Estou dentro de um avião e longe das janelas. Ao meu lado uma mulher equipada com uma bolsa preta, um relógio dourado, um sapato de salto. Do outro lado um homem de gravata, sapato, e um celular em que fala sobre convencer os clientes a comprarem seu produto. Mais adiante uma recém-nascida em um colo. Estou terminando de ler O Intruso de Jean-Luc Nancy. O intruso, ele diz, não é outro senão eu mesmo e o homem mesmo. Não é outro que o mesmo que não termina de alterar-se, ao mesmo tempo aguçado e esgotado, posto a nu e equipado em demasia, intruso no mundo como em si mesmo, inquietante onda do alheio, connatus de uma infinidade excretante. Neste momento, o recém-nascido começa a chorar. Ele é o intruso no mundo. Já condenado a ocupar um corpo e a estar a serviço de sua maquinaria. A levar seu corpo aos médicos, e de tê-lo, aceso ou apagado, ao alcance da sua mão. Nancy se acostuma à intrusão – seu coração transplantado se adapta aos seus outros órgãos, toda a química animal se acomoda aos seus fluidos. A intrusão lhe dá uma sobrevida. Sobreviver é ser outra coisa, trocar a água do aquário, a escama do peixe, suas vísceras; deixar ir as ruas, as calçadas, as fachadas, as vitrines, os bueiros e ficar sendo apenas um molusco agarrado a uma veia sanguínea que não transmite sinais de amor.
Lembro, na beira do lago, de outros tempos, talvez algum pó que desembaça a memória dos meus ossos. Também o esqueleto de Homo Sapiens que procria é meu intruso. Seus vestígios, seus ancestrais, suas disposições – alheias. Um repertório de instintos que me ficam indistintos. Intrusos. Lembro da conversa com o filho do viajante, colecionador de pedras. Ele me dizia do que gostava e do que não gostava, como quem quisesse propor ou perguntar uma coisa importante. Era um berreiro, um trincar de ossos, a beira do lago – o que ele queria, o filho do viajante? Meu espírito? Meu espírito é o intruso.
Deve ser sobre conexões, como dizia Empédocles – a minha natureza inorgânica. O amor deixa a intrusão menos solitária. Encontrar uma pedra, uma veia, um córrego, um pedaço de caminho que ame. Tento arrancar o cisco do meu olho. O cisco suspeito. Ele é intruso. Tento amar as pedras. Puxo a pupila. Puxo a retina. Meu olho virou um olho de coiote esbugalhado. De dentro do buraco aberto saem oceanos de lágrimas, salgadíssimas. Não ser abraçado pela pedra. O cisco entrou na medula. Ela fica inundada de água salgada. O avião ainda não levantou voo.
Lembro, na beira do lago, de outros tempos, talvez algum pó que desembaça a memória dos meus ossos. Também o esqueleto de Homo Sapiens que procria é meu intruso. Seus vestígios, seus ancestrais, suas disposições – alheias. Um repertório de instintos que me ficam indistintos. Intrusos. Lembro da conversa com o filho do viajante, colecionador de pedras. Ele me dizia do que gostava e do que não gostava, como quem quisesse propor ou perguntar uma coisa importante. Era um berreiro, um trincar de ossos, a beira do lago – o que ele queria, o filho do viajante? Meu espírito? Meu espírito é o intruso.
Deve ser sobre conexões, como dizia Empédocles – a minha natureza inorgânica. O amor deixa a intrusão menos solitária. Encontrar uma pedra, uma veia, um córrego, um pedaço de caminho que ame. Tento arrancar o cisco do meu olho. O cisco suspeito. Ele é intruso. Tento amar as pedras. Puxo a pupila. Puxo a retina. Meu olho virou um olho de coiote esbugalhado. De dentro do buraco aberto saem oceanos de lágrimas, salgadíssimas. Não ser abraçado pela pedra. O cisco entrou na medula. Ela fica inundada de água salgada. O avião ainda não levantou voo.
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