Acho que nunca postei este texto neste blog. No momento acho que caberia.
O lugar de escuta desesperado: sobre a necessidade impossível de morder a língua dos outros
No seu discurso Der Meridian, Paul Celan, para quem um poema é um encontro – feito de presságios, ocorrido no escuro, e desarmado como qualquer encontro – alude a que em certas condições um poema se estende em direção a um outro, a uma necessidade do face-à-face. Ele consegue fazer isso porque é um exercício de atenção, a prece natural da alma, segundo Malebranche. Porém o poema, que se inclina desde a direção de um mutismo, fica manifesto no segredo de um encontro. Um poema inaugura assim um diálogo, e se assim o fizer, inaugura um diálogo desesperado. Um diálogo desesperado é um exercício de voz afónica, um exercício de voz em direção a algum ouvinte, a algum decifrador – o poema é solitário. O poeta é o que diz com Pascal e depois com Chestov segundo Celan: “Não nos acuse de falta de claridade, é dela que faço minha profissão.” (27)A poesia em direção a um encontro, conclui Celan, produz a obscuridade. O poema, no entanto, se estende sem obscuridade para fazer face ao que aparece, ele interroga e interpela o que aparece e é assim que ele vela por um encontro na obscuridade; é assim que ele zela por um diálogo, e por um diálogo desesperado. É no espaço do diálogo que aquilo que é interpelado se constitui e se ajunta; como um tu, ele introduz no poema, sua alteridade. E derrama no poema uma parcela de sua verdade: seu tempo, o tempo de um outro. Celan diz: o poema se estende em direção a um outro, ele se endereça a um encontro ainda impossível; e assim ele abriga, da prece natural da alma, também o desespero de que se endereça a um eco, de quem mobiliza toda a sua atenção em um vestígio, em uma voz que se falasse seria tonitruante como um aniquilamento, mas que não faz mais do que sussurrar. E a prece que pede uma resposta, que espera uma resposta já que invoca, já que chama e contudo se põe à espera ao pé de uma parede sem porta.
Celan diz: es wird Gespräch – oft ist es verzweifeltes Gespräch. O diálogo desesperado de Celan – talvez um diálogo perturbado, mas ainda um diálogo, é a testemunha da espera de um encontro. O desespero do diálogo vem da invenção desse encontro – a invenção de uma língua de tus e de eus que tornam possível a interpelação, uma voz e sua interrupção. E, assim, um lugar onde se pode receber uma resposta. Porém toda voz de um diálogo está à mercê das outras vozes já escutadas e está à mercê dos outros ouvidos que ainda vão falar. Em cada frase fica o legado de todos os outros que passaram por aquelas palavras e que me foi consignado. Em cada frase eu começo um diálogo que tem a capacidade de inventar seus próprios mal-entendidos. A cada frase vibra todo o passado de cada palavra e se abre todo o seu futuro – um verso comprime, se aperta já que contém entrelinhas superpovoadas. Mas o poema é solitário. E talvez seja solitário porque o diálogo é uma entrega à sós – quem fala em um diálogo é refém, não está acompanhado. Celan escreve a Hans Bender que não vê diferença entre um aperto de mão e um poema. O poema de Celan, que é um aperto de mão, é uma dedicatória; uma palavra ao vento do ouvido, mas uma palavra sozinha.
Quem escuta um poema, escuta uma palavra solitária. Apenas na solidão que vamos ao encontro. O encontro não é uma interdependência, como o diálogo não é um jogral, um ensaio de falas marcadas onde uma fala complementa a outra. Uma voz fala independente de ser ouvida, de ser recebida – e é recebida porque interrompe, e não porque é esperada. Um diálogo é uma espera e é também um exercício de esperança às vezes vácua e desesperada, verzweifelte, já que nada é esperado. A espera é solitária e é acompanhada, porque ela é dúbia (zweifelthaft), ela traz em si um diálogo. A palavra de Celan acerca do diálogo é verzweifeltes, repleto de dúvida (zweifel), entregue à elas, que já são duos, que já são casos de diaphonia, a voz e a contra-voz, talvez um duelo. Porém o duelo do diálogo do poema não é o duelo de duas verdades dia-alethea em que uma verdade nega a outra como em um duelo de morte. A poesia, escreve Celan, é “a conversão em infinito da mortalidade pura e da letra morta” (39). O duo não é um duelo de morte porque a outra voz não nega o que eu digo em um diálogo – ela me responde. A resposta não é esperada, ainda que seja a resposta que eu espero. A negação já é complemento. O poema é um duo, mas não um jogral, não um arranjo, mas uma carta em deriva. O poema é um exercício de extensão em direção ao outro. É por isso que ele se apresenta desarmado – e é por isso que a palavra se embrenha na justiça e no direito e se estranha nos fatos e na força. Os regimes de fato (ou de força) não são regimes da palavra, mesmo quando eles se pautam em uma constituição repleta de palavras, eles tornam o diálogo – esta espera desesperada, esta solidão em duo onde o eco da resposta não acompanha – interdito, impróprio, incapaz, inaceitável ou, em uma palavra, perturbado e desesperado – verzweifelte. Eles tornam a palavra do diálogo críptica, eles tornam a palavra do diálogo cifrada e a coloca à deriva. Os regimes de fato (ou de força) empurram a palavra ao poema que é diálogo desesperado de Celan. Os fatos - com sua força de regime, de tirania, de fatismo – impelem o diálogo ao poema, se ele é o diálogo desesperado que rompe o silêncio, que inventa o ouvido depois do silêncio, que inventa os termos de um diálogo que ainda não se mede em presenças habituais, mas que traz de sopetão uma outra claridade, uma outra lucidez, uma outra configuração das presenças habituais já que é o que não tem sido tratado que é interpelado. Os regimes de fato são assim lexicogênicos, a resistência a eles inventa significados agindo sobre o vão entre o que é endereçado e interpelado de um lado, e as palavras da clareza já pronta de outro – o vão entre o que se espera e a espera de um outro ouvido. As palavras no poema de Celan – e na invenção diante do diálogo monofônico dos regimes de fato – travam uma batalha contra o enfeitiçamento dos fatos. Uma batalha da parte de uma máquina de guerra que é um exército iluminado como o de David Toscana, um exército de improváveis, de desarmados, de destreinados que se alistam em uma deriva.
