Amanhã no ICC sul, AT 141, às 12:15 performo este texto, vestindo tomates, couves e bananas:
Uma etiologia do delírio pansexual
ou: como desejar objetos sem ser sujeito deles
e nem sujeito a eles
Sexo. Sexo certo. Sexo errado. Sexo errático. Sexo errante. Sexo errorista. Erótico. Uma errância. Todo delírio é sexual, dizem. Toda compulsão é sexual, dizem. Toda convulsão é sexual, dizem. Toda voragem é sexual, dizem. Toda patologia é sexual, dizem. Toda terapia é sexual, dizem. E dizem mais: sexo é o início, o fim e o meio. É o meio, é o meio, é o meio – Audre Lorde, a poeta do erótico desinteressado, repete que na conexão pela conexão é que mora Eros. Mas qual é o fim? Papai? Mamãe? Papai-Mamãe? O destino traçado precisamente pelas linhas, não das mãos – quem legitima a quiromancia? – mas das genitálias – uma genitomancia ou uma pubimancia? O destino traçado pela anatomia? Pelo balanço de hormônios – intocável? Uma combinação de hormônios, gestos, performances, roupas, práticas, sanções e linhas do corpo que tornem o sexo tolerável? O fim, qual é o fim, o sexo dócil, disciplinado, coreografado e de passos marcados? A patologia é sexual, dizem, e o fim da terapia, é sexual. De que sexo a que sexo vamos? O início, o fim e o meio. Qual é o início? A tormenta, a histeria, a neurose, o delírio, a obsessão – ou seja, sexo, sexo, sexo. Olhamos para as atormentadas, para os histéricos, para os neuróticos, para as delirantes, para os obsessivos e vemos sexo. Muito bem, que sexo vemos?
E quanto ao fim? O fim às vezes parece ser um enorme círculo incestuoso em que a espécie usa suas ferramentas eróticas para permanecer, para subsistir, para fechar o cerco contra o alienígena. Uma família humana. Onde está o sexo, perguntamos a família. E ela responde: ali, perto dos gametas, perto dos óvulos, perto da porra. E quando diz que tudo é sexo quer dizer que tudo se inicia na anatomia da genitália – e na correnteza de estrogênio, de testosterona, de progesterona, de feromônios – e termina na comunhão entre os humanos, de preferência para fazê-los crescer e multiplicar. Termina com o destino traçado e que precisa só de uma mãozinha para produzir homens naturais, mulheres naturais. O diagnóstico é sexo: ocorre alguma coisa naquela genitália que erra. Ou erra a cabeça que se acopla à genitália. É nela, e nos pensamentos inconscientes que ela carrega, que se busca o começo da patologia já que ela faz miragem, faz viragem, faz instinto, faz convulsão. Todo o corpo é uma alegoria da genitália: a genitália é o locus hocus-pocus de toda voragem, de toda compulsão. E ela é local sagrado de toda profanidade.
Marx tinha um gosto pelas forças produtivas. Elas são capazes de perturbar as sociedades as mais continentes. Na sua Crítica à Filosofia do Estado de Hegel, ele aponta para o contraste que institui o sexo humano em seu caráter sancionado, normatizado e endossado: o contraste com o sexo não-humano. Não se trata de apontar para o sexo dos porcos e seus longos orgasmos, nem para o sexo do pólen, idílico e produtivo, nem para o sexo dos anjos, eles tão intersexuais quando expõem suas pregas. Libélulas em bambus fazem. Centopéias sem tabus fazem. Os louva-deuses com fé fazem. Dizem que bichos de pé fazem. As taturanas também fazem com um ardor incomum. Grilos, meu bem, fazem. E sem grilo nenhum; Com seus ferrões, os zangões fazem. Pulgas em calcinhas e calções fazem. Tamanduás e tatus fazem. Corajosos cangurus fazem. É certo que cada uma destas bestas, gigantescas ou minúsculas, fazem de um jeito. E, porém, o sexo humano é coisa diferente – animal, bestial, oral, vaginal, anal, mas coisa diferente. Diferente: distinta e separada. O vão entre o sexo humano e o sexo não-humano é o que faz a diferença entre a grande família humana e todo o resto, não todo o resto do mundo, mas todo o resto de nós. Tamanduás, tatus, coelhos, cangurus, pulgas em calcinhas e calções são transformados em alegorias de um sexo centrípeto, concentrador, familiar. Todo delírio será trazido de volta à casa, ao quarto, à vida familiar passada e futura: sexo é o início, o fim, e o meio. Mas o sexo não-humano não é o sexo bestial, mas é antes toda a vida microsexual do inconsciente. Marx, como comenta Lyotard, aponta para a castração devida para entrar na espécie humana como agrupamento com normas sexuais e sanções sociais – com uma matriz de desejo e nojo. Trata-se de uma operação sobre as partículas microsexuais que transitam pelo nosso corpo, pelo nosso inconsciente, pelas nossas pernas, pelos nossos frenesis, pelos pêlos, pelas dobras, pelas pontas dos dedos. O sexo não-humano de Marx é a tectônica subcutânea do sexo humano, seus ingredientes e, também, o que há em seus bastidores.
