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mercoledì 21 agosto 2013

Um vento em forma de espiral: o nada

Um vulto ronda não apenas meus ossos secando
vazios, ou uma ameixeira amaldiçoada,
mas os insetos.
Acho que o sal das pedras também, que as mãos
não ousam tocar. Despropósito. Não aquele que aconchega,
não a hospitalidade sem propósito.
O solo sem portas para abrir.
Sólido.
Taciturno e comiserado e entregue aos acidentes.
Uma perna quebrada, um dente perfurado.
Do alto da árvore onde Pierre Anthon de Janne Teller subiu,
ele come ameixas.
Já na minha frente, caem as folhas rosas.
Não vejo as folhas, vejo o vão.
O vão balança o rabo para mim, rebola, se oferece. Tenta.
Me entregar a ele vai me virar do avesso
já que meus buracos vão virar minha carne,
minhas veias, minha nervura.
Ou será uma entrega boca-a-boca para a qual toda espera é pouca?
O vão que parece grande para não preencher nada, o vão
atrai meu faro que nele há o que não há.
Sinto o cheiro do vulto. Não são ameixas.
Não são passadas.
Para respirar mais forte, cheiro a ponta dos meus dedos.
São gases que carregam a alma, o nada, as reminiscências.
Gases: o vento vazio entre todas as coisas.
Uma árvore que dá ameixas sem caroço
não larga nada pelo chão.



venerdì 16 agosto 2013

Trechos da coisa sobre a pele no Desfazendo Gênero, Natal

Não quero contar a minha história, isto seria contar a história do governo de mim, e portanto de um governante. Contar que pulsões me assujeitaram, que pulsões eu assujeitei. Sou sujeito sujeito a tudo. Contar dos vencedores e vencidos já que onde há governo ha campo de batalha. Minhas compulsões foram algumas crivadas, outras massacradas. Algumas delas me assolam sem eu sequer estender em sua direção vinte centímetros de trela. E aí é que são elas. As compulsões que ficam invisíveis. Que passam desapercebidas. Ainda que movam montanhas, que ajam à distância, que levantem órgãos, que encharquem salões. Foucault diz que na versão de Santo Agostinho, o descontrole da genitália foi a expulsão do paraíso. Mas então foi mesmo é a árvore do conhecimento. E a árvore da errância. Do conhecimento dos agentes do erro que, como traças, roem, roem, roem o sexo bem-nascido. O sexo dos governantes. Mas como contar a história dos governados que não seja a história de como eles foram governados? Uma pista: o desgoverno subjacente dos governados. O que eles fariam se não fossem colocados debaixo de uma matriz de inteligibilidade ou outra? E também quando apesar de toda a dedetização, eles seguem roedores, estraçalham, arrancam pedaços, escapam e não estão, por um lapso, a serviço do soberano que precisa ter a capacidade de sacrificá-los em nome de seu poder. O soberano precisa ter a capacidade de violência, uma capacidade de tirar as coisas do seu curso porque nem todo curso das coisas dá lugar para o soberano. (É este o tal lugar de fala?) O governo das coisas – como o governo de si – requer que seja possível o estado de exceção. Há governo porque há alguma coisa que precisa ser governada – que está sendo governada. Não quero falar de um lugar de fala que governa, queria antes deixar que fale aquilo não ocupa lugares de fala. Ocupa talvez lugar de falha. Lugar de erro. Ato de falha. Contar a história do cu é contar uma contra-história, do que nunca foi, do que se solta, do que elude. O cu é o negro da anatomia. É o subalterno onde se senta, que segura nosso peso e que não merece nem sequer que falemos de suas cagadas como falamos dos banquetes – ainda que as primeiras sejam, por vezes, muito mais baratas. Ele é o sombrio precursor, para nós deuterostômicos. Um ancestral das nossas peles, das nossas dobras, dos nossos orifícios, e nossa primeira relação com alguma coisa que entra e sai. A primeira porta aberta. Dela não esquecemos – mas ela é como Saturno, aquele que precisa ser substituído. Não mais a cagada: a fala.