Arundhati Roy, em seu The ministry of utmost happiness, conta a história do entrelaçamento em um cemitério, onde ficam os que não podem viver, do desvio sexual (uma hijra que sai do seu khwabgah) e do desvio nacional (uma sobrevivente das batalhas da Caxemira). Em um ponto, ela escreve sobre a palavra caxemira Azadi – liberdade. Ela diz que quatro pessoas da Caxemira que tivessem que especificar com clareza já pronta o que querem dizer com Azadi provavelmente cortariam a garganta umas das outras. Porém, ela diz, seria um erro considerar que isto fosse um produto de alguma confusão. Trata-se, ela escreve, de “uma terrível claridade que existe fora da linguagem da moderna geopolítica. Todos os protagonistas de todos os lados do conflito exploram essa falha incessantemente. Ela produz a guerra perfeita – uma guerra que não pode ser ganha ou perdida, uma guerra sem fim.” (185) A polissemia de Azadi é bélica: há algo de subcutâneo no som da palavra, há algo que subverte a pele da moderna geopolítica; há algo na palavra que não é palavra, é resíduo de outras palavras – e todas as palavras são preconceitos. Os resíduos das palavras é que são os poemas, a espera desesperada de um ouvido no meio dos fatos falhos. A poética de Celan é a de uma prece e a de uma guerrilha e a de uma implosão e a de uma conjuração – a solidão dos que ficam à espreita por um cúmplice onde pode ser que só haja algozes. Trata-se da poética do contrapelo. Um cúmplice, no lugar de escuta, é também desesperado – não é o complemento esperado; cúmplice é o que dobra junto, e é determinado a cada dobrada. O cúmplice está no regime da espera, no regime do diálogo e não no regime dos fatos – não pode ser encontrado por meio de um baculejo que estabeleça como uma questão de fato a identidade última do comparsa. Em um diálogo mora a contestação de uma voz, e sua consagração. A cumplicidade não é uma garantia, não mora na anatomia, no carimbo, no grafismo do corpo avesso às Zweifel de um Wunderblock; ela pertence ao léxico da confiança que é por onde se avizinha a espera, a esperança, a solidão de um poema. A cumplicidade é também um exercício entre reféns – Ana Cristina Chiara me lembra da suspeita de Nietzsche de que no coração do teu amigo mora teu pior inimigo. E é porque mora em seu coração teu pior inimigo que teu amigo é cúmplice.
O que se passa entre quem escreve e quem entende – entre quem abre um diálogo e faz o gesto do poema de Celan – é da vizinhança da hospitalidade. Um poema bate à porta. A hospitalidade é exercida pelos sentidos de cada corpo, é o que concede à cada corpo a possibilidade de suplemento por meio do que Kant chamou de receptividade e que contrastou com a espontaneidade do entendimento. A espontaneidade não requer que nada em particular seja recebido, ela não está costurada por interdependências a nada do que os sentidos lhe proporciona. Por outro lado, a receptividade é o momento de anfitrião de todo exercício de entendimento. Porém o anfitrião não é o anfitrião de Rumi: na pensão do poema de Rumi, a alegria e a depressão devem ser tratadas como hóspedes de honra já que eles podem estar limpando sua casa para novas delícias e a malícia, a vergonha e o pensamento mórbido merecem gratidão porque foram enviados de alguma parte como guias. O anfitrião da receptividade pode encontrar nos seus hóspedes orientação e preparação, mas não é porque eles o preparam e o orientam que eles são recebidos. O anfitrião da receptividade tem antes algo daquele de Klossowski em suas Les lois de l'hospitalité, em Roberte ce soir onde o estrangeiro é esperado à porta como quem atravessa o horizonte para trazer uma libertação. O que move o anfitrião é, segundo Klossowski, uma curiosidade por vezes insensata: não se trata apenas de uma vontade de saber, mas de uma insatisfação com aquilo que se sabe – os sentidos se abrem como em uma excedência. Os sentidos são órgãos de excesso; são órgãos do que não está presente. Como os sentidos, os ouvidos: ouvir uma palavra é poder se tornar cúmplice – e a cumplicidade é um exercício entre reféns. Ter ouvido é poder receber um hóspede. Ouvir o poema pode ser o exercício de hospitalidade; e porque o poema é o encontro que é prefigurado de um modo verzweifelte, também ouvi-lo é estar prestes a um encontro – é estar à beira de um encontro, do outro lado do zweifel, do outro lado da dobra. Não existe suplemento, aperto de mão ou diálogo sem receptividade. E a receptividade da porta de Octave em Roberte ce soir é aquele em que o estrangeiro é ansiado. Há um sentido no parricídio de Platão (n'O Sofista) em que o Ser passa a ser dotado de receptividade, de conviver com uma exterioridade; o Ser se torna um entre cinco grandes tipos (μέγιστα γένη). Como um dentre cinco grandes tipos, o Ser se torna permeável – sujeito aos demais tipos; o nada se torna inteligível porque o Ser não é mais imune ao Outro. Não é que o Ser se torna dependente do Outro ou um complemento dele, mas que ele pode ser interpelado e é precisamente o Estrangeiro que Platão faz interpelar o Ser. A escuta desesperada do Ser é o que o torna pleno de si, repleto de si, supersaturado de si e aberto ao que está de fora dele – ao que atravessa o horizonte para lhe trazer uma libertação. O Ser que escuta desesperado então parece ser não uma existência que é um predicado real ou de posição, mas um existente hipostasiado que o primeiro Levinas entende como a destinação da existência. E Levinas entende que a evasão de um existente hipostasiado é já uma recepção como de Octave ao estrangeiro no horizonte.
