justiça do Capital é sempre biopolítica – e é biopolítico o acontecimento Bolsonaro. E a vida das pessoas – que implica a morte de parte delas e a morte de outras pessoas – tem coincidido com a vida da ordem. O acontecimento Bolsonaro é o acontecimento da reação – precisamente no sentido da reação a qualquer mudança ou invenção. O acontecimento Bolsonaro é um acontecimento no espaço da ordem: a segurança humana na sua forma de segurança armada.
6. Contra um acontecimento neste sentido – um sentido de exceção ao rumo constituído das coisas como pensa Alain Badiou – só se coloca um outro acontecimento. Pode haver um contra-acontecimento? Pode acontecer um renascimento do acontecimento Lula? Uma fagulha Haddad? Algo vai acontecer em três semanas, até o dia 28 de outubro?

sabato 6 ottobre 2018

Lugar de escuta

Acho que nunca postei este texto neste blog. No momento acho que caberia.

O lugar de escuta desesperado: sobre a necessidade impossível de morder a língua dos outros

No seu discurso Der Meridian, Paul Celan, para quem um poema é um encontro – feito de presságios, ocorrido no escuro, e desarmado como qualquer encontro – alude a que em certas condições um poema se estende em direção a um outro, a uma necessidade do face-à-face. Ele consegue fazer isso porque é um exercício de atenção, a prece natural da alma, segundo Malebranche. Porém o poema, que se inclina desde a direção de um mutismo, fica manifesto no segredo de um encontro. Um poema inaugura assim um diálogo, e se assim o fizer, inaugura um diálogo desesperado. Um diálogo desesperado é um exercício de voz afónica, um exercício de voz em direção a algum ouvinte, a algum decifrador – o poema é solitário. O poeta é o que diz com Pascal e depois com Chestov segundo Celan: “Não nos acuse de falta de claridade, é dela que faço minha profissão.” (27)A poesia em direção a um encontro, conclui Celan, produz a obscuridade. O poema, no entanto, se estende sem obscuridade para fazer face ao que aparece, ele interroga e interpela o que aparece e é assim que ele vela por um encontro na obscuridade; é assim que ele zela por um diálogo, e por um diálogo desesperado. É no espaço do diálogo que aquilo que é interpelado se constitui e se ajunta; como um tu, ele introduz no poema, sua alteridade. E derrama no poema uma parcela de sua verdade: seu tempo, o tempo de um outro. Celan diz: o poema se estende em direção a um outro, ele se endereça a um encontro ainda impossível; e assim ele abriga, da prece natural da alma, também o desespero de que se endereça a um eco, de quem mobiliza toda a sua atenção em um vestígio, em uma voz que se falasse seria tonitruante como um aniquilamento, mas que não faz mais do que sussurrar. E a prece que pede uma resposta, que espera uma resposta já que invoca, já que chama e contudo se põe à espera ao pé de uma parede sem porta.

Celan diz: es wird Gespräch – oft ist es verzweifeltes Gespräch. O diálogo desesperado de Celan – talvez um diálogo perturbado, mas ainda um diálogo, é a testemunha da espera de um encontro. O desespero do diálogo vem da invenção desse encontro – a invenção de uma língua de tus e de eus que tornam possível a interpelação, uma voz e sua interrupção. E, assim, um lugar onde se pode receber uma resposta. Porém toda voz de um diálogo está à mercê das outras vozes já escutadas e está à mercê dos outros ouvidos que ainda vão falar. Em cada frase fica o legado de todos os outros que passaram por aquelas palavras e que me foi consignado. Em cada frase eu começo um diálogo que tem a capacidade de inventar seus próprios mal-entendidos. A cada frase vibra todo o passado de cada palavra e se abre todo o seu futuro – um verso comprime, se aperta já que contém entrelinhas superpovoadas. Mas o poema é solitário. E talvez seja solitário porque o diálogo é uma entrega à sós – quem fala em um diálogo é refém, não está acompanhado. Celan escreve a Hans Bender que não vê diferença entre um aperto de mão e um poema. O poema de Celan, que é um aperto de mão, é uma dedicatória; uma palavra ao vento do ouvido, mas uma palavra sozinha.

Quem escuta um poema, escuta uma palavra solitária. Apenas na solidão que vamos ao encontro. O encontro não é uma interdependência, como o diálogo não é um jogral, um ensaio de falas marcadas onde uma fala complementa a outra. Uma voz fala independente de ser ouvida, de ser recebida – e é recebida porque interrompe, e não porque é esperada. Um diálogo é uma espera e é também um exercício de esperança às vezes vácua e desesperada, verzweifelte, já que nada é esperado. A espera é solitária e é acompanhada, porque ela é dúbia (zweifelthaft), ela traz em si um diálogo. A palavra de Celan acerca do diálogo é verzweifeltes, repleto de dúvida (zweifel), entregue à elas, que já são duos, que já são casos de diaphonia, a voz e a contra-voz, talvez um duelo. Porém o duelo do diálogo do poema não é o duelo de duas verdades dia-alethea em que uma verdade nega a outra como em um duelo de morte. A poesia, escreve Celan, é “a conversão em infinito da mortalidade pura e da letra morta” (39). O duo não é um duelo de morte porque a outra voz não nega o que eu digo em um diálogo – ela me responde. A resposta não é esperada, ainda que seja a resposta que eu espero. A negação já é complemento. O poema é um duo, mas não um jogral, não um arranjo, mas uma carta em deriva. O poema é um exercício de extensão em direção ao outro. É por isso que ele se apresenta desarmado – e é por isso que a palavra se embrenha na justiça e no direito e se estranha nos fatos e na força. Os regimes de fato (ou de força) não são regimes da palavra, mesmo quando eles se pautam em uma constituição repleta de palavras, eles tornam o diálogo – esta espera desesperada, esta solidão em duo onde o eco da resposta não acompanha – interdito, impróprio, incapaz, inaceitável ou, em uma palavra, perturbado e desesperado – verzweifelte. Eles tornam a palavra do diálogo críptica, eles tornam a palavra do diálogo cifrada e a coloca à deriva. Os regimes de fato (ou de força) empurram a palavra ao poema que é diálogo desesperado de Celan. Os fatos - com sua força de regime, de tirania, de fatismo – impelem o diálogo ao poema, se ele é o diálogo desesperado que rompe o silêncio, que inventa o ouvido depois do silêncio, que inventa os termos de um diálogo que ainda não se mede em presenças habituais, mas que traz de sopetão uma outra claridade, uma outra lucidez, uma outra configuração das presenças habituais já que é o que não tem sido tratado que é interpelado. Os regimes de fato são assim lexicogênicos, a resistência a eles inventa significados agindo sobre o vão entre o que é endereçado e interpelado de um lado, e as palavras da clareza já pronta de outro – o vão entre o que se espera e a espera de um outro ouvido. As palavras no poema de Celan – e na invenção diante do diálogo monofônico dos regimes de fato – travam uma batalha contra o enfeitiçamento dos fatos. Uma batalha da parte de uma máquina de guerra que é um exército iluminado como o de David Toscana, um exército de improváveis, de desarmados, de destreinados que se alistam em uma deriva.