Falo do que dribla a soberania da história humana – da história genital. Aquilo que pode estar a serviço mas não é o serviço dos roteiros com protagonistas genitais. Quero invocar os ingredientes, os outros pedaços da vida humana – os pedaços desumanos que poderiam ter formado a história de uma pansexualidade que não se fechasse em um apego às formas familiares. Que não fosse proprietária. Os ingredientes que são também precursores sombrios trazidos de um tempo onde não haviam espécies. Não haviam organismos fechados em conspirações de mesmos. De antes deste longo interlúdio darwinista, como chama Carl Woese: o tempo em que a vida se propaga e se transforma na velocidade das espécies. E sem espécies, não haviam gêneros. Os ingredientes que vêm de uma arqueologia profunda de um tempo de indiferenciados – uma arqueologia que precisa ainda ser inventada já que os microeros que herdamos deste tempo não são mais que o rebanho dos governados. A história destes ingredientes. Não de como eles foram governados. Não a minha história. Nem confissão e nem conficção. Não é sobre a noite em que eu troquei uma travesti perfeita por um pepino e uma garrafa de tequila. Não é nem sequer sobre os acontecimentos bêbados das madrugadas meio proscritas, não é mesmo sobre acontecimento algum. É sobre ventos. Os ventos que sopram mesmo que não movam as nervuras. Mas mudam a temperatura delas.

Invocar os ventos. Um pequeno sopro quente – dizia Sappho; da natureza dos contágios, das atrapalhações, das mudanças de temperatura, das intensidades. Ela sabia que assim vinham os microeros, da distância de um outrora que talvez só tenha existido se nunca houve começos. O erótico é um sopro na direção errada. É um pedaço de desgoverno. O desgoverno não é aquilo que escapa de uma mão e chega noutra. É aquilo que não chega. E porque não chega, tem parte com a abundância. Eu disse uma vez aqui no núcleo de germinação de pulsões que é Tirésias: a roupa errada do monge é a farda de Eros. O desgoverno também tem suas linhas de transmissão. Ele é andarilho pela pele. O ímpeto de conexão que tem a pele – a transfusão pela transfusão, de estados, de disposições, de miasmas. Fluxos invisíveis, apenas abertos às antenas xamânicas. A história do que não é visível, do que passa de pele em pele, de poro em poro, de voragem em voragem. Não a história dos corpos com fronteiras, mas o movimento de pulsões entre as linhas divisórias. As transgressões. As clandestinidades que atravessam os limites, como as partículas, os micróbios, os rastros que atravessam os corpos pele por pele, poro por poro. Não a história oficial dos corpos, mas a história friccional paralela das peles. É na fricção que transitam os desejos. Então não quero fazer nem confissão, nem conficção, mas talvez com fricção. É que a voragem tem a vocação das transmissões. Tem o gesto dos encontros cromossomiais. O cheiro da intensidade. É o que passa pela pele – como as pulsações, os calores, os cheiros, os sabores, os pigmentos de cor, as vibrações. A intensidade é como a musiquinha que fica na cabeça, que ressoa nos pensamentos, nas intuições, nos desvarios. É como os ritmos que se transmitem, que infectam – ainda que minhas curvas sejam diferentes das tuas, há micropulsões que se propagam das tuas dobras para as minhas dobras. Não há barreira que barre todas as micropulsões que carregam voragens, nem alfândegas, nem normas sexuais, nem caráter, nem a boa família, nem os bons modos. A intensidade vive das brechas que abre. Ela não é como as quantidades que são como blocos de pedra, ela é como um fluxo, como um líquido, como uma baba, como uma saliva, como uma ejaculação – quem controla ela? Ela abre seus caminhos, é andarilha sem rumo e que está sempre em chegança. Já que não chega. É assim a voragem. Tanto bate até que fura.