O poema de que fala Celan está talvez antes no silêncio do que nos versos – ele começa no silêncio que antecede os versos, na sua ante-linha; e é só através desse começo que ele pode ser entendido. É da solidão desse começo que pode brotar um encontro – ou um desencontro (uma Nichtübereinstimmung), como uma palavra que não é endereçada a quem a ouve. O silêncio é partilhado pelos dois lados do encontro (e do desencontro): o lado de quem emite o poema e se arremessa por entre as falhas das superfícies das palavras e o lado de quem o recebe. O silêncio é aqui uma espera, uma espreita. Do lado da receptividade – da capacidade de ser afetado, da disponibilidade a uma voz, da escuta na espreita – também o encontro é uma acolhida perturbada e desconcertada como quem se atenta ao ranger da porta em uma parede sem porta. Não é que os dois lados de um aperto de mão (os dois lados de um poema) sejam simétricos – eles carregam a assimetria de um refém e de um raptor: quando eu espreito a escuta, eu demoro desesperadamente em cada verso do silêncio, em cada entrelinha que aparece com o barulho dos avessos de diálogo. A espera é cheia de verzweifelte como a de quem lança o poema. É a espera de um ato falho nos fatos, a espera de um trocadilho nas palavras prontas que levante a sobrancelha e comece um diálogo. O desespero é com a insistência das palavras prontas, aquelas que não se abrem solitárias a um diálogo mas se fecham acompanhadas do apelo pronto para serem deixadas sozinhas. A palavra pronta é a forma do avesso do diálogo iniciado – ela é aquilo que se escuta quando não há uma demanda de resposta, quando não pode haver encontro porque já tudo está encontrado. A palavra pronta é o barulho do silêncio dos diálogos; é por isso que é o avesso dos diálogos iniciados, dos poemas. Quem fica no lugar de escuta desesperado – o lugar que engatilha a cumplicidade – ouve a palavra pronta e se distancia dela, a percebe como uma linguagem na qual não há nada para se falar. Sua língua é uma língua morta que torna seu som repleto de uma morna incuriosidade, com a atenta exceção da espreita – a evasão, rastrear nas palavras repetidas os vestígios do poema que vem. A espera desesperada é a mesma de quem está prestes a lançar o poema, a mesma solidão, o mesmo mal sem nome, o mesmo mutismo - e talvez até a mesma passividade, a mesma vontade inerte de uma cumplicidade insuspeita. Azadi é a palavra pronta, carregando a falha que faz com que seus falantes pulem na garganta um do outro e façam a guerra. Nela não há mais nada a dizer, a não ser que dela surja um poema que se lance em um outro diálogo – sem o diálogo desesperado, não há nada a ser dito a ninguém. Talvez, como Celan escreve no seu Gespräch im Gebird, a linguagem fica imprópria quando ela é impessoal e torna todo diálogo impróprio. O dizer de alguma coisa é já a espreita de um encontro. E a espera de um dizer é uma espera pessoal.
A escuta desesperada é um exercício de receptividade que invoca o momento de hospitalidade na percepção. Não se trata de abrigar o que vem de fora como uma submissão do que vem de fora ao que está dentro – a hospitalidade não é a acomodação ao que há dentro; é precisamente a ruptura, o diálogo, o encontro. A história da receptividade humana está cheia de experiências postas de lado, de experiências descartadas, de experiências tidas como inapropriadas; de hóspedes recusados e de hóspedes silenciosos. O aparecimento de um poema reside no risco do desencontro, no risco de que o silêncio perdure, como perdurou o silêncio entre os intelectuais na Bahia depois de Oju Obá. No filme Tenda dos Milagres, de Nelson Pereira dos Santos, Nilo Argolo (Nina Rodrigues?), professor da faculdade, lê o livro de Pedro Arcanjo, e em seguida troca palavras com o próprio autor. Detecta os fatos que Arcanjo lista, mas eles não podem abalar sua teoria já que ele investiga, pensa e teoriza na Bahia mas não tem ali a escuta desesperada – dali não pode sair um encontro, apenas a acomodação, apenas o particular de uma instanciação mas jamais o singular intrépido, exterior ou descabido. Arcanjo lhe estende a mão para um aperto de mão e Argolo deixa a mão estendida solitária; como um poema pode ser deixado mudo, à procura de um encontro que não tem lugar. A troca de palavras entre Argolo e Arcanjo reflete uma etapa do pensamento colonial – o colonizador não é o curioso, o aventureiro, ou mesmo o descobridor à espreita, é na égide do desencontro que ele atua; ele ocupa um lugar de fala diante de quem no seu mapa ainda não tem lugar, ele ocupa o lugar de fala.