Arundhati Roy, em seu The ministry of utmost happiness, conta a história do entrelaçamento em um cemitério, onde ficam os que não podem viver, do desvio sexual (uma hijra que sai do seu khwabgah) e do desvio nacional (uma sobrevivente das batalhas da Caxemira). Em um ponto, ela escreve sobre a palavra caxemira Azadi – liberdade. Ela diz que quatro pessoas da Caxemira que tivessem que especificar com clareza já pronta o que querem dizer com Azadi provavelmente cortariam a garganta umas das outras. Porém, ela diz, seria um erro considerar que isto fosse um produto de alguma confusão. Trata-se, ela escreve, de “uma terrível claridade que existe fora da linguagem da moderna geopolítica. Todos os protagonistas de todos os lados do conflito exploram essa falha incessantemente. Ela produz a guerra perfeita – uma guerra que não pode ser ganha ou perdida, uma guerra sem fim.” (185) A polissemia de Azadi é bélica: há algo de subcutâneo no som da palavra, há algo que subverte a pele da moderna geopolítica; há algo na palavra que não é palavra, é resíduo de outras palavras – e todas as palavras são preconceitos. Os resíduos das palavras é que são os poemas, a espera desesperada de um ouvido no meio dos fatos falhos. A poética de Celan é a de uma prece e a de uma guerrilha e a de uma implosão e a de uma conjuração – a solidão dos que ficam à espreita por um cúmplice onde pode ser que só haja algozes. Trata-se da poética do contrapelo. Um cúmplice, no lugar de escuta, é também desesperado – não é o complemento esperado; cúmplice é o que dobra junto, e é determinado a cada dobrada. O cúmplice está no regime da espera, no regime do diálogo e não no regime dos fatos – não pode ser encontrado por meio de um baculejo que estabeleça como uma questão de fato a identidade última do comparsa. Em um diálogo mora a contestação de uma voz, e sua consagração. A cumplicidade não é uma garantia, não mora na anatomia, no carimbo, no grafismo do corpo avesso às Zweifel de um Wunderblock; ela pertence ao léxico da confiança que é por onde se avizinha a espera, a esperança, a solidão de um poema. A cumplicidade é também um exercício entre reféns – Ana Cristina Chiara me lembra da suspeita de Nietzsche de que no coração do teu amigo mora teu pior inimigo. E é porque mora em seu coração teu pior inimigo que teu amigo é cúmplice.

O que se passa entre quem escreve e quem entende – entre quem abre um diálogo e faz o gesto do poema de Celan – é da vizinhança da hospitalidade. Um poema bate à porta. A hospitalidade é exercida pelos sentidos de cada corpo, é o que concede à cada corpo a possibilidade de suplemento por meio do que Kant chamou de receptividade e que contrastou com a espontaneidade do entendimento. A espontaneidade não requer que nada em particular seja recebido, ela não está costurada por interdependências a nada do que os sentidos lhe proporciona. Por outro lado, a receptividade é o momento de anfitrião de todo exercício de entendimento. Porém o anfitrião não é o anfitrião de Rumi: na pensão do poema de Rumi, a alegria e a depressão devem ser tratadas como hóspedes de honra já que eles podem estar limpando sua casa para novas delícias e a malícia, a vergonha e o pensamento mórbido merecem gratidão porque foram enviados de alguma parte como guias. O anfitrião da receptividade pode encontrar nos seus hóspedes orientação e preparação, mas não é porque eles o preparam e o orientam que eles são recebidos. O anfitrião da receptividade tem antes algo daquele de Klossowski em suas Les lois de l'hospitalité, em Roberte ce soir onde o estrangeiro é esperado à porta como quem atravessa o horizonte para trazer uma libertação. O que move o anfitrião é, segundo Klossowski, uma curiosidade por vezes insensata: não se trata apenas de uma vontade de saber, mas de uma insatisfação com aquilo que se sabe – os sentidos se abrem como em uma excedência. Os sentidos são órgãos de excesso; são órgãos do que não está presente. Como os sentidos, os ouvidos: ouvir uma palavra é poder se tornar cúmplice – e a cumplicidade é um exercício entre reféns. Ter ouvido é poder receber um hóspede. Ouvir o poema pode ser o exercício de hospitalidade; e porque o poema é o encontro que é prefigurado de um modo verzweifelte, também ouvi-lo é estar prestes a um encontro – é estar à beira de um encontro, do outro lado do zweifel, do outro lado da dobra. Não existe suplemento, aperto de mão ou diálogo sem receptividade. E a receptividade da porta de Octave em Roberte ce soir é aquele em que o estrangeiro é ansiado. Há um sentido no parricídio de Platão (n'O Sofista) em que o Ser passa a ser dotado de receptividade, de conviver com uma exterioridade; o Ser se torna um entre cinco grandes tipos (μέγιστα γένη). Como um dentre cinco grandes tipos, o Ser se torna permeável – sujeito aos demais tipos; o nada se torna inteligível porque o Ser não é mais imune ao Outro. Não é que o Ser se torna dependente do Outro ou um complemento dele, mas que ele pode ser interpelado e é precisamente o Estrangeiro que Platão faz interpelar o Ser. A escuta desesperada do Ser é o que o torna pleno de si, repleto de si, supersaturado de si e aberto ao que está de fora dele – ao que atravessa o horizonte para lhe trazer uma libertação. O Ser que escuta desesperado então parece ser não uma existência que é um predicado real ou de posição, mas um existente hipostasiado que o primeiro Levinas entende como a destinação da existência. E Levinas entende que a evasão de um existente hipostasiado é já uma recepção como de Octave ao estrangeiro no horizonte.

