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domenica 28 aprile 2013

Um pequeno esboço dos primeiros passos de uma mal-adaptação Flor de Insensatez de um Beckett

Pra quem ama Balleckett, eis May B da Cie Maguy Marin.

Um esboço de início:

Alcançando Godot (Flor de Insensatez)

Uma superquadra. Uma cova. Noite. Estragão, sentado na grama, tentando tirar seu sutiã. Tenta com as duas mãos, geme, se destrembelha. Desiste, cansado, descansa, tenta de novo. Entra O Coveiro.

ESTRAGÃO: (desistindo de novo). Não dá. Não sai. Vou ter que vestir a mortalha de sutiã. Não temos tempo a perder.

O COVEIRO: Estou começando a concordar com esta opinião. Por toda a minha vida tentei me convencer de que eu ainda não tinha tentado o suficiente. Que eu ainda ia encontrar a paz dos vivos. Ah, você está aqui já?

ESTRAGÃO: Estou?

O COVEIRO: Estou contente de te ver, pensei que você não ia mais aparecer, que tinha que fazer outros corres...

ESTRAGÃO: Eu também.

O COVEIRO: Finalmente estamos juntos outra vez! Temos que celebrar isso. Mas como? (Pensa) Levante-se, deixe eu te abraçar.

ESTRAGÃO: (irritado). Não agora, não agora.

O COVEIRO: (ferido). Posso perguntar onde é que sua alteza passou a noite?

ESTRAGÃO: Numa cova.

O COVEIRO: Numa cova! Onde?

ESTRAGÃO: (aponta). Ali.

O COVEIRO: E eles deixaram?

ESTRAGÃO: Não, não deixaram.

O COVEIRO: Os mesmos de sempre?

ESTRAGÃO: Os mesmos? Não sei.

O COVEIRO: Quando penso nisso... todos estes anos... correndo atrás... tentando alcançar, mas para mim... (mais decidido) Você não é mais que um esqueleto.

ESTRAGÃO: E daí?

O COVEIRO: (triste). É muito pra uma pessoa só. (Pausa. Mais contente) Por outro lado, qual seria o motivo de desanimar agora? Deveríamos ter pensado nisso um milhão de anos atrás.

ESTRAGÃO: Pare de se lamentar e me ajude com essa coisa aqui...

O COVEIRO: Conseguindo um emprego e uma proposta de aluguel – nós parecíamos respeitáveis naqueles dias... Agora é tarde demais. O que você está fazendo?

ESTRAGÃO: Tirando roupa. Como todo dia.

O COVEIRO: Machuca?

ESTRAGÃO: (com raiva). Machuca! Ele quer saber se machuca.

O COVEIRO: (com raiva). Ninguém sofre a não ser você. Eu não conto... Queria saber o que você diria se tivesse o que eu tenho.

ESTRAGÃO: Machuca?

O COVEIRO: (com raiva). Machuca! Ele quer saber se machuca.

ESTRAGÃO: (olhos ao longe) Eu espero até o último momento. É o último momento que conta.

O COVEIRO: (entretido). O último momento... A esperança adiada provoca doença, quem disse isso?

ESTRAGÃO: Por que você não me ajuda?

O COVEIRO: As vezes eu sinto que estamos indo para o mesmo lugar. Como eu diria? Aliviado e, ao mesmo tempo, assustado. Engraçado. Nada a fazer. (Estragão em um esforço supremo consegue tirar o sutiã. Ele fica bolinando o sutiã, vira-o do avesso, remexe.) E então?

ESTRAGÃO: Nada. (depois de um tempo) O quê?

O COVEIRO: E se a gente se arrependesse?

ESTRAGÃO: Do que?

O COVEIRO: Umh . . . (reflete) Teríamos que entrar em detalhes.

ESTRAGÃO: De ter nascido? O Coveiro gargalha, mas logo se controla.

O COVEIRO: Nem ousamos mais gargalhar.

ESTRAGÃO: Privação terrível.

O COVEIRO: No máximo um sorriso. Não é a mesma coisa. Não tem o descontrole. Não podemos fazer nada a respeito. (Pausa)

ESTRAGÃO: (irritado). Que foi?

O COVEIRO: Você já leu a Bíblia?

ESTRAGÃO: A Bíblia . . . (reflete) Acho que deu uma olhada.

O COVEIRO: Lembra dos evangelhos?

ESTRAGÃO: Lembro dos mapas da terra santa. Bem coloridos. Bonitos. O Mar Morto era de um azul pálido... só de ver me dava sede. Eu dizia que era o lugar para ir passar a lua de mel. Nadar e ser feliz.

O COVEIRO: Você deveria ter sido um poeta.

ESTRAGÃO: Eu fui.

Silencio.

O COVEIRO: Ah sim, os dois ladrões. Você se lembra da história?

ESTRAGÃO: Não.

O COVEIRO: Te conto?

ESTRAGÃO: Não.

O COVEIRO: Vai fazer o tempo passar. (Pausa) Dois ladrões, crucificados ao mesmo tempo que o nosso Salvador, um...