Em um texto antigo de Nick Land (“Kant, Capital and the Prohibition of Incest”), há a insinuação de que a colonização aparece como operação da percepção – e portanto da relação com o outro recalcitrante. Land encontra no tratamento da heterogeneidade da intuição pela receptividade kantiana o elemento que consolida um pensamento colonial: espere sempre menos resistência de quem você submete do que seria razoável esperar (e quando a resistência vier, não lhe dê ouvidos) Land faz ver rapidamente como a receptividade se torna um campo de batalha. O campo de batalha é o endereço do encontro. A espreita é também como a curiosidade um gesto que pode ser fatal – a receptividade que a voz de Arcanjo não recebeu é uma vulnerabilidade. É essa escuta a contrapelo que gera a cumplicidade; para quem está do lado da escuta a impaciência da espera desesperada tem a urgência da evasão a uma deportação: já não poder viver na língua natal, já não poder se anunciar como estrangeiro. A impaciência de quem espera o encontro é uma condição dos sentidos, uma condição dos ouvidos numa língua morta – a impaciência messiânica que faz dos dias vésperas.
Este é o lugar de escuta nos tempos sombrios. Diante da língua morta, um estado de alerta à flor da pele, um conhecimento corporal das veias da receptividade. Suely Rolnik (em “Furor de arquivo”) escreve sobre o engajamento do corpo na criação de alternativas ao arbítrio à partir das memórias imateriais nele entrenhadas. Pensando na geração de Lygia Clark, Helio Oiticica e Cildo Meirelles na América Latina, ela contrasta a urgência do poético diante da brutalidade com os espaços de diálogo em que os projetos da mesma época tiveram lugar na arte conceptual do Atlântico Norte. Rolnik se preocupa com o destino desse conhecimento corporal de resistência; ela teme que haja forças que impeçam a poética forjada no arbítrio dos anos 60 e 70 de seguir compondo encontros. Como se a experiência corresse o risco de ser neutralizada e, se esse for o caso, de não ser senão um item impessoal de um arquivo, uma letra dormida de uma língua morta. O que ela teme é um
epistemicídio que seria cometido em nome da universalidade do contemporâneo – que se aproximem as experiências simultâneas de diversos lugares – e de um furor de arquivo que faz perder a experiência poética que encontrou uma maneira sui generis de se entrelaçar na política.
É como se uma química para o corpo sob jugo corresse o risco de ser perdida, perdida enquanto poção que tem um efeito. A experiência não pode ser arquivada senão como uma liturgia, como uma mandinga. O desaparecimento da mandinga é também o desaparecimento de uma escuta corporal para os tempos sombrios. A pergunta de Rolnik é sobre a delicadeza da preservação de uma memória no corpo que a prepare para a impaciência – para a impaciência e para o desespero, para o compromisso com uma ignorância de fundo que ronda a ideia de que aquilo a ser encontrado é exterior, não está prefigurado, não está ensaiado. O corpo que abriga a paciência da impaciência, o desespero da espreita, a curiosidade do encontro é o que pode submergir diante da melancolia das palavras completas (e dos assuntos encerrados). Encerrar o assunto do arbítrio que passou – e de todos os diálogos que ainda ficaram encilhados e ainda monofônicos – é perder a escuta dos vestígios dos encontros que ainda não puderam ter sido precisamente quando os tempos se assombram outra vez. A experiência poética abre uma ressonância no corpo, abre um gesto de escuta. A disputa nanopolítica que é aludida por Rolnik tem lugar na receptividade: deixar afiadas as pontas das antenas dos corpos.
Celan diz de seu poema que procura o lugar onde não se encerram os assuntos que ele não existe; “o poema absoluto não existe, o que existe em cada poema real sem presunção” , ele diz, “é a interrogação inevitável, a presunção desconhecida”. (36) Assim como não há o poema absoluto, não há o endereçamento absoluto: o encontro e o diálogo desesperado podem ser sempre clandestinos, inesperados. Assim é a solidão e o mutismo da escuta, o desespero do desapercebido. O lugar de escuta desesperado é a ânsia de morder a língua dos outros para que as línguas saibam que não estão sonhando e de esperar que se abram às bocas, mesmo ao pé de uma parede sem portas. É a essa escuta que talvez Rolnik quer manter na imaterialidade do corpo. A escuta de alguma coisa que se endereça a uma escuta mas não tem endereço certo – pode vir de qualquer lugar, já que é uma procura de um lugar. Esperar um encontro é esperar por um endereçamento – desesperadamente como quem espera Dom Sebastião, quer venha ou não. O poema da pos-colonialidade brasileira ainda vai ser escrito. Ele vai precisar do corpo bicéfalo do desespero intrépido que é informado de parangolés, de ritos sem mitos, de babas antropofágicas. Mas a escuta que vai ao seu encontro é o estado de ansiedade curiosa de quem ainda vai ser cúmplice. Essa nervura da escuta é um alerta de corpo inteiro.
