Pra quem ama Balleckett, eis May B da Cie Maguy Marin.
Um esboço de início:
Alcançando Godot (Flor de Insensatez)
Uma superquadra. Uma cova. Noite. Estragão, sentado na grama, tentando tirar seu sutiã. Tenta com as duas mãos, geme, se destrembelha. Desiste, cansado, descansa, tenta de novo. Entra O Coveiro.
ESTRAGÃO: (desistindo de novo). Não dá. Não sai. Vou ter que vestir a mortalha de sutiã. Não temos tempo a perder.
O COVEIRO: Estou começando a concordar com esta opinião. Por toda a minha vida tentei me convencer de que eu ainda não tinha tentado o suficiente. Que eu ainda ia encontrar a paz dos vivos. Ah, você está aqui já?
ESTRAGÃO: Estou?
O COVEIRO: Estou contente de te ver, pensei que você não ia mais aparecer, que tinha que fazer outros corres...
ESTRAGÃO: Eu também.
O COVEIRO: Finalmente estamos juntos outra vez! Temos que celebrar isso. Mas como? (Pensa) Levante-se, deixe eu te abraçar.
ESTRAGÃO: (irritado). Não agora, não agora.
O COVEIRO: (ferido). Posso perguntar onde é que sua alteza passou a noite?
ESTRAGÃO: Numa cova.
O COVEIRO: Numa cova! Onde?
ESTRAGÃO: (aponta). Ali.
O COVEIRO: E eles deixaram?
ESTRAGÃO: Não, não deixaram.
O COVEIRO: Os mesmos de sempre?
ESTRAGÃO: Os mesmos? Não sei.
O COVEIRO: Quando penso nisso... todos estes anos... correndo atrás... tentando alcançar, mas para mim... (mais decidido) Você não é mais que um esqueleto.
ESTRAGÃO: E daí?
O COVEIRO: (triste). É muito pra uma pessoa só. (Pausa. Mais contente) Por outro lado, qual seria o motivo de desanimar agora? Deveríamos ter pensado nisso um milhão de anos atrás.
ESTRAGÃO: Pare de se lamentar e me ajude com essa coisa aqui...
O COVEIRO: Conseguindo um emprego e uma proposta de aluguel – nós parecíamos respeitáveis naqueles dias... Agora é tarde demais. O que você está fazendo?
ESTRAGÃO: Tirando roupa. Como todo dia.
O COVEIRO: Machuca?
ESTRAGÃO: (com raiva). Machuca! Ele quer saber se machuca.
O COVEIRO: (com raiva). Ninguém sofre a não ser você. Eu não conto... Queria saber o que você diria se tivesse o que eu tenho.
ESTRAGÃO: Machuca?
O COVEIRO: (com raiva). Machuca! Ele quer saber se machuca.
ESTRAGÃO: (olhos ao longe) Eu espero até o último momento. É o último momento que conta.
O COVEIRO: (entretido). O último momento... A esperança adiada provoca doença, quem disse isso?
ESTRAGÃO: Por que você não me ajuda?
O COVEIRO: As vezes eu sinto que estamos indo para o mesmo lugar. Como eu diria? Aliviado e, ao mesmo tempo, assustado. Engraçado. Nada a fazer. (Estragão em um esforço supremo consegue tirar o sutiã. Ele fica bolinando o sutiã, vira-o do avesso, remexe.) E então?
ESTRAGÃO: Nada. (depois de um tempo) O quê?
O COVEIRO: E se a gente se arrependesse?
ESTRAGÃO: Do que?
O COVEIRO: Umh . . . (reflete) Teríamos que entrar em detalhes.
ESTRAGÃO: De ter nascido? O Coveiro gargalha, mas logo se controla.
O COVEIRO: Nem ousamos mais gargalhar.
ESTRAGÃO: Privação terrível.
O COVEIRO: No máximo um sorriso. Não é a mesma coisa. Não tem o descontrole. Não podemos fazer nada a respeito. (Pausa)
ESTRAGÃO: (irritado). Que foi?
O COVEIRO: Você já leu a Bíblia?
ESTRAGÃO: A Bíblia . . . (reflete) Acho que deu uma olhada.
O COVEIRO: Lembra dos evangelhos?
ESTRAGÃO: Lembro dos mapas da terra santa. Bem coloridos. Bonitos. O Mar Morto era de um azul pálido... só de ver me dava sede. Eu dizia que era o lugar para ir passar a lua de mel. Nadar e ser feliz.
O COVEIRO: Você deveria ter sido um poeta.