Errância. Erótica. É que a pele é uma antena local que vai se sintonizando por onde anda, por onde roça. É roçado. É a mágica que faz erguer o gênio da lâmpada. A trama dos desejos é subreptícia, ela pode ser batizada, trazida a família, colocada na ordem genealógica... mas ela surge da epiderme, da epiderme anal, oral, genital, da disposição de ser roçado, de ser muita pele, de estar à disposição da fricção. Em cada pedaço de pele tem alguns gênios da lâmpada. Tudo o que precisa de pele está exposto aos transeuntes, aos que transitam, às partículas de intensidade que vão e vêm. São os pequenos demônios que roem as substâncias. Traças. Vermes. Transmissores microssexuais. Desejinhos. Começos de compulsão. Eles sustentam as alianças – e as famílias, as instituições, as pátrias. São estes demonúnculos que deixa viva qualquer instituição. Viveiros de Castro contrasta a filiação (e o parentesco) com as alianças intensivas, demoníacas, as alianças que se impõem às leis da filiação – aquelas que se travam sem reconhecer os limites entre o humano – feito de normas – e o cruamente carnal. As alianças demoníacas são as que atravessam as fronteiras, que são impostas por uma microdiplomacia alheia às ordens estabelecidas. Elas se propagam como os vírus, como os germes, como os mosquitos e não reconhecem fronteiras. São forças que moram n’água e não fazem distinção de cor...

Por isso há cura gay. Claro, os desejos são infecções. Alguns estão à flor da pele, outros estão recônditos e podem precisar de muito roça-roça para emergir. São disposições. Não são posições fixas. Vão de um lado para outro. Ninguém aprende a ser gay, mas ninguém nasce sabendo. Errância. Erogênese. Ninguém aprende a ser gay – ou muxe, ou hijra, ou pottai, ou trans, ou nguiu´ – mas ninguém nasce sabendo. Não viemos aqui, diz Baudrillard, para reconhecer e sermos reconhecidas, viemos para receber e sermos recebidas. Recebam-me, ou me deixem receber quem eu tenha gana. O terrorismo é a arte do imprevisto. O errorismo é a arte do não-catalogado. Do que é um disparate e nem tem cabimento. Fora da casinha. O desejo ama esconder-se. A porno-errorista pensou que era sado-masoquista, que era goiabinha, que era travesti, quis ser baranga, boiola, Barbie e babadeira. Tava errada: era errante. O erro é pornô. Aquelas que tentam, tentam e são tentadas. Uma vida de tentação. Tentativa atrás de tentação. A porno-errorista também é terrorista, toca o terror do erro: e se eu não for hetero, quotidiano, fútil e tributável? E se eu não for o contrário de tudo isso, o contrário de qualquer coisa? A pornô-errorista concorda com Feliciano: há a cura gay. E há o contagio gay. E há o contagio hétero. E há a cura hétero. É que a microssexualidade não conhece fronteiras – e é dela, dos trizes que separam querer ter um pau para meter e querer ter um pau que me meta. A microssexualidade é a arte do roçado das peles.

Os espaços trans e os espaços inter são espaços das ligações. Mas a cura gay pornô-errorista não é a cura gay feliciana. Não é feita por especialistas em alguma scientia sexualis. É feita por uma intervenção microssexual sobre os desejos. E sobre a diferença como erogenética. A cura está na erogênese. Mas cura é um processo que vai para todos os lados – o cuidado. Sexo nunca é seguro: é aliança demoníaca. Seguro significa sine cura, sem cuidado, sem cura. A aliança demoníaca é a curadoria das partículas microssexuais. Feliciano sabe que sexo é infecção já que procura construir barreiras e barreiras ao contagio com sua homofobia. A paranoia anti-homossexual é a confissão da vulnerabilidade dos corpos às infecções das partículas de desejo. Em um vídeo recente sobre a violência dos travesticídios no Brasil, Luisa Marilac ameaça: mata um brota dez. A divergência é infecciosa. A diferença não pode ser contida com barreiras porque a natureza da coisa mesma é a fricção, é o contato de barreira com barreira. De pele com pele. Trata-se do conhecimento do erro. E o conhecimento do erro é a errância, é que o desejo é sujeito. A cura, o cuidado, é a prudência no caminho da errância que não encontra a segurança de uma identidade estabelecida como um ponto de repouso. Há cuidado em todo o caminho já que os desejos estão sendo curados, re-arranjados. Há sempre a possibilidade de uma outra configuração de partículas microssexuais – de uma outra articulação de voragens. A cura está na convocação da pele para que comece sua errância de toques. E novas voragens são novas diferenças, novos prazeres, e com eles novas compulsões. A diferença abre o caminho de uma espiral erogenética.