O poema de que fala Celan está talvez antes no silêncio do que nos versos – ele começa no silêncio que antecede os versos, na sua ante-linha; e é só através desse começo que ele pode ser entendido. É da solidão desse começo que pode brotar um encontro – ou um desencontro (uma Nichtübereinstimmung), como uma palavra que não é endereçada a quem a ouve. O silêncio é partilhado pelos dois lados do encontro (e do desencontro): o lado de quem emite o poema e se arremessa por entre as falhas das superfícies das palavras e o lado de quem o recebe. O silêncio é aqui uma espera, uma espreita. Do lado da receptividade – da capacidade de ser afetado, da disponibilidade a uma voz, da escuta na espreita – também o encontro é uma acolhida perturbada e desconcertada como quem se atenta ao ranger da porta em uma parede sem porta. Não é que os dois lados de um aperto de mão (os dois lados de um poema) sejam simétricos – eles carregam a assimetria de um refém e de um raptor: quando eu espreito a escuta, eu demoro desesperadamente em cada verso do silêncio, em cada entrelinha que aparece com o barulho dos avessos de diálogo. A espera é cheia de verzweifelte como a de quem lança o poema. É a espera de um ato falho nos fatos, a espera de um trocadilho nas palavras prontas que levante a sobrancelha e comece um diálogo. O desespero é com a insistência das palavras prontas, aquelas que não se abrem solitárias a um diálogo mas se fecham acompanhadas do apelo pronto para serem deixadas sozinhas. A palavra pronta é a forma do avesso do diálogo iniciado – ela é aquilo que se escuta quando não há uma demanda de resposta, quando não pode haver encontro porque já tudo está encontrado. A palavra pronta é o barulho do silêncio dos diálogos; é por isso que é o avesso dos diálogos iniciados, dos poemas. Quem fica no lugar de escuta desesperado – o lugar que engatilha a cumplicidade – ouve a palavra pronta e se distancia dela, a percebe como uma linguagem na qual não há nada para se falar. Sua língua é uma língua morta que torna seu som repleto de uma morna incuriosidade, com a atenta exceção da espreita – a evasão, rastrear nas palavras repetidas os vestígios do poema que vem. A espera desesperada é a mesma de quem está prestes a lançar o poema, a mesma solidão, o mesmo mal sem nome, o mesmo mutismo - e talvez até a mesma passividade, a mesma vontade inerte de uma cumplicidade insuspeita. Azadi é a palavra pronta, carregando a falha que faz com que seus falantes pulem na garganta um do outro e façam a guerra. Nela não há mais nada a dizer, a não ser que dela surja um poema que se lance em um outro diálogo – sem o diálogo desesperado, não há nada a ser dito a ninguém. Talvez, como Celan escreve no seu Gespräch im Gebird, a linguagem fica imprópria quando ela é impessoal e torna todo diálogo impróprio. O dizer de alguma coisa é já a espreita de um encontro. E a espera de um dizer é uma espera pessoal.

A escuta desesperada é um exercício de receptividade que invoca o momento de hospitalidade na percepção. Não se trata de abrigar o que vem de fora como uma submissão do que vem de fora ao que está dentro – a hospitalidade não é a acomodação ao que há dentro; é precisamente a ruptura, o diálogo, o encontro. A história da receptividade humana está cheia de experiências postas de lado, de experiências descartadas, de experiências tidas como inapropriadas; de hóspedes recusados e de hóspedes silenciosos. O aparecimento de um poema reside no risco do desencontro, no risco de que o silêncio perdure, como perdurou o silêncio entre os intelectuais na Bahia depois de Oju Obá. No filme Tenda dos Milagres, de Nelson Pereira dos Santos, Nilo Argolo (Nina Rodrigues?), professor da faculdade, lê o livro de Pedro Arcanjo, e em seguida troca palavras com o próprio autor. Detecta os fatos que Arcanjo lista, mas eles não podem abalar sua teoria já que ele investiga, pensa e teoriza na Bahia mas não tem ali a escuta desesperada – dali não pode sair um encontro, apenas a acomodação, apenas o particular de uma instanciação mas jamais o singular intrépido, exterior ou descabido. Arcanjo lhe estende a mão para um aperto de mão e Argolo deixa a mão estendida solitária; como um poema pode ser deixado mudo, à procura de um encontro que não tem lugar. A troca de palavras entre Argolo e Arcanjo reflete uma etapa do pensamento colonial – o colonizador não é o curioso, o aventureiro, ou mesmo o descobridor à espreita, é na égide do desencontro que ele atua; ele ocupa um lugar de fala diante de quem no seu mapa ainda não tem lugar, ele ocupa o lugar de fala.