ESTRAGÃO: Eu fui.
Silencio.
O COVEIRO: Ah sim, os dois ladrões. Você se lembra da história?
ESTRAGÃO: Não.
O COVEIRO: Te conto?
ESTRAGÃO: Não.
O COVEIRO: Vai fazer o tempo passar. (Pausa) Dois ladrões, crucificados ao mesmo tempo que o nosso Salvador, um...
ESTRAGÃO: Nosso o que?
O COVEIRO: Nosso salvador. Dois ladrões. Um supostamente foi salvo e o outro ... (procura o contrário de salvo) condenado...
ESTRAGÃO: Salvo do que?
O COVEIRO: Do inferno.
ESTRAGÃO: Eu tou indo
O COVEIRO: E ainda assim, como é que – espero que isto não esteja te aborrecendo – como é que dos quatro evangelistas só um fala do ladrão que foi salvo? Os quatro tavam na área mas só um fala do ladrão salvo. (pausa) Vai, Gãogão, devolve a bola, uma só vez, vai. ESTRAGÃO: (com entusiasmo exagerado). Eu acho isso extraordinariamente interessante...
O COVEIRO: Só um entre os quatro. Dois outros três, dois nem mencionam ladrões e o terceiro diz que os dois abusavam dele.
ESTRAGÃO: De quem?
O COVEIRO: Que?
ESTRAGÃO: Do que você tá falando, abusaram de quem?
O COVEIRO: Do Salavador
ESTRAGÃO: Porque?
O COVEIRO: Porque ele não ia salvá-los
ESTRAGÃO: Do inferno?
O COVEIRO: Imbecil! Da morte.
ESTRAGÃO: Pensei que você tinha dito inferno.
O COVEIRO: Da morte, da morte.
ESTRAGÃO: E daí?
O COVEIRO: Daí que os dois foram condenados.
ESTRAGÃO: E por que não?
O COVEIRO: Mas um dos quatro disse que um dos dois foi salvo
ESTRAGÃO: E daí? Eles não concordam, isso é tudo
O COVEIRO: Mas os quatro estavam na área, e só um fala do ladrão salvo, por que só um? Por que só ele?
ESTRAGÃO: Quem acredita nele?
O COVEIRO: Todo mundo. É a única versão que todo mundo sabe. ESTRAGÃO: As pessoas são macacos ignorantes. (Ele se levanta mancando, anda ao redor, olha pro horizonte. O Coveiro olha para ele e depois levanta e pega o sutiã e deixa cair.)
O COVEIRO: Pah! (Cospe. Estragão muda para o centro da cena, fica de costas para o público)
ESTRAGÃO: Vamos embora?
O COVEIRO: Não podemos
ESTRAGÃO: Por que não?
O COVEIRO: Temos que continuar correndo atrás
ESTRAGÃO: Pra que?
O COVEIRO: Pra alcançar Godot.
ESTRAGÃO: (desesperado). Ah! (Pausa) Tem certeza que ele está na nossa frente?
O COVEIRO: Ele disse logo ali.
ESTRAGÃO: Esta iminência diária do que estamos esperando me deixa ansioso.
O COVEIRO: Veste a mortalha.
ESTRAGÃO: Ainda não é hora. Estamos quase alcançando Godot.
O COVEIRO: Pode demorar ainda. Pode demorar demais.
ESTRAGÃO: Ele está por um triz. Ou então nós fizemos alguma coisa errada.
O COVEIRO: Ele não disse que tinha certeza de que nós o alcançaríamos.
ESTRAGÃO: E se nós não o alcançarmos?
O COVEIRO: Aí nós continuamos tentando amanhã.
ESTRAGÃO: E o dia depois de amanhã.
O COVEIRO: Possivelmente.
ESTRAGÃO: E assim por diante
O COVEIRO: O importante é que
ESTRAGÃO: Até que ele chegue
O COVEIRO: Você é cruel
ESTRAGÃO: Nós tentamos ontem, e o dia antes de ontem...
O COVEIRO: Ah não, você tá enganado
ESTRAGÃO: O que nós fizemos ontem?
O COVEIRO: O que nós fizemos ontem?
ESTRAGÃO: Sim
O COVEIRO: Por que . . . (com raiva) nada dá certo quando você está por perto.
ESTRAGÃO: Na minha opinião ontem nós fizemos a mesma coisa.
O COVEIRO: Aqui?
ESTRAGÃO: Eu não disse isso.
O COVEIRO: E então?
ESTRAGÃO: Isso não faz diferença, aqui ou na outra quadra...