[...]

Ao largo dos órgãos, dos corpos, dos cabimentos e das substâncias que persistem há a superfície que cobre tudo. É pela pele que tudo, por mais substancial que seja, ocupa um espaço. O que há tem pele – pode ser tocado; os objetos carregam sua sensualidade quando se apresentam como uma face, como um pacote. E dentro da pele há mais pele, e mais pele e mais pele. O mais profundo é a pele, dizia Valèry. E se chega ao mais profundo pele por pele. É na interface que as voragens se decidem – e não há voragem que não nasça na aparência das coisas e que não persista sem fricção. Sem touchscreen. Galatzia diz: mi cuerpo es touchscreen, touchscreen, touchscreen. Acaricialo. Soy hibrido sexual, todo me provoca. Touchscreen. Toda a metafísica do porno-errorismo – a metafísica do efeminismo queer – se resolve na touchscreen. Não há mais metafísica do que touchscreen. A ordem substâncial hetero e cis é uma ordem de imagens, de corpos substanciais onde a aparência está carregada de normatividade. A alternativa é focar nas aparências, não nas aparências visuais das coisas, mas nas peles, nos objetos sensuais. Uma coisa pode nunca ser exaurida por nenhuma de suas relações com qualquer outra, mas o que não se exaure na coisa é sua pele – sempre contaminável de algum lado. Exposta. Aberta. Touchscreen. O âmbito do cuidado – e da insegurança. O errático é pele a dentro. Não é apenas que a disputa dos sentidos é uma disputa política, e se é uma disputa há muitas infiltrações – as vezes vemos coisas com as mãos, tocamos peles com os olhos. As palavras são preconceitos, dizia Nietzsche, as coisas também, complementou um Obscuro. A pele é o terreno da errância. E é o país de Eros: porque há pele, as coisas estão em um plano comum (em um p’lano comum, em um f’loor comum). O plano das peles que propicia desejos com outros nomes, compulsões sem etiqueta. Errância – seguir o rastro do erótico. A pele não tem dentro nem fora. Não tem âmago. Não tem essência. Não tem governo e não tem juízo. Por ela se espraiam as nascentes: os impulsos escorregadios.

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martedì 13 agosto 2013

revoada de tarde

Com uma faca de diamante na seca
e um tronco torto como os pensamentos ancestrais
cortei o metal fundido e abri seus lábios
ele cantou louvores claros ao roçado nublado
o barulho de portais galácticos arrombados
de uma só vez partiu a deusarada toda.

Nem eu Prometeu, nem a folha desalmada
me prometeu um caminho sem vestígios.
Mas eu vi a picada.

sabato 3 agosto 2013

O andarilho pelo plateau

Hoje estive andando como andarilho pelo eixo rodoviário sul, Brasília. De pouco antes das 7 até pouco depois das 8 entre a 16 e a 2. Encontrei gravetos, cigarros, camisinhas, anúncios de aulas de hieróglifos e muitos carros. Levei cachaça e água.

O Andarilho no Plano

Plano geral: o andarilho anda pela faixa central do eixo rodoviário do final da asa sul ao final da asa norte com um saco de pano a tiracolo. Camera dentro de um carro em zig-zag, entra no eixo, sai do eixo pela agulhinha, volta pela tesourinha etc. Microfone de bolso no andarilho. O andarilho para as vezes, tira uma toalha de chão do saco de pano e serve uma garrafa térmica e uns biscoitos Maria.

