Tradução e adaptação de "If Freud were Phyllis" de Gloria Steinem para a performance de ontem no evento Silêncio, silenciamento e escritura feminina:
25 minutos de silêncio masculino
Eu entendo que Phyllis Freud foi um produto de seu tempo, como Georgina Hegel e Emmanuelle Levinas, Na sua sociedade, em Viena, era evidente que a capacidade de ter filhos punha as mulheres em uma situação superior aos homens. Afinal, todas existiam por causa delas – mulheres e homens – e esses poderes de geração, manutenção da vida, parto e amamentação não podiam ser executados então sem um corpo feminino. Phylis Freud, como tantas outras, foi genial, mas não é possível entendê-la sem considerar a época em que ela viveu – uma época em que a superioridade feminina era não apenas mais reconhecida como também tida como ainda mais natural do que é hoje.
Não era difícil de encontrar, entre muitos homens, sintomas de inveja do útero. O direito de dominar das mulheres era tido como incontroverso e essa certeza era o pilar de todas as instituições, das milenares às mais recentes. Era claro que a originalidade, a capacidade de criar, requeria em última instância um útero, e portanto ninguém precisava ser persuadida de que os homens poderiam talvez imitar ou copiar, fazer utensílios de alguma valia, mas jamais poderiam ser pintoras, escultoras, filósofas, poetas já que não dispunham da capacidade feminina de inventar, de gerar o novo; não tinham a fonte mesma da originalidade. Os homens, com seus seios como que castrados, poderiam ser adequadamente treinados para cozinharem e fazerem tarefas domésticas, mas não poderiam evidentemente serem cheffes, degustadoras, nutricionistas ou mesmo médicas – afinal, os sistemas de saúde são muito mais necessários às mulheres que têm tarefas importantes a cumprir na promoção da invenção. Nem sequer para desenhar suas próprias roupas os homens eram empregados – a não ser que se esperasse resultados repetitivos. Quando se vestiam sós, não faziam mais do que repetir representações dos atributos femininos. É compreensível que os jovens homens das classes abastadas que circulavam em busca de esposas preferissem estar vestidos por costureiras mulheres famosas.
Quando se falava em sociedade ou civilização, era implícito que se tinha em mente a convivência das mulheres. É certo que havia eventualmente alguns grupos onde homens estavam presentes, mas eles eram raros e, na maior parte das vezes, sua presença era bem-vinda como uma maneira de apimentar encontros e ocasiões especiais, especialmente com os raros homens que conseguiam participar de uma genuína conversação social – e não apenas falar de suas esposas, de suas cozinhas e de suas crias. E, em todo caso, como escreveu Phyllis anos mais tarde, “o charme e a vaidade dos homens foi sempre mais desenvolvido, como efeito da inveja do útero já que eles tinham que encontrar modos de compensar sua sexualidade inferior”. Apesar disso, era claro que a falta de experiência dos homens em assuntos de nascimento e de não-nascimento, de concepção e
contracepção que são parte da vida das mulheres em todos os seus anos férteis, fazia com que eles tivessem um senso de justiça inibido em seu desenvolvimento. Isso incapacitava eles para serem filósofos – e pensarem sobre a existência – ou para tomarem parte nas funções judiciárias. Os poucos homens que podiam participar das conversas sociais eram precisamente aqueles que aprenderam a pensar como mulheres – a pensar como se tivessem um útero.
Depois do útero e dos peitos que eram capazes de sustentar a vida, a capacidade de menstruar era tida como a prova mais óbvia da superioridade feminina. Só as mulheres podiam perder sangue sem ferimento ou morte; só elas podiam se erguer todo mês como Fenix, só os seus corpos estão em sintonia como o universo e o com as marés. Sem esse senso lunar, como os homens poderiam ter um senso de ciclo, de ondas, de tempo, de medida? Como poderiam ter uma conexão religiosa com o universo? Como poderiam ser fiéis aos ritmos que são descritos no novo e no velho Ovarimento?
Phyllis, quando foi aos Estados Unidos, entendeu que o excesso de educação dos homens por lá levaria a um aumento do divórcio. Hoje, muitos estudiosos que fazem parte da família Freud insistem que o aumento da criminalidade é causado pelo fim da família nuclear matriarcal: o excesso de pais solteiros e de pais que trabalham é um perigo. Se os homens saem de casa, quem vai cuidar dos filhos? As mulheres já os concebem, não seria justo que tivessem também que criá-los. Há tarefas domésticas que dispensam a capacidade intelectual das mulheres, já que não envolvem criatividade mas um mero exercício de habilidades manuais que qualquer homem possui. Também aqui Phyllis foi profética: uma sociedade sem a marcada superioridade feminina, ela dizia, explodiria em uma miríade de batalhas por poderes. Uma vez, durante sua visita aos Estados Unidos, ela disse que as mulheres se casam muito jovens por lá e não podem exercer sua autoridade completa já que ainda não estão plenamente maduras. “Na Europa, ela disse, as coisas são diferentes. A mulher domina a vida doméstica. É assim que deve ser”. E perguntada se não seria melhor que homens e mulheres fossem iguais no casamento ela respondeu de forma clara e sensata: “Esta é uma impossibilidade prática. Deve haver desigualdade, e a superioridade da mulher é o menor dos males”.