Em um texto antigo de Nick Land (“Kant, Capital and the Prohibition of Incest”), há a insinuação de que a colonização aparece como operação da percepção – e portanto da relação com o outro recalcitrante. Land encontra no tratamento da heterogeneidade da intuição pela receptividade kantiana o elemento que consolida um pensamento colonial: espere sempre menos resistência de quem você submete do que seria razoável esperar (e quando a resistência vier, não lhe dê ouvidos) Land faz ver rapidamente como a receptividade se torna um campo de batalha. O campo de batalha é o endereço do encontro. A espreita é também como a curiosidade um gesto que pode ser fatal – a receptividade que a voz de Arcanjo não recebeu é uma vulnerabilidade. É essa escuta a contrapelo que gera a cumplicidade; para quem está do lado da escuta a impaciência da espera desesperada tem a urgência da evasão a uma deportação: já não poder viver na língua natal, já não poder se anunciar como estrangeiro. A impaciência de quem espera o encontro é uma condição dos sentidos, uma condição dos ouvidos numa língua morta – a impaciência messiânica que faz dos dias vésperas.

Este é o lugar de escuta nos tempos sombrios. Diante da língua morta, um estado de alerta à flor da pele, um conhecimento corporal das veias da receptividade. Suely Rolnik (em “Furor de arquivo”) escreve sobre o engajamento do corpo na criação de alternativas ao arbítrio à partir das memórias imateriais nele entrenhadas. Pensando na geração de Lygia Clark, Helio Oiticica e Cildo Meirelles na América Latina, ela contrasta a urgência do poético diante da brutalidade com os espaços de diálogo em que os projetos da mesma época tiveram lugar na arte conceptual do Atlântico Norte. Rolnik se preocupa com o destino desse conhecimento corporal de resistência; ela teme que haja forças que impeçam a poética forjada no arbítrio dos anos 60 e 70 de seguir compondo encontros. Como se a experiência corresse o risco de ser neutralizada e, se esse for o caso, de não ser senão um item impessoal de um arquivo, uma letra dormida de uma língua morta. O que ela teme é um
epistemicídio que seria cometido em nome da universalidade do contemporâneo – que se aproximem as experiências simultâneas de diversos lugares – e de um furor de arquivo que faz perder a experiência poética que encontrou uma maneira sui generis de se entrelaçar na política.
É como se uma química para o corpo sob jugo corresse o risco de ser perdida, perdida enquanto poção que tem um efeito. A experiência não pode ser arquivada senão como uma liturgia, como uma mandinga. O desaparecimento da mandinga é também o desaparecimento de uma escuta corporal para os tempos sombrios. A pergunta de Rolnik é sobre a delicadeza da preservação de uma memória no corpo que a prepare para a impaciência – para a impaciência e para o desespero, para o compromisso com uma ignorância de fundo que ronda a ideia de que aquilo a ser encontrado é exterior, não está prefigurado, não está ensaiado. O corpo que abriga a paciência da impaciência, o desespero da espreita, a curiosidade do encontro é o que pode submergir diante da melancolia das palavras completas (e dos assuntos encerrados). Encerrar o assunto do arbítrio que passou – e de todos os diálogos que ainda ficaram encilhados e ainda monofônicos – é perder a escuta dos vestígios dos encontros que ainda não puderam ter sido precisamente quando os tempos se assombram outra vez. A experiência poética abre uma ressonância no corpo, abre um gesto de escuta. A disputa nanopolítica que é aludida por Rolnik tem lugar na receptividade: deixar afiadas as pontas das antenas dos corpos.

Celan diz de seu poema que procura o lugar onde não se encerram os assuntos que ele não existe; “o poema absoluto não existe, o que existe em cada poema real sem presunção” , ele diz, “é a interrogação inevitável, a presunção desconhecida”. (36) Assim como não há o poema absoluto, não há o endereçamento absoluto: o encontro e o diálogo desesperado podem ser sempre clandestinos, inesperados. Assim é a solidão e o mutismo da escuta, o desespero do desapercebido. O lugar de escuta desesperado é a ânsia de morder a língua dos outros para que as línguas saibam que não estão sonhando e de esperar que se abram às bocas, mesmo ao pé de uma parede sem portas. É a essa escuta que talvez Rolnik quer manter na imaterialidade do corpo. A escuta de alguma coisa que se endereça a uma escuta mas não tem endereço certo – pode vir de qualquer lugar, já que é uma procura de um lugar. Esperar um encontro é esperar por um endereçamento – desesperadamente como quem espera Dom Sebastião, quer venha ou não. O poema da pos-colonialidade brasileira ainda vai ser escrito. Ele vai precisar do corpo bicéfalo do desespero intrépido que é informado de parangolés, de ritos sem mitos, de babas antropofágicas. Mas a escuta que vai ao seu encontro é o estado de ansiedade curiosa de quem ainda vai ser cúmplice. Essa nervura da escuta é um alerta de corpo inteiro.

sabato 29 settembre 2018

A defesa dos fracos contra os mais fracos

Tinha uma linha sobre borifar mingau:
junte maizena, presunsão e amizade
junte dilema, atração e chocolate,
água de rosas.