O lugar de escuta desesperado: sobre a necessidade impossível de morder a língua dos outros
No seu discurso Der Meridian, Paul Celan, para quem um poema é um encontro – feito de presságios, ocorrido no escuro, e desarmado como qualquer encontro – alude a que em certas condições um poema se estende em direção a um outro, a uma necessidade do face-à-face. Ele consegue fazer isso porque é um exercício de atenção, a prece natural da alma, segundo Malebranche. Porém o poema, que se inclina desde a direção de um mutismo, fica manifesto no segredo de um encontro. Um poema inaugura assim um diálogo, e se assim o fizer, inaugura um diálogo desesperado. Um diálogo desesperado é um exercício de voz afónica, um exercício de voz em direção a algum ouvinte, a algum decifrador – o poema é solitário. O poeta é o que diz com Pascal e depois com Chestov segundo Celan: “Não nos acuse de falta de claridade, é dela que faço minha profissão.” (27)A poesia em direção a um encontro, conclui Celan, produz a obscuridade. O poema, no entanto, se estende sem obscuridade para fazer face ao que aparece, ele interroga e interpela o que aparece e é assim que ele vela por um encontro na obscuridade; é assim que ele zela por um diálogo, e por um diálogo desesperado. É no espaço do diálogo que aquilo que é interpelado se constitui e se ajunta; como um tu, ele introduz no poema, sua alteridade. E derrama no poema uma parcela de sua verdade: seu tempo, o tempo de um outro. Celan diz: o poema se estende em direção a um outro, ele se endereça a um encontro ainda impossível; e assim ele abriga, da prece natural da alma, também o desespero de que se endereça a um eco, de quem mobiliza toda a sua atenção em um vestígio, em uma voz que se falasse seria tonitruante como um aniquilamento, mas que não faz mais do que sussurrar. E a prece que pede uma resposta, que espera uma resposta já que invoca, já que chama e contudo se põe à espera ao pé de uma parede sem porta.
Celan diz: es wird Gespräch – oft ist es verzweifeltes Gespräch. O diálogo desesperado de Celan – talvez um diálogo perturbado, mas ainda um diálogo, é a testemunha da espera de um encontro. O desespero do diálogo vem da invenção desse encontro – a invenção de uma língua de tus e de eus que tornam possível a interpelação, uma voz e sua interrupção. E, assim, um lugar onde se pode receber uma resposta. Porém toda voz de um diálogo está à mercê das outras vozes já escutadas e está à mercê dos outros ouvidos que ainda vão falar. Em cada frase fica o legado de todos os outros que passaram por aquelas palavras e que me foi consignado. Em cada frase eu começo um diálogo que tem a capacidade de inventar seus próprios mal-entendidos. A cada frase vibra todo o passado de cada palavra e se abre todo o seu futuro – um verso comprime, se aperta já que contém entrelinhas superpovoadas. Mas o poema é solitário. E talvez seja solitário porque o diálogo é uma entrega à sós – quem fala em um diálogo é refém, não está acompanhado. Celan escreve a Hans Bender que não vê diferença entre um aperto de mão e um poema. O poema de Celan, que é um aperto de mão, é uma dedicatória; uma palavra ao vento do ouvido, mas uma palavra sozinha.
Quem escuta um poema, escuta uma palavra solitária. Apenas na solidão que vamos ao encontro. O encontro não é uma interdependência, como o diálogo não é um jogral, um ensaio de falas marcadas onde uma fala complementa a outra. Uma voz fala independente de ser ouvida, de ser recebida – e é recebida porque interrompe, e não porque é esperada. Um diálogo é uma espera e é também um exercício de esperança às vezes vácua e desesperada, verzweifelte, já que nada é esperado. A espera é solitária e é acompanhada, porque ela é dúbia (zweifelthaft), ela traz em si um diálogo. A palavra de Celan acerca do diálogo é verzweifeltes, repleto de dúvida (zweifel), entregue à elas, que já são duos, que já são casos de diaphonia, a voz e a contra-voz, talvez um duelo. Porém o duelo do diálogo do poema não é o duelo de duas verdades dia-alethea em que uma verdade nega a outra como em um duelo de morte. A poesia, escreve Celan, é “a conversão em infinito da mortalidade pura e da letra morta” (39). O duo não é um duelo de morte porque a outra voz não nega o que eu digo em um diálogo – ela me responde. A resposta não é esperada, ainda que seja a resposta que eu espero. A negação já é complemento. O poema é um duo, mas não um jogral, não um arranjo, mas uma carta em deriva. O poema é um exercício de extensão em direção ao outro. É por isso que ele se apresenta desarmado – e é por isso que a palavra se embrenha na justiça e no direito e se estranha nos fatos e na força. Os regimes de fato (ou de força) não são regimes da palavra, mesmo quando eles se pautam em uma constituição repleta de palavras, eles tornam o diálogo – esta espera desesperada, esta solidão em duo onde o eco da resposta não acompanha – interdito, impróprio, incapaz, inaceitável ou, em uma palavra, perturbado e desesperado – verzweifelte. Eles tornam a palavra do diálogo críptica, eles tornam a palavra do diálogo cifrada e a coloca à deriva. Os regimes de fato (ou de força) empurram a palavra ao poema que é diálogo desesperado de Celan. Os fatos - com sua força de regime, de tirania, de fatismo – impelem o diálogo ao poema, se ele é o diálogo desesperado que rompe o silêncio, que inventa o ouvido depois do silêncio, que inventa os termos de um diálogo que ainda não se mede em presenças habituais, mas que traz de sopetão uma outra claridade, uma outra lucidez, uma outra configuração das presenças habituais já que é o que não tem sido tratado que é interpelado. Os regimes de fato são assim lexicogênicos, a resistência a eles inventa significados agindo sobre o vão entre o que é endereçado e interpelado de um lado, e as palavras da clareza já pronta de outro – o vão entre o que se espera e a espera de um outro ouvido. As palavras no poema de Celan – e na invenção diante do diálogo monofônico dos regimes de fato – travam uma batalha contra o enfeitiçamento dos fatos. Uma batalha da parte de uma máquina de guerra que é um exército iluminado como o de David Toscana, um exército de improváveis, de desarmados, de destreinados que se alistam em uma deriva.