ESTRAGÃO: Nosso o que?

O COVEIRO: Nosso salvador. Dois ladrões. Um supostamente foi salvo e o outro ... (procura o contrário de salvo) condenado...

ESTRAGÃO: Salvo do que?

O COVEIRO: Do inferno.

ESTRAGÃO: Eu tou indo

O COVEIRO: E ainda assim, como é que – espero que isto não esteja te aborrecendo – como é que dos quatro evangelistas só um fala do ladrão que foi salvo? Os quatro tavam na área mas só um fala do ladrão salvo. (pausa) Vai, Gãogão, devolve a bola, uma só vez, vai. ESTRAGÃO: (com entusiasmo exagerado). Eu acho isso extraordinariamente interessante...

O COVEIRO: Só um entre os quatro. Dois outros três, dois nem mencionam ladrões e o terceiro diz que os dois abusavam dele.

ESTRAGÃO: De quem?

O COVEIRO: Que?

ESTRAGÃO: Do que você tá falando, abusaram de quem?

O COVEIRO: Do Salavador

ESTRAGÃO: Porque?

O COVEIRO: Porque ele não ia salvá-los

ESTRAGÃO: Do inferno?

O COVEIRO: Imbecil! Da morte.

ESTRAGÃO: Pensei que você tinha dito inferno.

O COVEIRO: Da morte, da morte.

ESTRAGÃO: E daí?

O COVEIRO: Daí que os dois foram condenados.

ESTRAGÃO: E por que não?

O COVEIRO: Mas um dos quatro disse que um dos dois foi salvo

ESTRAGÃO: E daí? Eles não concordam, isso é tudo

O COVEIRO: Mas os quatro estavam na área, e só um fala do ladrão salvo, por que só um? Por que só ele?

ESTRAGÃO: Quem acredita nele?

O COVEIRO: Todo mundo. É a única versão que todo mundo sabe. ESTRAGÃO: As pessoas são macacos ignorantes. (Ele se levanta mancando, anda ao redor, olha pro horizonte. O Coveiro olha para ele e depois levanta e pega o sutiã e deixa cair.)

O COVEIRO: Pah! (Cospe. Estragão muda para o centro da cena, fica de costas para o público)

ESTRAGÃO: Vamos embora?

O COVEIRO: Não podemos

ESTRAGÃO: Por que não?

O COVEIRO: Temos que continuar correndo atrás

ESTRAGÃO: Pra que?

O COVEIRO: Pra alcançar Godot.

ESTRAGÃO: (desesperado). Ah! (Pausa) Tem certeza que ele está na nossa frente?

O COVEIRO: Ele disse logo ali.

ESTRAGÃO: Esta iminência diária do que estamos esperando me deixa ansioso.

O COVEIRO: Veste a mortalha.

ESTRAGÃO: Ainda não é hora. Estamos quase alcançando Godot.

O COVEIRO: Pode demorar ainda. Pode demorar demais.

ESTRAGÃO: Ele está por um triz. Ou então nós fizemos alguma coisa errada.

O COVEIRO: Ele não disse que tinha certeza de que nós o alcançaríamos.

ESTRAGÃO: E se nós não o alcançarmos?

O COVEIRO: Aí nós continuamos tentando amanhã.

ESTRAGÃO: E o dia depois de amanhã.

O COVEIRO: Possivelmente.

ESTRAGÃO: E assim por diante

O COVEIRO: O importante é que

ESTRAGÃO: Até que ele chegue

O COVEIRO: Você é cruel

ESTRAGÃO: Nós tentamos ontem, e o dia antes de ontem...

O COVEIRO: Ah não, você tá enganado

ESTRAGÃO: O que nós fizemos ontem?

O COVEIRO: O que nós fizemos ontem?

ESTRAGÃO: Sim

O COVEIRO: Por que . . . (com raiva) nada dá certo quando você está por perto.

ESTRAGÃO: Na minha opinião ontem nós fizemos a mesma coisa.

O COVEIRO: Aqui?

ESTRAGÃO: Eu não disse isso.

O COVEIRO: E então?

ESTRAGÃO: Isso não faz diferença, aqui ou na outra quadra...


sabato 27 aprile 2013

Desconforto

A tal música ao longe
domadora,
compartilhar o universo
o estacionamento,
o fidelidade à uma mesma espécie,
e cavar uma fossa
um bueiro
com a bota de couro.
Uma outra, uma outra. E estar
sem lugar.