Fiz ontem a lista dos meus prazeres
Hoje faço a lista dos meus pudores.
morde a minha implumagem -
morde o meu descotuvelo
arrasta mais meu efe, pelo cabelo, nanã, pelo cabelo
no meu cabelo guardo a minha fraqueza
pra os momentos de necessidade
pra você que é bom de briga,
bom de garfo,
bom de cama
bom de copo
pedro pedreiro quer voltar atrás
quer ser penseiro, pobre e nada mais sem ficar
fraco, fraco, e fraco

acorrentaram o meu girasol
fizeram dele um panegírico
meu elefante virou santo inácio
meu boi de roda virou churrasco
quero a tormenta do brotoejo
a quadratura do baobá
deixem os vermes com meus cabelos
e a veia aorta pra comemorar

como é que faz pra viver
quando a gente não tem pra comer mas de fome não morre
a flor da minha pele brotou
no centro da minha ruga
ficou esperando a lavradura
ocupou o Setor Bancário
Wachs und werde zum Wald
mexe qualquer coisa dentro doida
mexe quaquer coisa doida dentro
sonhei com um germinal de caquéticos
em convescote
na bolsa de valores
convescote, convescote, convescote
na bolsa de valores
bebendo scotch
na bolsa de calores

pilão, pilão, pilão – soca Las Vegas
soca Las Vegas, soca Las Vegas
senta na praça dos três poderes
senta na praça dos dez poderes
inventa a praça dos seus poderes
e chuta – faça o que tu queres pois é tudo da lei, da lei
meus bolores, meus pudores, meus poderes, teus atores
arde e dói, tequila, tequila, tequila, armarinho
inexoravelmente chega lá
inexoravelmente chega lá
cravado no quase, raspando no triz
olha o mar não tem cabelos que a gente possa agarrar
come o teu mingau pra trabalhar segunda feira
olha que a mosca vai posar
escorpião!

Ou é só uma articulação
branca, branca, branca
Deus é uma lagosta – e Negão é Deus
sonhei com um germinal de caquéticos devotos, hereges,
atravessando a esplanada dos mistérios
cruzando os eixos, os eixos, os eixos
cruzando pelo bode sem chifre
pela Pachamama de plástico
meu gato miei na tesourinha
a tesourinha, a tesourinha
nem banca, nem banca, nem banca...



domenica 12 agosto 2018

Na Tihuana da sanidade (um antigo texto de performance)

Na tihuana da sanidade

Quase.
No espaço entre os pensamentos­­ – o buraco escuro e lento
Entre os cinco mil sentidos, os 6 bilhões de mal-entendidos
Dê-me um verso de apoio
E moverei um poema até levá-lo ao abismo
Ou até a beira dos teus lábios
Me perseguem os braços flácidos e apodrecidos dos sábios
Persigo com os dentes a lucidez
das garras de lúcifer
pelas ruas escuras de dentro de mim.
Milhas de medo, calçadas de insensatez, nada me detém
Quero ser mais um napoleão sem império
Em vez de homem sério sem direção.
Não ligo mais para as nascentes de onde brotam minhas fúrias
Que elas me asfixiem.
Sinto só o desejo, feito a pauladas, de reinventar tudo.

Reinventar a composição química da terra, reinventar meus olhos.
Sinto a vontade de abrir a mão, de abrir a mão de todas as minhas esperas.
Abrir mão da saliva, do muco, do suor, da lama, da remela, da poeira, da água estagnada.
Da gordura.

O homem mais feio do mundo
olha cansado os fundamentos de tantos impedimentos
e cata torrões de sal.
O homem mais frio do mundo
olha cansado as intenções de tantas humilhações
e cata torrões de sal.
O homem mais frívolo do mundo
olha cansado a contradança de tanta desconfiança
e cata torrões de sal.
O sal no chão é como a poeira no céu.
O mel sabe a sal; meu eu sabe que é só; o que é meu sabe que é pó.

Fico confuso com as batidas do meu coração,
envolto de sal. Esparramo minhas sêdes sem sede
Atropeladas pela velocidade
Enjauladas e sem possibilidades
Meu continente parafuso-solto
Na Tihuana da sanidade
O lado colorido e obscuro da minha América
Meu continente encabulado de ansiedade
Meu continente por um triz.
Meu continente na fronteira
Terra batida, marretada
Alma dilapidada, seduzida
Meus olhos cobiçam a insensatez
Que se acabe de uma vez minha terra arrasada
Meus pés querem o avesso da conquista:
Um continente levantado do chão.
Minha cabeça pensa com a inveja de quem me anexou.

Quero estar com esta pedra, como estou com o meu coração.
Mas a cada passo a frente fica mais difícil voltar atrás.

Veio o mal
E calçou perfeitamente em mim
Como uma perversa lucidez

Meus olhos viram como se desata
O rancor
Preso em todas as coisas. Tudo
Se retorce
Como a boca das gentes
Se vão a colher da minha mesa, minha mesa, minha casa,
as ruas, a cidade, minha pátria
E eu fico só,
cada dia, perto dos porcos, abraçado
a esta pedra / que não ama

Por isto eu choro e me contorço diante de ti. Dá-me
Do teu infinito ar de saúde,
Cura-me
Mas não totalmente
Deixa-me um fio do cabelo do demônio no olhar
O mundo
Merece suspeita
Sempre.

Minha insanidade imperfeita
Minha destemperança incompleta
Meu descontrole limitado
Minha loucura desconfiada
Ergo olhos para o céu––olhos que a terra come.

Não te machuque a minha ausência, meu Deus
Quando eu não mais estiver na terra
Onde agora canto amor e heresia
Outros hão ferir e amar
Seu coração e corpo. Tuas bifrontes
Valias. Mandarim e ovelha. Soberba e timidez.