O que fazer com os teus desejos? Com que pedaços do mundo dá pra fazer alguma coisa com teus desejos? Há uma engenharia das pequenas convulsões para fazê-las marcharem para uma ordem unida – o sexo humano. Marx não diz apenas a ordem hetero ou cis é uma ordem unida. O sexo humano que põe a seu serviço o sexo não humano registra os desejos como produção em prol da comunhão humana. Monique Wittig sobre sexo: a categoria de sexo é totalitária e para se provar tem suas inquisições, seus tribunais, suas leis, suas torturas, suas mutilações, suas execuções, sua polícia. Ela molda a mente como o corpo já que ela controla as produções mentais. Ela captura nossas mentes de uma forma que não conseguimos pensar fora dela. E se as produções mentais não envolvem sexo – aquele sexo sancionado – elas estão errantes: é preciso consertá-las ou, é claro, reinterpretá-las. Colocar os desejos e seus pequenos fluxos em linha, para isso a pornografia, para isso a família e, talvez, para isso a terapia. Vejam Wittig: ela intenta criar uma sujeita lesbiana, alheia ao sexo a que estão sujeitas as mulheres. E prega que paremos de falar de sexo para pararmos de falar de mulheres. E com isso poder deixar soltas as partículas desejantes, as minúsculas voragens, os embriões de compulsões – é que assim essas pulsões nanosexuais podem se acoplar a outras coisas, a outros gestos, a outros acontecimentos. Já Marx, denunciando o silenciamento do sexo não-humano, estaria insinuando uma pregação para que paremos de falar de sexo para que paremos de falar de humanos. É o alistamento do sexo não-humano a serviço do sexo humano que nos coloca a serviço da humanidade e de sua substancialização.
Giorgio Agamben, em seu O Aberto, traçou alguns dispositivos do que chamou de máquinas antropológicas – os mecanismos que procedem à separação do que é humano e do que não é (do que é bestial, animal, sub-humano). A quarta pergunta de Kant – Was ist Mensch? – é a abertura de um jogo de capturas. As diferentes máquinas antropológicas sancionam quem é humano suficiente, quem pertence a grande família, quem pode, enfim, ser tratado como um de nós – a partir do que pode então pertencer a muitos outros nóses, os de classe, nacionalidade, gênero, cor, correligionários e membros de um clube seleto. A primeira triagem é da máquina: gente, gente, não-gente, gente... A máquina antropológica que produz o sexo humano faz a triagem do que é feito com os microeros que circulam nos corpos. Tá genitalizado, familializado, trazido ao escopo sancionado de todo delírio? Ou é delírio desgovernado, substância sexual centrífuga, fissura fugidia? São estas microconvulsões dignas de uma vida casada, quotidiana e tributável? Os mecanismos de sanções desta máquina são muito entrincheirados: uma amante procura um amante, casados ambos e querendo alguma coisa mais do que pagar os mesmos impostos todos os anos. E se encontram: não se casam, mas são casáveis. E aparece também a repressão – não a repressão ao sexo não-humano, mas a repressão ao sexo humano: passar a mão na piroca do bofe, não fica bem, lamber um tomate, isso pode ser, beliscar a bunda da mina, melhor mais tarde, morder a couve – o que pode haver de errado nisso? Você tem fome de quê? Você tem sede de quê? Você tem sanha de quê? Não é o que você faz com o seu cotovelo, diz o Mestre Repressivo, mas onde você arrasta teu grelho, já que repressão é produção. A história do alistamento das partículas microsexuais tem suas nódoas: há as mulheres postas em nicab – as mulheres são sexo – e os guaranis nus – em nós tudo cara. Um discurso contra a transformação do sexo não-humano em sexo humano é um discurso de emancipação: da emancipação dos corpúsculos eróticos. Deleuze e Guattari, claro, tem um slogan pronto para o projeto de emancipação: à chacun ses sexes. Poderia ser também: retome suas fissuras, solte suas feras, libere suas voragens. Ou ainda: delírios, vocês não tem nada a perder senão seus grilhões. É que a máquina antropológica aqui faz um pacto com o capeta das voragens para que a humanidade possa constituir uma filiação. Sim, os desejos são centrífugos, são dia-bólicos, descentralizadores, mas... a filiação precisa dela. Viveiros de Castro chama isso de aliança demoníaca. É como a piada do meu irmão que pensa que é uma galinha: eu preciso dos ovos.