Texto

Um andarilho no plano.
Carrega uma trouxa verde. Traz suas coisas com ele, as coisas que vêm com ele, que não ficam pelo caminho, aquilo que lhe importa. Ele chega. Está chegando. Pisando neste plano. Chegando nesta encruzilhada.
O andarilho não sou eu, ele é um intruso, e também eu sou um intruso nele. Ele me assola. Ele me encontra. Eu topo com ele porque ele deixa raspas, restos, pistas, no meu corpo, que se move por esse plano. Ele está chegando. O plano é uma encruzilhada. Como a encruzilhada do que existe. Imensa.
Que lugar é esse? Que lugar é esse onde tudo o que existe chega? Onde o que existe está – onde o que acontece tem lugar? Um chão. Tudo que tem lugar, tem lugar em um chão – em um endereço, ainda que seja feito apenas de letras e números. Uma encruzilhada de endereços. Uma encruzilhada de chãos. Onde tudo pode ser encontrado - o bloco de apartamentos, o apartamento, o morador que procura pela cozinha alguma coisa para colocar na boca, a bactéria que vive no chão da língua do morador, a outra bactéria que vive na membrana das células da primeira bactéria e que agora se agarra a um cisco, ínfimo e que, talvez, não ame. Todos são andarilhos nesta encruzilhada. Todos existem de alguma maneira porque estão em algum lugar nela. Todos, andarilhos. Todos homens do saco: andarilho eu, andarilho você, andarilhos em carros, em rodas, em pneus, na borracha dos pneus. Andarilhos, mesmo os que não andam porque estar em um lugar existindo de alguma forma, é estar neste plano aberto, exposto ao céu, exposto aos infinitos elementos. Estar exposto. Perambular por sobre o risco deste horizonte aberto. Este plano sem cobertura que é coberto apenas por um céu azul que não cobre porque não é céu e nem é azul. Neste horizonte em que nada é protegido. Nada é coberto. Nada é especialmente protegido. Nem sequer nós de nós mesmos, até às nossas fúrias, nossas próprias fúrias, até à ela estamos expostos. Existir é estar em uma encruzilhada. A encruzilhada dos existentes, a encruzilhada do que existe. Do que existe também. Porque existir é coexistir. Ser é estar em companhia. (Do que mais seja).
No aberto. No horizonte aberto. O aberto é o que deixa entrar. Deixar entrar significa recolher, acolher. Deixar entrar é hospitalidade, hospitalidade silenciosa, uma encruzilhada que não fala; mesmo as cidades muradas, mesmo as fortalezas e as guaritas estão abertas e em silêncio. Porque estão no chão e abaixo do céu – expostas à linha do horizonte. São contamináveis. São infectáveis. Estão à disposição. Pela linha do horizonte sempre podem entrar os forasteiros – os bárbaros, os ratos, os vermes, os mascarados, os refugiados, os visigodos, as moscas, os sarracenos, os turcos, os bacilos, os terroristas. A linha do horizonte – do horizonte da encruzilhada dos existentes – não tem guarita. E tem muitas porteiras. Cada coisa que existe tem as chaves de muitas delas – e pode trazer a tona muitas outras coisas. Cada coisa que há tem chaves para este cofre – cada coisa pode dar lugar a muitas coisas. Tudo o que existe tem vizinhos. Porque existir é coexistir. Não está imune a nada já que basta que alguma coisa adentre este horizonte para estar aqui dentro – dentre as coisas que existem.
De muitas maneiras. De muitas maneiras as coisas existem. Os barulhos, o medo, os corpos, os carros, os volantes, os freios, as pistas, os desvios, a velocidade, o imaginário, o pó, o noumenal. Tudo o que existe, existe de um modo. Mas todos correm riscos – o risco é o interior mesmo desta encruzilhada. O risco está dentro do plano, dentro da pista, está no corpo do andarilho. Eu corro risco. Eu ando no risco. Eu perambulo pelo risco, pé ante pé. Existir é estar na ponta dos dedos.
Um andarilho se apossou de mim quando eu vi este horizonte. Ele me apareceu já morto com seu saco verde nas costas. O andarilho me disse: vá até a encruzilhada – até a grande encruzilhada. Vá pelo caminho estreito, o caminho aberto mas estreito. A estrada de todos os propósitos. Estar na encruzilhada por um mandamento, ou uma compulsão, ou uma escolha. Uma voz que vem de alguma parte do aberto. De alguma parte.