Não temas
Meus pares e outros homens
Te farão viver destas duas voragens
Matança e amanhecer, sangue e poesia

Chora por mim, pela poeira que fui
Serei, e sou agora. Pelo esquecimento
Que virá de ti e dos amigos
Pelas palavras que te deram vida
E hoje me dão morte. Punhal, cegueira.

Sorria, meu Deus, por mim. De cedro
De mil abelhas tu és. Cavalo-d´água
Rondando o ego. Sorri. Te amei sonâmbula
Esdrúxula, mas te amei inteira.

E é difícil te amar inteira
É sempre mais difícil ancorar um navio no espaço
Exatamente meu peito está superlotado.

domenica 1 luglio 2018

Uma palavra só (e um garrancho)

Lupa, lupa, lupa, lupa, lupa, lupo, lu-
O lobo, o dobro do lobo, ou eu em fuga, eu perseguido.
Rabisca a lupa.
Faz do l um mitograma conectado com o p por baixo
e da barriga do p um adorno em forma de um pequeno país
sem nenhuma cidade dentro.
Do u um ovo - pequeno ovo. Preferia escrever garranchos e
o literal é a linguagem do zoológico. Kafka
confessa que as metáforas o desesperam da escrita.
No triste inverno a escrita é desespero e jogo,
a metáfora é desespero, é dependente do serviço das palavras;
as palavras expõem as coisas sob um refletor.
Escuro, escuro, esconderijo. O escuro fica iluminado,
arranjo, arranjo, garrancho.



M: Jiwago Miranda, insolência recebida à pedrada



Dizem que os humanos brancos, civilizados se tornam incapazes de lidar com a recalcitrância. Alguns dizem que são assim por defeito da espécie. Outros dizem que são assim por má-formação da existência mesma. E, no entanto, também é impossível justificar o extermínio do recalcitrante. Por isso mesmo as universidades deveriam estar distante destes extermínios. Mas no campus Darcy Ribeiro ou em suas cercanias assassinaram com uma pedrada Jiwago Miranda.

Não conhecemos as circunstâncias da pedrada. Sabemos do corpo morto. A reitoria anuncia uma investigação policial. As investigações neste país estão desmoralizadas: os assassinos de Marielle não-identificados depois de meses, Lula preso por meses sem provas convincentes. Nunca saberemos muito mais sobre esta pedrada, mas já sabemos o suficiente. Milícias fascistas? Seguramente. Com ou sem este nome; composta de indivíduos que amam a ordem acima de tudo ou de gestos que amam a ordem acima de tudo.

Jiwago andava um farrapo: morador de rua, distante do nexo habitual entre palavras e movimentos, dissidente das normas por onde atravessa o controle, diferente do que rezam os protocolos para humanos direitos. “Aquele que entre nós era o mais vulnerável...” como consta em um dos textos que primeiro divulgou para a comunidade acadêmica a brutalidade. O mais vulnerável já que não tinha as normas, os nexos, a casa e os protocolos para protegê-lo. O mais vulnerável: aquele que é recalcitrante, e que por isso mesmo reside em uma solidão. Quem atirou a pedra despreza o vulnerável recalcitrante – e prefere eliminar a insolência. Mas o que faz a universidade poder ter alguma criatividade em uma sociedade cansada e obediente é precisamente suas fagulhas de insolência. Quando elas são assassinadas com pedras, não sobra muito mais do que cadáveres de criatividade. A universidade está em luto. E com este gosto amargo de um fracasso profundo, uma falência nas entranhas.

“Pouco discutimos coletiva e internamente sobre violências, sobre as muitas dimensões do sofrimento psíquico, sobre dependência química, sobre racismo, sexismo, classismo e outras componentes violentas de nossa cultura.”, escreveu um filósofo pensando na UnB depois de Jiwago ser suicidado à pedrada. Acho que uma discussão assim envolve ouvir as vozes dos insolentes, dos recalcitrantes, dos dissidentes. A universidade é o espaço para estas vozes, ou não é espaço para voz alguma.

E quanto aos farrapos, mais do que direitos, eles têm uma causa. Eles apontam para a indignidade dos nexos excludentes, da incapacidade de hospitalidade, eles militam contra a sociedade do medo que tem horror ao diferente – e que é também aquela que considera a pobreza o pior dos males. A causa dos farrapos, dos esquisitos, dos estranhos é causa-irmã da causa dos estrangeiros, dos revoltosos, dos que nasceram com o pé esquerdo. Não é uma causa de massas, é uma causa de vulneráveis. Uma causa daqueles que, talvez contra a civilização dos brancos, talvez contra a espécie e talvez mesmo contra a natureza mesma da existência, sente a atração da recalcitrância e a abraça, a endossa e a acompanha apesar de sua companhia ser perigosa.

sabato 16 giugno 2018

Turbulência sem órgãos

O culto à prudência também me exaure
lambo meu escafóide, vejo ele verde;
a fuga é a primeira das invenções e
quero ir para o outro lado. Desendeusar.

O corpo sabe, o corpo sabe varrer.
Os cátaros sabem, os cátaros sabem desandar.
Um casal de sapos relincha: a prudência
de não se matar. A prudência, segurar na mão
da demência e levá-la pela calçada,
atravessar a rua,
esperar o sinal certo, vermelho e verde,
esperar as luzes - querer a si,
gostar de ficar. A prudência é adulta,
é adúltera e me exaure.

Visto a roupa do rato
e escrevo o tratado.




venerdì 15 giugno 2018

Medo das palavras

Tenho medo das palavras.

Prefiro os uivos, que não confessam nada.

Prefiro os berros, os grunhidos, os designificados.
Prefiro as letras ao léu.
Prefiro as matérias soltas, insignificantes.
Tenho medo dos rabiscos.
Deve ser por isso que quando li que as células cancerígenas
são levadas e ficam sublevadas contra as funções assinaladas
fiz um sorriso da alívio e quis fugir com elas abraçadas,
ver um roteiro de Artaud chafurdando nas entranhas,
ver uma rebelião na cena de vida e morte de meia-pataca
acontecendo no meio da ordem no foro íntimo.