Arundhati Roy, em seu The ministry of utmost happiness, conta a história do entrelaçamento em um cemitério, onde ficam os que não podem viver, do desvio sexual (uma hijra que sai do seu khwabgah) e do desvio nacional (uma sobrevivente das batalhas da Caxemira). Em um ponto, ela escreve sobre a palavra caxemira Azadi – liberdade. Ela diz que quatro pessoas da Caxemira que tivessem que especificar com clareza já pronta o que querem dizer com Azadi provavelmente cortariam a garganta umas das outras. Porém, ela diz, seria um erro considerar que isto fosse um produto de alguma confusão. Trata-se, ela escreve, de “uma terrível claridade que existe fora da linguagem da moderna geopolítica. Todos os protagonistas de todos os lados do conflito exploram essa falha incessantemente. Ela produz a guerra perfeita – uma guerra que não pode ser ganha ou perdida, uma guerra sem fim.” (185) A polissemia de Azadi é bélica: há algo de subcutâneo no som da palavra, há algo que subverte a pele da moderna geopolítica; há algo na palavra que não é palavra, é resíduo de outras palavras – e todas as palavras são preconceitos. Os resíduos das palavras é que são os poemas, a espera desesperada de um ouvido no meio dos fatos falhos. A poética de Celan é a de uma prece e a de uma guerrilha e a de uma implosão e a de uma conjuração – a solidão dos que ficam à espreita por um cúmplice onde pode ser que só haja algozes. Trata-se da poética do contrapelo. Um cúmplice, no lugar de escuta, é também desesperado – não é o complemento esperado; cúmplice é o que dobra junto, e é determinado a cada dobrada. O cúmplice está no regime da espera, no regime do diálogo e não no regime dos fatos – não pode ser encontrado por meio de um baculejo que estabeleça como uma questão de fato a identidade última do comparsa. Em um diálogo mora a contestação de uma voz, e sua consagração. A cumplicidade não é uma garantia, não mora na anatomia, no carimbo, no grafismo do corpo avesso às Zweifel de um Wunderblock; ela pertence ao léxico da confiança que é por onde se avizinha a espera, a esperança, a solidão de um poema. A cumplicidade é também um exercício entre reféns – Ana Cristina Chiara me lembra da suspeita de Nietzsche de que no coração do teu amigo mora teu pior inimigo. E é porque mora em seu coração teu pior inimigo que teu amigo é cúmplice.
O que se passa entre quem escreve e quem entende – entre quem abre um diálogo e faz o gesto do poema de Celan – é da vizinhança da hospitalidade. Um poema bate à porta. A hospitalidade é exercida pelos sentidos de cada corpo, é o que concede à cada corpo a possibilidade de suplemento por meio do que Kant chamou de receptividade e que contrastou com a espontaneidade do entendimento. A espontaneidade não requer que nada em particular seja recebido, ela não está costurada por interdependências a nada do que os sentidos lhe proporciona. Por outro lado, a receptividade é o momento de anfitrião de todo exercício de entendimento. Porém o anfitrião não é o anfitrião de Rumi: na pensão do poema de Rumi, a alegria e a depressão devem ser tratadas como hóspedes de honra já que eles podem estar limpando sua casa para novas delícias e a malícia, a vergonha e o pensamento mórbido merecem gratidão porque foram enviados de alguma parte como guias. O anfitrião da receptividade pode encontrar nos seus hóspedes orientação e preparação, mas não é porque eles o preparam e o orientam que eles são recebidos. O anfitrião da receptividade tem antes algo daquele de Klossowski em suas Les lois de l'hospitalité, em Roberte ce soir onde o estrangeiro é esperado à porta como quem atravessa o horizonte para trazer uma libertação. O que move o anfitrião é, segundo Klossowski, uma curiosidade por vezes insensata: não se trata apenas de uma vontade de saber, mas de uma insatisfação com aquilo que se sabe – os sentidos se abrem como em uma excedência. Os sentidos são órgãos de excesso; são órgãos do que não está presente. Como os sentidos, os ouvidos: ouvir uma palavra é poder se tornar cúmplice – e a cumplicidade é um exercício entre reféns. Ter ouvido é poder receber um hóspede. Ouvir o poema pode ser o exercício de hospitalidade; e porque o poema é o encontro que é prefigurado de um modo verzweifelte, também ouvi-lo é estar prestes a um encontro – é estar à beira de um encontro, do outro lado do zweifel, do outro lado da dobra. Não existe suplemento, aperto de mão ou diálogo sem receptividade. E a receptividade da porta de Octave em Roberte ce soir é aquele em que o estrangeiro é ansiado. Há um sentido no parricídio de Platão (n'O Sofista) em que o Ser passa a ser dotado de receptividade, de conviver com uma exterioridade; o Ser se torna um entre cinco grandes tipos (μέγιστα γένη). Como um dentre cinco grandes tipos, o Ser se torna permeável – sujeito aos demais tipos; o nada se torna inteligível porque o Ser não é mais imune ao Outro. Não é que o Ser se torna dependente do Outro ou um complemento dele, mas que ele pode ser interpelado e é precisamente o Estrangeiro que Platão faz interpelar o Ser. A escuta desesperada do Ser é o que o torna pleno de si, repleto de si, supersaturado de si e aberto ao que está de fora dele – ao que atravessa o horizonte para lhe trazer uma libertação. O Ser que escuta desesperado então parece ser não uma existência que é um predicado real ou de posição, mas um existente hipostasiado que o primeiro Levinas entende como a destinação da existência. E Levinas entende que a evasão de um existente hipostasiado é já uma recepção como de Octave ao estrangeiro no horizonte.
