Sobre o fim do mundo do ano passado: o mundo acabou mesmo. O que sobrou não é outro mundo já que as coisas não tem mundo. Quando havia mundo havia expectativas de que as pessoas vivas fossem pelo menos cadáveres adiados que procriam. Adiados. As pessoas eram outra coisa. Entre elas, e com coisas de coadjuvantes, elas fariam as tramas que preencheriam seu tempo na terra. Do parto à cova. Habitariam uma terra bípede e implume, com seu cheiro, com seu estrume. Aquele terreno puramente humano de que falava Rilke: terra conquistada das coisas e não tomada pelos anjos. O terreno erodiu. Não há mais pátria humana independente e com um guarda de fronteira sorridente escutando o quarto movimento da última de Beethoven em um radinho de pilha (no volume máximo para que todos os que transitem escutem e regozijem). O guarda foi terceirizado, seu partido foi posto no poder sem ter poder, seu patrão dá ordens sempre mais esdrúxulas por meios sempre mais digitais, seu trabalho perdeu qualquer conexão com o que acontece à sua volta e ficou irreconhecível e irrelevante à compreensão (mas ele não precisa mais sorrir) e seu radinho foi substituído por um headphone com suas músicas favoritas (mas ele não pode mais assobiar). Ele gostaria de se sindicalizar, claro, e procura as assembléias dos GPSs, dos pardais de fiscalização eletrônica, dos alarmes sensíveis à presença humana e dos holofotes programados para poupar energia. Onde estão as minhas coisas, ele pergunta, e com a mão no bolso encontra seus remédios, seu telefone, seu controle remoto. Ele pensa, meus irmãos, eles estão comigo. Sejam abraçados. Ainda transitam pessoas, mas elas só mostram seu passaporte de humanos a revelia, instados por seguranças armados e com algum bom carimbo na mão. Nunca houve, é certo, a tal pátria humana. Foram poucos com a senha da filha de Elysium - e só iam à patria humana em seus dias de folga, quando não tinham que estar com rédeas curtas na mão. Agora o mundo acabou. Sobraram fumaças carbonizadas de todos os lados, um odor de enxofre e os poucos, ainda com as rédeas curtas na mão. Há que se amar o enxofre.
Sobre o fim do mundo do ano passado: acabou o Lebenswelt demasiado humano. Sobraram os refugiados vagando pelos ambientes das coisas, nos interstícios entre coisas e mais coisas, entre pedras que não amam e insetos que não seguem regras. Aquele terreno, livre de deuses, de porcos, de espíritos, de espasmos e de possessões em que a natureza era prato de comida, foi engolido pelo barro anônimo. Comam a natureza - é o que sobrou das promessas grandiloquentes de cumplicidade. Cada refugiado procura algum país, aprende a mover os lábios com a cacofonia da Babel das coisas. Tenho suores noturnos, mas já não sei pelo que ofegar. Pelo cisco? Pelo trator? Pelo elevador? Por um pote de tinta? Criado em um mundo de amor, devoção e ciúmes, imigrei para um mundo de mordidas, órbitas e emboscadas. A tinta brilha mais do que o poema impresso. Os ossos são mais visíveis que o bailarino - ainda bem que aprendi a querer coisas, a segurá-las com todos os meus dedos. Mas as coisas não confabulam comigo, elas falam direto às minhas falanges, às minhas unhas, aos meus calos. O campo de refugiados da pátria humana é uma réplica de uma república que funciona - de longe parece um parque, de perto parece uma mina de carvão. Mas é uma réplica: todos sabem que os papéis são falsos e a fraternidade entre os cidadãos é uma encenação sem arroubos líricos. Cada um espera ser adotado por um outro mundo, por um outro pó, por um outro tipo de barro emprestado. De nada adianta, na réplica de república, morrer de amores, de vergonha ou de compaixão. Adianta morrer. Tanto melhor é enfiar o dente em uma jaca, em uma carne de pescoço de javali. Só uma coisa pode nos salvar.
Sobre o fim do mundo do ano passado: acabou o Lebenswelt demasiado humano. Sobraram os refugiados vagando pelos ambientes das coisas, nos interstícios entre coisas e mais coisas, entre pedras que não amam e insetos que não seguem regras. Aquele terreno, livre de deuses, de porcos, de espíritos, de espasmos e de possessões em que a natureza era prato de comida, foi engolido pelo barro anônimo. Comam a natureza - é o que sobrou das promessas grandiloquentes de cumplicidade. Cada refugiado procura algum país, aprende a mover os lábios com a cacofonia da Babel das coisas. Tenho suores noturnos, mas já não sei pelo que ofegar. Pelo cisco? Pelo trator? Pelo elevador? Por um pote de tinta? Criado em um mundo de amor, devoção e ciúmes, imigrei para um mundo de mordidas, órbitas e emboscadas. A tinta brilha mais do que o poema impresso. Os ossos são mais visíveis que o bailarino - ainda bem que aprendi a querer coisas, a segurá-las com todos os meus dedos. Mas as coisas não confabulam comigo, elas falam direto às minhas falanges, às minhas unhas, aos meus calos. O campo de refugiados da pátria humana é uma réplica de uma república que funciona - de longe parece um parque, de perto parece uma mina de carvão. Mas é uma réplica: todos sabem que os papéis são falsos e a fraternidade entre os cidadãos é uma encenação sem arroubos líricos. Cada um espera ser adotado por um outro mundo, por um outro pó, por um outro tipo de barro emprestado. De nada adianta, na réplica de república, morrer de amores, de vergonha ou de compaixão. Adianta morrer. Tanto melhor é enfiar o dente em uma jaca, em uma carne de pescoço de javali. Só uma coisa pode nos salvar.
Nessun commento:
Posta un commento