Os caminhos precisam ser abertos. E continuar abertos. Os caminhos que estão marcados no chão. Pelos caminhos alguma coisa pode ser encontrada. O andarilho anda – topa com as coisas, encontra. Tudo o que há pode ser encontrado. Chegar em um lugar onde há alguma coisa, onde alguma coisa tem lugar. Um andarilho não procura, ele anda. Ele não é movido pelo que ele busca, pela necessidade, pela falta. Ele produz um caminho. Ele abre um caminho.
Grita na rua a sabedoria
Nas encruzilhadas, nas pistas, nas ruas
Ela levanta a sua voz: até quando vocês vão amar a necessidade?
O andarilho abro um caminho, mesmo naqueles caminhos já abertos. Andando eu deixo os caminhos abertos. Andar é estar a disposição. Com toda a atenção de quem olha por onde anda.
Insolência, mesmo indolente, insolência.
Andarilhos trazem coisas nas suas trouxas. Têm suas companhias de caminho. Tem seus artefatos. Pequenos artefatos coletados, talismãs, amuletos, escaravelhos, conchas do mar, abridores de horizonte, abridores de latas, observadores do céu, cavadores de chão, fundamentos, estilingues, canivetes. Eles podem fugir porque podem andar. Não procuram. Andam.
Por isso eu ando. E ando a espera. A espera do último longo êxtase desleixado. Eu espero e eu encontro.
É assim que se espera um Messias. Um salvador. Uma segunda vinda. Uma última das vindas. Tudo o que encontramos pode ser um Messias. Há em tudo o que é encontrado uma messianicidade – do tamanho de alguma encruzilhada na encruzilhada de todas as coisas. Um objeto que eu encontro, pode me salvar de alguma coisa. Encontro pão, encontro água, encontro abrigo, encontro o seu afeto, o seu prato de comida, a sua hospitalidade, a tapioca que me ofereces, o café que me dás. Por vezes guardo as coisas no meu saco porque elas podem me servir depois. Ela podem me salvar não sei ainda de que riscos. Meu saco está cheio de messianicidade. Cheio do que eu já encontrei em outros chãos. Andar é encontrar. E se há um risco no interior de tudo o que há pela encruzilhada, há também uma salvação – não uma proteção, mas uma salvação. Cada instante requer um messias. Nem pode um messias que existe salvar alguma coisa a ponto de deixa-la a salvo de todo o resto e para sempre. O todo é aberto. O todo não pode ser trancado. O todo está exposto a tudo. Está sujeito a tudo. E o horizonte não se fecha, quem fecha o horizonte não está mais na encruzilhada – não é do tipo do que existe. Quem me trouxer a imunidade a tudo, me tira da encruzilhada. Tudo está na comunidade do risco. A messianicidade é o cuidado das coisas, um cuidado que não é aquele da segurança ou da proteção, é o cuidado da atenção. De quem olha por onde anda. De quem abriga. Ela vem de onde vem a hospitalidade deste plano aberto. O plano por onde passa tudo.
Tudo é lucidez e tudo absinto. (uma garrafa)
Estar jogado em uma encruzilhada, em uma encruzilhada existencial.
Há por toda parte elementos avulsos, ao léu. Existem espaços à toa no meio de toda ordem – meus olhos encontram estes pontos de fuga.
Eu perdi o amor pelas coisas com nomes. Prefiro os becos, os espaços entre as palavras, as entrelinhas.
Por que nos confortamos com os acontecimentos que recebem nomes (é doença, é roubo, é desmando)? Não fica menos sofrido porque a doença tem nome ou a opressão já foi diagnosticada. Mas as palavras prontas nos consolam quando queremos alguma coisa de mármore em meio às borbulhas do rio. Pelejar pelos bois soltos é abrir outras porteiras, desnomear as coisas pelo menos para que haja mais andarilhos e menos admiradores de estátuas.
O mundo não pode ser abreviado em parte alguma, nem numa coreografia de transformações, nem numa estratégia de combate, nem numa coleção de ordenamentos e menos ainda em um princípio universal de todas as coisas.