Pensar nos infinitesimais do desejo é uma estratégia que tem uma longa história. Leibniz falava dos pequenos deslocamentos que se produziam antes de qualquer acontecimento. Uma tectônica. Estas micropopulações abrem virtualidades – plêiades de possibilidades para alguma outra coisa acontecer. Teu pequeno desejo por um tomate, tua pequena ânsia por uma banana, por um mergulho, por uma textura, por um cheiro. De onde vêm? De toda parte. É o vento quente que é amante – dizia Sappho. De que armário você precisa então sair? Bissexual? Trissexual? Transexual? Pansexual? Dendrosexual? Hidrossexual? Pirosexual? Aerosexual? Geosexual? Os desejos – microscópicos e com a duração de um triz – podem ser regulares – ao meio-dia sempre tenho a fissura de lamber folhas amarelas – porém não seguem ordens, nem da natureza. E não têm regras. O nosso reconhecimento dele – quando nós os interpelamos e eles viram a cara – é que satisfaz regras. É que a polícia delega a cada sujeito os porretes, algemas e sirenes para sujeitar seus desejos. Ao invés de sujeito aos desejos os sujeitos ficam sujeitos dos desejos. Mas o desejo escapa. Errância. Como sair do armário e levar consigo as pequenas fissuras enclausuradas para que elas construam alguma outra macrossexualidade? Para sair do armário, é preciso encontrar a etiologia desses delírios longe da família, longe do sexo humano – talvez longe de tudo menos daquilo que eles são: vontades de espalhamento. Voragens são vertigens – vertigens se cura, mas elas merecem um cuidado: não existe desejo seguro, não existe desejo que dispensa cuidado – sine cura. Tudo é curável, mas tudo é contagioso. Ninguém aprende a ser gay – ou hijra, ou goiabinha, ou pansexual – mas ninguém nasce sabendo. Há que se contar com os fluxos que passam por nós, eles são delírios e não batem continência para as legiões enfileiradas, as famílias respeitadas ou para os baluartes da sanidade.
A cada um seus sexos. De que armário você quer então sair? Homossexual? Polisexual? Metrosexual? Cibersexual? Subsexual? Dendrosexual? Hidrossexual? Pirosexual? Aerosexual? Geosexual? Annie Sprinkle and Elizabeth Stephens são ativistas da ecossexualidade. Elas trepam com aquilo que o Greenpeace quer que seja deixado em paz. Elas têm orgasmos com os elementos. Trepam nas árvores para trepar com elas e ensinam a gozar com gravetos, com correntezas do rio, com ventos súbitos, com mudanças de temperatura. Elas estão a serviço dos microtons sexuais. Sim, e a serviço da Pachamama, que elas não querem mãe, elas querem amante. Pega a pachamama, trisca na pele dela, roça a pachamama – a pachamama é feita de chão e feita de lagarto roçando em jaguar roçando em condor roçando em tartaruga. É amante e é deusa, deusa do roça-roça. Annie e Elizabeth são teosexuais. Devotas. Hereges. Elas fazem rituais que são orgias e insinuam que o sexo humano perdeu o contato com os elementos – virou uma clausura, um amontoado incestuoso: uma família. Perdemos o aberto, perdemos o sexo do início – das luzes e das trevas – do meio – do vento batendo no vão entre os dedos do pé e perdemos a pujança de colher os delírios no campo. Exorcizar o sexo não-humano foi também criar o trabalho, aquilo que é coisa tão humana a fazer com a natureza. Marx entendia que ver o sexo não-humano e a produção natural ia nos unir a um corpo inorgânico comum. Ecologia, ecologia queer. Catriona Mortimer-Sandilands escreve em favor de uma retomada das potências dos elementos em erotizar e em politizar a vida sexual das pessoas. O delírio com o não-humano é uma força política, uma força perturbadora da matriz cis-heterossexual já que coloca as partículas microsexuais para se acoplarem com outros corpos, com outras temperaturas, com outras formas. É como se ela apostasse: vá ao mato e teus desejos vão se embaralhar. Mas rale nos galhos tortos, mergulhe pelas cachoeiras sem pensar que as pedras têm as formas das tetas das mulheres, dos dorsos dos homens ou a temperatura da tua família: elas têm texturas de pedras. São outras. Outras.
O dispositivo de instaurar o sexo humano instaura o trabalho. Máquina antropológica. E o trabalho da manutenção dos corpos: comer. Não trepamos mais com as folhas, com a couve, com o tomate, mas digerimos estas carnes para nos manter. Mas a comida é quase uma torneira aberta para os fluxos microssexuais dos bastidores dos desejos sexuais – na comida eles ficam largados ao léu. Mesmo pensando na banana como uma trosoba, na uva como uma xana, há mais ali, há umas texturas indisciplinadas, uns cheiros não-alinhados. E elas atiçam. Elas têm uma sanha. Mesmo devoradas. Um fio solto no tear da máquina antropológica sexual: a comida, que precisa ser comida, conta com uns fragmentos de sexo não-humano. Ela é devoradora. La grande bouffe. Apenas algumas partículas dos elementos soltos, mas elas atordoam.