Um esboço de início:
Alcançando Godot (Flor de Insensatez)
Uma superquadra. Uma cova. Noite. Estragão, sentado na grama, tentando tirar seu sutiã. Tenta com as duas mãos, geme, se destrembelha. Desiste, cansado, descansa, tenta de novo. Entra O Coveiro.
ESTRAGÃO: (desistindo de novo). Não dá. Não sai. Vou ter que vestir a mortalha de sutiã. Não temos tempo a perder.
O COVEIRO: Estou começando a concordar com esta opinião. Por toda a minha vida tentei me convencer de que eu ainda não tinha tentado o suficiente. Que eu ainda ia encontrar a paz dos vivos. Ah, você está aqui já?
ESTRAGÃO: Estou?
O COVEIRO: Estou contente de te ver, pensei que você não ia mais aparecer, que tinha que fazer outros corres...
ESTRAGÃO: Eu também.
O COVEIRO: Finalmente estamos juntos outra vez! Temos que celebrar isso. Mas como? (Pensa) Levante-se, deixe eu te abraçar.
ESTRAGÃO: (irritado). Não agora, não agora.
O COVEIRO: (ferido). Posso perguntar onde é que sua alteza passou a noite?
ESTRAGÃO: Numa cova.
O COVEIRO: Numa cova! Onde?
ESTRAGÃO: (aponta). Ali.
O COVEIRO: E eles deixaram?
ESTRAGÃO: Não, não deixaram.
O COVEIRO: Os mesmos de sempre?
ESTRAGÃO: Os mesmos? Não sei.
O COVEIRO: Quando penso nisso... todos estes anos... correndo atrás... tentando alcançar, mas para mim... (mais decidido) Você não é mais que um esqueleto.
ESTRAGÃO: E daí?
O COVEIRO: (triste). É muito pra uma pessoa só. (Pausa. Mais contente) Por outro lado, qual seria o motivo de desanimar agora? Deveríamos ter pensado nisso um milhão de anos atrás.
ESTRAGÃO: Pare de se lamentar e me ajude com essa coisa aqui...
O COVEIRO: Conseguindo um emprego e uma proposta de aluguel – nós parecíamos respeitáveis naqueles dias... Agora é tarde demais. O que você está fazendo?
ESTRAGÃO: Tirando roupa. Como todo dia.
O COVEIRO: Machuca?
ESTRAGÃO: (com raiva). Machuca! Ele quer saber se machuca.
O COVEIRO: (com raiva). Ninguém sofre a não ser você. Eu não conto... Queria saber o que você diria se tivesse o que eu tenho.
ESTRAGÃO: Machuca?
O COVEIRO: (com raiva). Machuca! Ele quer saber se machuca.
ESTRAGÃO: (olhos ao longe) Eu espero até o último momento. É o último momento que conta.
O COVEIRO: (entretido). O último momento... A esperança adiada provoca doença, quem disse isso?
ESTRAGÃO: Por que você não me ajuda?
O COVEIRO: As vezes eu sinto que estamos indo para o mesmo lugar. Como eu diria? Aliviado e, ao mesmo tempo, assustado. Engraçado. Nada a fazer. (Estragão em um esforço supremo consegue tirar o sutiã. Ele fica bolinando o sutiã, vira-o do avesso, remexe.) E então?
ESTRAGÃO: Nada. (depois de um tempo) O quê?
O COVEIRO: E se a gente se arrependesse?
ESTRAGÃO: Do que?
O COVEIRO: Umh . . . (reflete) Teríamos que entrar em detalhes.
ESTRAGÃO: De ter nascido? O Coveiro gargalha, mas logo se controla.
O COVEIRO: Nem ousamos mais gargalhar.
ESTRAGÃO: Privação terrível.
O COVEIRO: No máximo um sorriso. Não é a mesma coisa. Não tem o descontrole. Não podemos fazer nada a respeito. (Pausa)
ESTRAGÃO: (irritado). Que foi?
O COVEIRO: Você já leu a Bíblia?
ESTRAGÃO: A Bíblia . . . (reflete) Acho que deu uma olhada.
O COVEIRO: Lembra dos evangelhos?
ESTRAGÃO: Lembro dos mapas da terra santa. Bem coloridos. Bonitos. O Mar Morto era de um azul pálido... só de ver me dava sede. Eu dizia que era o lugar para ir passar a lua de mel. Nadar e ser feliz.
O COVEIRO: Você deveria ter sido um poeta.
ESTRAGÃO: Eu fui.