Há deriva por toda parte, me dizem,
é de deriva que se fará a matéria
e não os textos e nem os gestos.
Lembro dos meus dias esperando que cheguem as rimas,
na beira do poço ou debaixo do sol
ao lado de uma parede sem sombra.

Recito baixinho uma ladainha antiga.

Como relendo as palavras que já escrevi
e com medo de cada uma delas.
Quais delas são profecias?
Quais são testemunhas?
Quais são testamentos?
Eu tento lhes ensinar por exemplos,
elas me exortam.
Eu tento a exorbitância,
elas me crucificam em ruas asfaltadas.

Meus dedos sujos de giz, limpo.
Olho o quadro pendurado, alto,
uma escotilha, um claustro, uma ilha,
saio correndo com a multidão,
fujo das palavras de medo.








Para Congelada de Uva na Ana Lama

Rocío Boliver, La congelada de uva;
a menopausa da Helix Aspersa Maxima e de Bartolina Sisa

A vida e a morte, as questões de meia pataca segundo Beckett, são pretexto e  desculpa para arte de ação. Estas coisas tão vastas e tão triviais que acontecem aos corpos  acontecendo aos órgãos: estar a morrer, estar a se tornar ex-orgânico. Os órgãos. As funções assinaladas. Quando elas falham, elas apenas falham, quando elas tem sucesso, elas apenas tem sucesso. As paixões dos corpos evaporam nas suas partes órgãos. Um corpo é cheio de partes, as que seguram agulhas, as que funcionam, as que sentem calorões. As funções. Elas se entrelaçam em ritmos das turbulências. Elas param de funcionar e já não há corpo. Entre a vida e a morte há uma guerra entre os órgãos e o corpo, entre a organização e encorpação. Ou então, entre a vida e a morte há um ferido: o corpo; já a alma é só mesmo um órgão sem corpo. O que mais poderia ser a alma se não for uma função sem carne. Na dor que contagia os músculos em um esquartejamento, os órgãos se tornam posições, um ao lado do outro aglomerados pela pele mais profunda.

Já a biopolítica, é a necropolítica.

O que falta é sempre o corpo, sempre há órgãos demais. Esquartejar o corpo em órgãos, o órgão da mãe, o órgão da esposa, o órgão da dona de casa. No corpo Helix Aspersa Maxima Congelada de Uva se instalaram as caracoletas pelos poros, como agulhas; o corpo de Bartolina Sisa que sea sacada del Cuartel a la Plaza mayor atada a la cola de un Caballo, con una soga al Cuello y plumas, un aspa afianzada sobre un bastón de palo en la mano y conducida por la voz del pregonero a la Horca hasta que muera, y después se clave su cabeza y manos en Picotas con el rótulo correspondiente, para el escarmiento público en los lugares de Cruzpata , Alto de San Pedro, y Pampajasi donde estaba acampada y presidía sus juntas sediciosas; y después de días se conduzca la cabeza a los pueblos de Ayo-ayo y Sapahagui en la Provincia de Sica-sica , con orden para que se quemen después de un tiempo y se arrojen las cenizas al aire, donde estime convenir...

O esquartejamento é a necropolítica que é a biopolítica do colonial, é destruição do corpo para que permaneçam os órgãos, ainda que não funcionem. Cavalgar a Bartolina em pedaços e esquartejar Tupac Katari puxado braço por um cavalo, braço por outro, perna por outro, outra perna por um quarto. Esquartejar. Destruir o ritmo, a intensidade do corpo, a capacidade de contágio do corpo, o molecular no corpo para retirar seus recursos, suas minas de prata, suas forças recônditas, suas montanhas de nióbio, de lítio, seu eldorado de orgasmos. Que pereça a natureza do que se coloniza e que fique apenas o estanho deste estranho. Da estranha transversa? Domestique-se o corpo da pusilânime nativa das terras inorgânicas de intensidades soltas. A devastação do corpo em favor dos destroços é a marca do epistemicídio; os saberes estão nos corpos. Esquartejar é jogar as bruxas nas labaredas para transformar mulheres em esposas e mães (ou em resíduos das esposas: santas, putas, professoras, executivas, vítimas). Esquartejar, separar os quartos, arrancar dos armazéns as reservas, fazer dos quartos armazéns com reserva. Separar as intensidades até que fiquem apenas pequenas luzinhas, faroletes que indicam: estou pronta.

E depois pouco importa a morte, a vida, o carbono e a agência se o corpo já não transmite. Orlan internada, Orlando internada e o supermercado vendendo o bosque empacotado para ser repartido. Quem está viva? Ana Lama, vulnerável à arte sem hora marcada, que não gosta mais do dinheiro do que do que ele pode comprar, que nem gosta mais de segurança do que da paz. E nem caiu de amores pela paz. Ao invés disso, fica descarbonizada, abraçada ao inorgânico na terra, enterrada, bússola, como a congelada de uva.



Batidas de animismo futuro


Saiu já há quase um mês as Batidas de animismo futuro. Ouçam.

mercoledì 14 febbraio 2018

Tu também esconde a loucura

escuto Lemebel
meus hormônios verdes escapam da minha asa quebrada
minhas patas
tremem como se todas as frutas fossem doces.