Mordo.
Mas a mandíbula só treinou para ranger -
uma espécie, cheia de outras e
os ratos, ratos com nomes,
rostos nas moedas.
Encontro a moeda que comprou o leite, a carne e os ovos.
Ela não cheira.



domenica 21 aprile 2013

Restos de Watanabe

Estou dentro de um avião e longe das janelas. Ao meu lado uma mulher equipada com uma bolsa preta, um relógio dourado, um sapato de salto. Do outro lado um homem de gravata, sapato, e um celular em que fala sobre convencer os clientes a comprarem seu produto. Mais adiante uma recém-nascida em um colo. Estou terminando de ler O Intruso de Jean-Luc Nancy. O intruso, ele diz, não é outro senão eu mesmo e o homem mesmo. Não é outro que o mesmo que não termina de alterar-se, ao mesmo tempo aguçado e esgotado, posto a nu e equipado em demasia, intruso no mundo como em si mesmo, inquietante onda do alheio, connatus de uma infinidade excretante. Neste momento, o recém-nascido começa a chorar. Ele é o intruso no mundo. Já condenado a ocupar um corpo e a estar a serviço de sua maquinaria. A levar seu corpo aos médicos, e de tê-lo, aceso ou apagado, ao alcance da sua mão. Nancy se acostuma à intrusão – seu coração transplantado se adapta aos seus outros órgãos, toda a química animal se acomoda aos seus fluidos. A intrusão lhe dá uma sobrevida. Sobreviver é ser outra coisa, trocar a água do aquário, a escama do peixe, suas vísceras; deixar ir as ruas, as calçadas, as fachadas, as vitrines, os bueiros e ficar sendo apenas um molusco agarrado a uma veia sanguínea que não transmite sinais de amor.

Lembro, na beira do lago, de outros tempos, talvez algum pó que desembaça a memória dos meus ossos. Também o esqueleto de Homo Sapiens que procria é meu intruso. Seus vestígios, seus ancestrais, suas disposições – alheias. Um repertório de instintos que me ficam indistintos. Intrusos. Lembro da conversa com o filho do viajante, colecionador de pedras. Ele me dizia do que gostava e do que não gostava, como quem quisesse propor ou perguntar uma coisa importante. Era um berreiro, um trincar de ossos, a beira do lago – o que ele queria, o filho do viajante? Meu espírito? Meu espírito é o intruso.

Deve ser sobre conexões, como dizia Empédocles – a minha natureza inorgânica. O amor deixa a intrusão menos solitária. Encontrar uma pedra, uma veia, um córrego, um pedaço de caminho que ame. Tento arrancar o cisco do meu olho. O cisco suspeito. Ele é intruso. Tento amar as pedras. Puxo a pupila. Puxo a retina. Meu olho virou um olho de coiote esbugalhado. De dentro do buraco aberto saem oceanos de lágrimas, salgadíssimas. Não ser abraçado pela pedra. O cisco entrou na medula. Ela fica inundada de água salgada. O avião ainda não levantou voo.

mercoledì 10 aprile 2013

Mais um Nuno Oliveira

as crianças estão mortas
vivem nessa morte
os filhos dos outros
e os meus
por isso podem morrer
e eu

tudo o que se pode imaginar
não vai aconteçer
o medo das crianças mortas
não vai acontecer
porque já estão mortas
estão mortas as crianças
aliás nem chegaram a viver
só a imaginação morbida
é que nos pode obrigar a viver
estão mortas as crianças
no ventre da mãe
aliás só assim poderiam estar
sem medo de viver

as crianças e as mães
todas mortas
no ventre e na terra
cavalgam indomáveis
sem cavalo sem nada
sem estribeiras
sem nada
cavalgam fortes
incontroláveis

é tão certa a morte das crianças
como as ondas do mar
é tão certo que me faz sofrer
e eu tão perto
tão perto e tão longe
nesse mar
onde tudo é arido
esquecimento da lembrança
que me faz morrer
crianças mortas é aos montes
a morrer
a morrer de prazer

como é facil estar vivo
sem saber

domenica 7 aprile 2013

Excreto

do centro do meu cu brilham raios de sol por todas as minhas tripas.
uma floresta assobiando. Uma manhã.
Meus estribilhos, eu tento segurar com a mão, na mão não cabe.
esta, esta felicidade descontrolada
saíram aves, venenos, bifurcações, toda aquela merda esculpida em chão
roço minha carne na carne dos outros.
as carnes plácidas, que são outras
A borda das coisas. Vasta. Meus fios soltos.
Olho a Terra.

gosto do sol filtrado pelas nuvens.
no assento da praça, nas samambaias, na pedra espalhafatosa.
Nos cus dos juízes, presidentes, relatores,
da paisagem. Sabedoria fica nos túneis do ventre.
o plexo solar, o nexo
o poder muda de mãos, muda de sangue, de cu
eu sou toda uma soltura, só vejo aberturas,
só vejo abundância, polifonia, avião
as picadas na mata cerrada, vejo as galáxias
e sou um programa espacial pirata
feito de areia, de rachaduras, de concavidades.

não são os olhos, é coisa de pedra, é coisa de coisa:
canais desentupidos, abertos para os espasmos do sol.
Cagados.
por um buraco na gruta, o primeiro sintoma do sol,
aquele buraco é uma vicissitude tectônica
rasgo as pedras, inundo os caminhos, eu contra o chão -
aquele buraco fica escuro por quase todo o dia,
capta o mar aberto, ilumina.
tem uma eternidade química assanhando;
ela atravessa meus becos, minha boca
solicito,
não engasgo