O poema de que fala Celan está talvez antes no silêncio do que nos versos – ele começa no silêncio que antecede os versos, na sua ante-linha; e é só através desse começo que ele pode ser entendido. É da solidão desse começo que pode brotar um encontro – ou um desencontro (uma Nichtübereinstimmung), como uma palavra que não é endereçada a quem a ouve. O silêncio é partilhado pelos dois lados do encontro (e do desencontro): o lado de quem emite o poema e se arremessa por entre as falhas das superfícies das palavras e o lado de quem o recebe. O silêncio é aqui uma espera, uma espreita. Do lado da receptividade – da capacidade de ser afetado, da disponibilidade a uma voz, da escuta na espreita – também o encontro é uma acolhida perturbada e desconcertada como quem se atenta ao ranger da porta em uma parede sem porta. Não é que os dois lados de um aperto de mão (os dois lados de um poema) sejam simétricos – eles carregam a assimetria de um refém e de um raptor: quando eu espreito a escuta, eu demoro desesperadamente em cada verso do silêncio, em cada entrelinha que aparece com o barulho dos avessos de diálogo. A espera é cheia de verzweifelte como a de quem lança o poema. É a espera de um ato falho nos fatos, a espera de um trocadilho nas palavras prontas que levante a sobrancelha e comece um diálogo. O desespero é com a insistência das palavras prontas, aquelas que não se abrem solitárias a um diálogo mas se fecham acompanhadas do apelo pronto para serem deixadas sozinhas. A palavra pronta é a forma do avesso do diálogo iniciado – ela é aquilo que se escuta quando não há uma demanda de resposta, quando não pode haver encontro porque já tudo está encontrado. A palavra pronta é o barulho do silêncio dos diálogos; é por isso que é o avesso dos diálogos iniciados, dos poemas. Quem fica no lugar de escuta desesperado – o lugar que engatilha a cumplicidade – ouve a palavra pronta e se distancia dela, a percebe como uma linguagem na qual não há nada para se falar. Sua língua é uma língua morta que torna seu som repleto de uma morna incuriosidade, com a atenta exceção da espreita – a evasão, rastrear nas palavras repetidas os vestígios do poema que vem. A espera desesperada é a mesma de quem está prestes a lançar o poema, a mesma solidão, o mesmo mal sem nome, o mesmo mutismo - e talvez até a mesma passividade, a mesma vontade inerte de uma cumplicidade insuspeita. Azadi é a palavra pronta, carregando a falha que faz com que seus falantes pulem na garganta um do outro e façam a guerra. Nela não há mais nada a dizer, a não ser que dela surja um poema que se lance em um outro diálogo – sem o diálogo desesperado, não há nada a ser dito a ninguém. Talvez, como Celan escreve no seu Gespräch im Gebird, a linguagem fica imprópria quando ela é impessoal e torna todo diálogo impróprio. O dizer de alguma coisa é já a espreita de um encontro. E a espera de um dizer é uma espera pessoal.
A escuta desesperada é um exercício de receptividade que invoca o momento de hospitalidade na percepção. Não se trata de abrigar o que vem de fora como uma submissão do que vem de fora ao que está dentro – a hospitalidade não é a acomodação ao que há dentro; é precisamente a ruptura, o diálogo, o encontro. A história da receptividade humana está cheia de experiências postas de lado, de experiências descartadas, de experiências tidas como inapropriadas; de hóspedes recusados e de hóspedes silenciosos. O aparecimento de um poema reside no risco do desencontro, no risco de que o silêncio perdure, como perdurou o silêncio entre os intelectuais na Bahia depois de Oju Obá. No filme Tenda dos Milagres, de Nelson Pereira dos Santos, Nilo Argolo (Nina Rodrigues?), professor da faculdade, lê o livro de Pedro Arcanjo, e em seguida troca palavras com o próprio autor. Detecta os fatos que Arcanjo lista, mas eles não podem abalar sua teoria já que ele investiga, pensa e teoriza na Bahia mas não tem ali a escuta desesperada – dali não pode sair um encontro, apenas a acomodação, apenas o particular de uma instanciação mas jamais o singular intrépido, exterior ou descabido. Arcanjo lhe estende a mão para um aperto de mão e Argolo deixa a mão estendida solitária; como um poema pode ser deixado mudo, à procura de um encontro que não tem lugar. A troca de palavras entre Argolo e Arcanjo reflete uma etapa do pensamento colonial – o colonizador não é o curioso, o aventureiro, ou mesmo o descobridor à espreita, é na égide do desencontro que ele atua; ele ocupa um lugar de fala diante de quem no seu mapa ainda não tem lugar, ele ocupa o lugar de fala.