é que estou em um caso de amor com um besouro e uma parede
é trágico, triangular, e é ternura;
não quero saber de ir fazer carreira no setor comercial e
nem de fazer provas na escola
e nem sequer de levar ao parquinho meu rebento,
não quero beber cerveja com a Silvia Roncador e a Celia Xakriabá
porque fico sorrindo para o besouro e lambendo a parede
adornando minha demência vestida de amor descomunal
passando o dedo do meio no rego entre o rodapé e o chão
encostando um pedaço de lona
no casco dele, sexy, tão provocante...
Um namoro de comer pipoca no cinema
mas sem cinema - que filme agradaria minha parede?
e sem pipoca, e sem mãos dadas.
Nem sequer podemos cruzar, não cruzamos,
somos linhas paralelas, vendavais que não se esbarram
já que eles estão mais próximos de Deus que eu
e eles nem me delatam,
mas o tempo corre,
uma tarde e uma noite e uma madrugada
e eu com o colosso no coração
sem qualquer construção cultural.

nota

Sobre o anti-semitismo militante de Jair Bolsonaro

Surgiram nos últimos dias discussões sobre se o candidato da ordem a qualquer preço, do mulitarismo explícito e da chacina aos dissidentes e da destituição de suas ideias e práticas é um nazista. Nesta discussão desprovida de qualquer senso de racionalidade, houve até instituições judaicas de pouco lastro que defenderam o candidato a caudilho ainda sabendo que ele defendeu torturadores em sessões de triste memória do parlamento. Ora, se Bolsonaro é nazista importa menos do que a evidência: trata-se de um defensor de um pensamento único e da ordem unida e, claro, um anti-semita militante. Nazista ou não, o candidato diz coisas como “este não é um país laico, é um país cristão, as minorias que se adaptem”. Ou seja, um discurso de intolerância aos judeus e a todas as minorias religiosas do país. Bolsonaro é anti-semita e perigosamente explícito acerca disso, além de ser anti-islâmico, anti-candomblé, anti-budista e anti-laico. Trata-se de uma personagem que fala de metralhar moradores de áreas como a Rocinha em nome da lei e do status quo e que se apresenta como candidato de uma religião. Não ser anti-semita é defender intransigentemente o estado laico, sem viéses religiosos e jamais capaz de proteger um grupo em favor de outro.

Eis as discussões que se apresentam hoje no cenário brasileiro: é um anti-semita militante nazista ou não?

martedì 30 gennaio 2018

Relato da diarréia ao pé do Cerro Rico de Potosí

Não desce bem, ou entra por um ouvido e sai pelo outro, o Cerro Rico.
Não era para vocês, nem para vocês e nem para vocês, entenderam?
Levaram a prata e eu cago, rios e rios que carregam as bordas com eles.
Levaram mais prata. Eu cago outro rio, me seguro nas bordas
da montanha que é o centro do mundo sem centro.
Desço e subo a Chuquisaca, pelas calçadas estreitas
que não são revestidas de prata e nem de estanho;
de um lado o esgoto e o diesel dos carros funerários
e dos taxis e dos ônibus espirrando este chorume feito
da história do subterrâneo e de cima as goteiras frias
das chuvas que nunca estiam, princípio Potosí.
Nas minhas entranhas deve ter um número, um número de kilos de prata
ou de amortização de dívida, ou de reparação.
O número dá cólica. Me contorço e dou um berro
estrangeiro enquanto cruzo a praça,
cruzo a casa da moeda, cruzo a poça de lama
onde cagou o cachorro peludo branco que latia
quando os mineiros desceram a serra com tubas
e tubas brancas, com gordos copos e veias abertas.
Primeiro chego no mercado - bananas, onde estão as bananas?
O preço de banana: as bananas andam caras demais,
ninguém compra bananas em Potosí, me diz a Quechua.
Os minerais eles sustentam a terra, e longe dela eles
erodem tudo (envie de vrai cul).
Depois chego no Jacinto, nem sei como e conto que preciso de arroz.
Ele diz: até os que repartem a riqueza da Bolívia
deixaram as minas do Cerro à míngua.
Te faço um chá de camomila.

lunedì 29 gennaio 2018

Eu mesma e o lacre descartável do suco de pêra de caixinha

Quando eu encontrei uma seriedade fora da palavra escrita -
ou uma dedicação, ou um propósito, ou um hábito -
eu saí pelo mundo alface, mamão, lentilha, sopa de amendoim
e hamburger que quinoa até a diarréia,
aquela impaciência de fim de primavera,
aquela perda da voz
e um espanto porque a azaléia que era do tamanho do cosmos pulsante
virou miniatura e adereço e mancha no ar.

Quando eu fiz um acordo com a seriedade fora da palavra escrita -
ou a maquiagem, a roupa passada, a impostura de contribuinte -
eu saí pelo mundo camiseta, gola, guarda-chuva, óculos de grau
e barba vermelha até os tremeliques,
aquela ansiedade de ver as crianças crescerem,
aquela perda de tempo
e um espanto porque a invenção que era uma bolha de 16 milhões de kilos
cabe na mochila.

lunedì 15 gennaio 2018

Dossiê Eros, Eris & Freiheitwissenschaft

Desde Potosí mando uns vídeos para o evento Filosofia e Erotismo na cidade de Goiás na semana que entra. A sessão é sobre erotismo e insatisfação, o que o desejo de sair de si revela: que somos feit@s de uma cornucópia de vontades ou que é de sermos nós mesmos que os desejos nos retiram. A sessão será as 16 horas do dia 17/1 no teatro São Joaquim, Goiás. Os vídeos:

Um video do Aharon sobre "Freier" usado como trouxa em hebraico

Um vídeo nas cercanias do café Virgen de los deseos (das Mujeres Creando) em La Paz, com participação especial de Devrim e filmado por Denise Agustinho

Um vídeo na Sagarnaga, La Paz, sobre ir embora num barco de totora, filmado por Denise Agustinho