Há no mundo muitos pedaços que não se rendem a coisa alguma – nem à água, nem ao fogo, nem à terra, nem ao ar e nem a qualquer elemento da tabela periódica. E estes pedaços aparecem por toda parte. Não se rendem, mas infectam.
É que a encruzilhada não tem constituição, nem tem leis o horizonte, tem talvez muitos retalhos de leis, casuísmos, jurisprudências antagônicas, códigos em conflito. E é a encruzilhada que ama esconder-se entre os retalhos.
Já eu não sou mais que ponte.
No meio das coisas.
No meio.
No centro do eixo: uma personagem? Um andarilho.
Eu ando, eu encontro. Eu encontro carros, eu encontro pistas, eu encontro pedaços do chão. Encontrar uma coisa não é apenas encontrar uma descrição dela. É encontrar um horizonte aberto, algo que pode ser salvo de sua descrição. Algo que pode sair de sua órbita, como um astro desastrado, fora da estrela. Na natureza das coisas todas as órbitas desviam. É que as órbitas, como as descrições, são virtuais. É que delas também as coisas fogem. Tudo está no risco. À beira do acidente. À beira do horizonte de saída – por onde saímos de cena. As descrições são o que nos prende a um roteiro – não encontramos descrições. Nem o motorista descuidado, nem o andarilho incauto, nem o patrão insistente, nem o trabalhador explorado, nem o cobrador do ônibus, nem o germe me infectou. Encontramos tudo tendo um lugar, cada coisa aberta e exposta aos riscos: isto, este, aquele, ela, aquela, aquela que está ali. Apenas um lugar no meio da encruzilhada existencial das coisas. Encontráveis. Por onde eu posso andar. Já que existir é coexistir.
Encontrar.
Apenas as personagens do teatro aparecem para nós como descrições. Protegidas de nós. Imunes a todo o resto. O palco é um outro espaço. Ele sim está protegido: transcende à encruzilhada. O palco é um outro plano, não como este estendido sobre o horizonte existencial, mas planejado, como um plano piloto, como um mapa do plano piloto. No palco há apenas as descrições: caracterizações. Impersonificadas. O que é um palco? É um emaranhado de descrições impersonificadas – é um emaranhado, mas se emaranha estranhamente conosco. Um palco é um espaço outro – escravo de um roteiro, de um autor que embaralha as cartas. Um andarilho, descrito e impersonificado. Mesmo os andarilhos do passado nunca viveram na imunidade de um palco. Eles poderiam sempre ter escapado, parado, poderiam ter sido atropelados, enterrados. Poderiam ter parado de andar. Eles não cumpriam ordens de um único autor. Eles foram obra coletiva. No palco, há o autor – e um jogo de espelhos. No palco, há o autor no princípio e no meio e no fim. Fora dele, estamos a mercê da salvação, da encruzilhada e da messianicidade. E o Messias não pode ser autor já que existir é coexistir.
O homem do saco não é um autor.
O andarilho anda pelo seu plano, pelo seu eixo, pela sua pista. Solto.
Pessoa. Impersonificado.
Solto. Quando saímos soltos pela rua, nós fragmentamos o palco em cacos, espalhamos este espaço especial pela encruzilhada. Eu faço uma coisa existir – fora do espaço seguro, fora das bolhas de plástico, fora dos laboratórios, fora dos palcos.
Solta. No aberto.
No plano, na encruzilhada. Largada.
Eu – solto no horizonte.




giovedì 1 agosto 2013

Desejar o que não vive

"Veillir : la vie commence à m'oublier; la mort, à me reconnaître" Jabès, Le Livre de l'Hospitalité

Envelhecer, olhar o chão.
Ser tocado nos ossos pela solidez das coisas:
elas me rasgam, me quebram, me deformam.
Meu nódo norte: parado, imóvel.
Esquecer os corpos que trepam, que trepidam e
lembrar toda hora de devorar, engolir, deglutir
o inanimado.
Ele começa a ocupar meu pensamento ocupando seus temas
e a ocupar minhas pulsões sintonizando meus tubos digestivos.
A matéria mais bruta me tenta.
A intrepidez do que fica parado,
de um barco ancorado, de uma substância sentada.
O longo adeus: num lampejo, o vento bate em meus cabelos
com a audácia de sempre, e revolve minhas tripas -
desejar o que não vive.