Em um texto antigo de Nick Land (“Kant, Capital and the Prohibition of Incest”), há a insinuação de que a colonização aparece como operação da percepção – e portanto da relação com o outro recalcitrante. Land encontra no tratamento da heterogeneidade da intuição pela receptividade kantiana o elemento que consolida um pensamento colonial: espere sempre menos resistência de quem você submete do que seria razoável esperar (e quando a resistência vier, não lhe dê ouvidos) Land faz ver rapidamente como a receptividade se torna um campo de batalha. O campo de batalha é o endereço do encontro. A espreita é também como a curiosidade um gesto que pode ser fatal – a receptividade que a voz de Arcanjo não recebeu é uma vulnerabilidade. É essa escuta a contrapelo que gera a cumplicidade; para quem está do lado da escuta a impaciência da espera desesperada tem a urgência da evasão a uma deportação: já não poder viver na língua natal, já não poder se anunciar como estrangeiro. A impaciência de quem espera o encontro é uma condição dos sentidos, uma condição dos ouvidos numa língua morta – a impaciência messiânica que faz dos dias vésperas.
Este é o lugar de escuta nos tempos sombrios. Diante da língua morta, um estado de alerta à flor da pele, um conhecimento corporal das veias da receptividade. Suely Rolnik (em “Furor de arquivo”) escreve sobre o engajamento do corpo na criação de alternativas ao arbítrio à partir das memórias imateriais nele entrenhadas. Pensando na geração de Lygia Clark, Helio Oiticica e Cildo Meirelles na América Latina, ela contrasta a urgência do poético diante da brutalidade com os espaços de diálogo em que os projetos da mesma época tiveram lugar na arte conceptual do Atlântico Norte. Rolnik se preocupa com o destino desse conhecimento corporal de resistência; ela teme que haja forças que impeçam a poética forjada no arbítrio dos anos 60 e 70 de seguir compondo encontros. Como se a experiência corresse o risco de ser neutralizada e, se esse for o caso, de não ser senão um item impessoal de um arquivo, uma letra dormida de uma língua morta. O que ela teme é um
epistemicídio que seria cometido em nome da universalidade do contemporâneo – que se aproximem as experiências simultâneas de diversos lugares – e de um furor de arquivo que faz perder a experiência poética que encontrou uma maneira sui generis de se entrelaçar na política.
É como se uma química para o corpo sob jugo corresse o risco de ser perdida, perdida enquanto poção que tem um efeito. A experiência não pode ser arquivada senão como uma liturgia, como uma mandinga. O desaparecimento da mandinga é também o desaparecimento de uma escuta corporal para os tempos sombrios. A pergunta de Rolnik é sobre a delicadeza da preservação de uma memória no corpo que a prepare para a impaciência – para a impaciência e para o desespero, para o compromisso com uma ignorância de fundo que ronda a ideia de que aquilo a ser encontrado é exterior, não está prefigurado, não está ensaiado. O corpo que abriga a paciência da impaciência, o desespero da espreita, a curiosidade do encontro é o que pode submergir diante da melancolia das palavras completas (e dos assuntos encerrados). Encerrar o assunto do arbítrio que passou – e de todos os diálogos que ainda ficaram encilhados e ainda monofônicos – é perder a escuta dos vestígios dos encontros que ainda não puderam ter sido precisamente quando os tempos se assombram outra vez. A experiência poética abre uma ressonância no corpo, abre um gesto de escuta. A disputa nanopolítica que é aludida por Rolnik tem lugar na receptividade: deixar afiadas as pontas das antenas dos corpos.
Celan diz de seu poema que procura o lugar onde não se encerram os assuntos que ele não existe; “o poema absoluto não existe, o que existe em cada poema real sem presunção” , ele diz, “é a interrogação inevitável, a presunção desconhecida”. (36) Assim como não há o poema absoluto, não há o endereçamento absoluto: o encontro e o diálogo desesperado podem ser sempre clandestinos, inesperados. Assim é a solidão e o mutismo da escuta, o desespero do desapercebido. O lugar de escuta desesperado é a ânsia de morder a língua dos outros para que as línguas saibam que não estão sonhando e de esperar que se abram às bocas, mesmo ao pé de uma parede sem portas. É a essa escuta que talvez Rolnik quer manter na imaterialidade do corpo. A escuta de alguma coisa que se endereça a uma escuta mas não tem endereço certo – pode vir de qualquer lugar, já que é uma procura de um lugar. Esperar um encontro é esperar por um endereçamento – desesperadamente como quem espera Dom Sebastião, quer venha ou não. O poema da pos-colonialidade brasileira ainda vai ser escrito. Ele vai precisar do corpo bicéfalo do desespero intrépido que é informado de parangolés, de ritos sem mitos, de babas antropofágicas. Mas a escuta que vai ao seu encontro é o estado de ansiedade curiosa de quem ainda vai ser cúmplice. Essa nervura da escuta é um alerta de corpo inteiro.
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