Silencio.
O COVEIRO: Ah sim, os dois ladrões. Você se lembra da história?
ESTRAGÃO: Não.
O COVEIRO: Te conto?
ESTRAGÃO: Não.
O COVEIRO: Vai fazer o tempo passar. (Pausa) Dois ladrões, crucificados ao mesmo tempo que o nosso Salvador, um...
ESTRAGÃO: Nosso o que?
O COVEIRO: Nosso salvador. Dois ladrões. Um supostamente foi salvo e o outro ... (procura o contrário de salvo) condenado...
ESTRAGÃO: Salvo do que?
O COVEIRO: Do inferno.
ESTRAGÃO: Eu tou indo
O COVEIRO: E ainda assim, como é que – espero que isto não esteja te aborrecendo – como é que dos quatro evangelistas só um fala do ladrão que foi salvo? Os quatro tavam na área mas só um fala do ladrão salvo. (pausa) Vai, Gãogão, devolve a bola, uma só vez, vai. ESTRAGÃO: (com entusiasmo exagerado). Eu acho isso extraordinariamente interessante...
O COVEIRO: Só um entre os quatro. Dois outros três, dois nem mencionam ladrões e o terceiro diz que os dois abusavam dele.
ESTRAGÃO: De quem?
O COVEIRO: Que?
ESTRAGÃO: Do que você tá falando, abusaram de quem?
O COVEIRO: Do Salavador
ESTRAGÃO: Porque?
O COVEIRO: Porque ele não ia salvá-los
ESTRAGÃO: Do inferno?
O COVEIRO: Imbecil! Da morte.
ESTRAGÃO: Pensei que você tinha dito inferno.
O COVEIRO: Da morte, da morte.
ESTRAGÃO: E daí?
O COVEIRO: Daí que os dois foram condenados.
ESTRAGÃO: E por que não?
O COVEIRO: Mas um dos quatro disse que um dos dois foi salvo
ESTRAGÃO: E daí? Eles não concordam, isso é tudo
O COVEIRO: Mas os quatro estavam na área, e só um fala do ladrão salvo, por que só um? Por que só ele?
ESTRAGÃO: Quem acredita nele?
O COVEIRO: Todo mundo. É a única versão que todo mundo sabe. ESTRAGÃO: As pessoas são macacos ignorantes. (Ele se levanta mancando, anda ao redor, olha pro horizonte. O Coveiro olha para ele e depois levanta e pega o sutiã e deixa cair.)
O COVEIRO: Pah! (Cospe. Estragão muda para o centro da cena, fica de costas para o público)
ESTRAGÃO: Vamos embora?
O COVEIRO: Não podemos
ESTRAGÃO: Por que não?
O COVEIRO: Temos que continuar correndo atrás
ESTRAGÃO: Pra que?
O COVEIRO: Pra alcançar Godot.
ESTRAGÃO: (desesperado). Ah! (Pausa) Tem certeza que ele está na nossa frente?
O COVEIRO: Ele disse logo ali.
ESTRAGÃO: Esta iminência diária do que estamos esperando me deixa ansioso.
O COVEIRO: Veste a mortalha.
ESTRAGÃO: Ainda não é hora. Estamos quase alcançando Godot.
O COVEIRO: Pode demorar ainda. Pode demorar demais.
ESTRAGÃO: Ele está por um triz. Ou então nós fizemos alguma coisa errada.
O COVEIRO: Ele não disse que tinha certeza de que nós o alcançaríamos.
ESTRAGÃO: E se nós não o alcançarmos?
O COVEIRO: Aí nós continuamos tentando amanhã.
ESTRAGÃO: E o dia depois de amanhã.
O COVEIRO: Possivelmente.
ESTRAGÃO: E assim por diante
O COVEIRO: O importante é que
ESTRAGÃO: Até que ele chegue
O COVEIRO: Você é cruel
ESTRAGÃO: Nós tentamos ontem, e o dia antes de ontem...
O COVEIRO: Ah não, você tá enganado
ESTRAGÃO: O que nós fizemos ontem?
O COVEIRO: O que nós fizemos ontem?
ESTRAGÃO: Sim
O COVEIRO: Por que . . . (com raiva) nada dá certo quando você está por perto.
ESTRAGÃO: Na minha opinião ontem nós fizemos a mesma coisa.
O COVEIRO: Aqui?
ESTRAGÃO: Eu não disse isso.
O COVEIRO: E então?
ESTRAGÃO: Isso não faz diferença, aqui ou na outra quadra...
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