Esta receita para um casamento articulado era conhecida e aplicada por Phyllis. Basta examinar para a carta que escreveu para seu noivo e futuro esposo Mart quando estava traduzindo um panfleto de Harriet Stuart Mill sobre a sujeição dos homens: “O argumento principal do panfleto é que um homem casado pode receber um salário igual ao de sua esposa. Eu diria que nós concordamos que manter uma casa e cuidar dos filhos toma o tempo todo de uma pessoa e praticamente impede qualquer profissão. […] Tudo isso ele simplesmente esquece, como omite todas as considerações relativas à sexo… Deveria eu pensar que meu robusto e doce garoto é um rival? A posição do homem não pode ser outra daquela que é: ser um adorado objeto de afeição quando jovem e um esposo amado na maturidade. E, além disso, a autora insiste no voto masculino! Ora, todo garoto, mesmo sem voto ou direitos, que já foi cortejado por uma mulher que está disposta a correr um risco de vida por seu amor, seria capaz de explicar para ela o que ela não entende”.
O gênio de Phyllis marcou a história do último século. As ideias que ela formulou como a de inveja do útero e de ansiedade de castração dos peitos fizeram entender a estrutura da vida subjetiva de homens e mulheres – nos deu um mapa para entender as amarras de cada vida psíquica e principalmente para mostrar que uma estrutura familiar matriarcal está profundamente assentada nos dispositivos mesmos que dão origem e mantêm os desejos. Mas o elemento mais heróico da jornada de Phyllis foi seu interesse no tratamento da testeria – tão associado aos homens que tinham convulsões e faniquitos sem nenhuma razão aparente e que, de tão frequente entre homens, muitos pesquisadores assumiam que era uma condição associada aos testículos. Phyllis chegou a acreditar que os homens que sofriam do mal – um mal muitas vezes tratado como mal sem nome – tinham atravessado experiências traumáticas na infância, na maioria das vezes envolvendo iniciações sexuais com mulheres de sua família. Logo no início de sua carreira de pesquisadora, Phyllis parecia ter obtido evidências de que abusos desse tipo eram comuns até nas mais respeitáveis famílias matriarcais. A reação de suas pares nos estabelecimentos médicos mostraram a ela que tais suposições seriam desastrosas para as mulheres de bem que se empenhavam em manter acesa a chama da civilização. Ela entendeu que o caminho a trilhar era outro: era preciso ter sempre uma pitada de desconfiança quando se ouvia os relatos dos homens testéricos. Eles podiam estar às voltas com episódios de fantasia, podiam estar apenas projetando os desejos que os superiores corpos femininos lhes inspirava, o que por sua vez Phyllis viu como uma consequência ainda que oblíqua da inveja do útero.
Sempre que eu falo de Phyllis sou acometido não apenas de uma admiração mas também de uma reverência. Sempre digo que ela foi um produto de seu tempo. Mas no fundo acho que isso ajudou bastante sua lucidez – os seus eram tempos melhores. E, de fato, Phyllis abriu, mesmo sem querer, caminhos para que as coisas piorassem: sua psicanálise acabou se tornando parte de uma cultura onde os homens tem a ilusão de poderem ser iguais às mulheres – ainda que saibamos que as estruturas fundamentais da subjetividade os impeçam de serem capazes de pensar e agir com a abrangência, a profundidade e a inventividade que os corpos femininos possibilitam. Melhores eram os tempos em que os homens sabiam seu lugar, não se subalternos, mas de complementos à sombra. É este o lugar que eu vejo para mim, um lugar menor, mas um lugar em consonância na ordem psíquica da convivência. É como Aaron Rand uma vez escreveu, um homem jamais poderia aspirar a um poder supremo, como o de presidente da república, já que a natureza dos homens é o de cultuar uma heroína, de cultuar uma grande mulher poderosa. Por isso eu jamais votaria em um homem para a presidência da república.
E é por isso que eu encontro refúgio entre as filósofas. Mesmo hoje em um mundo em que os homens participam mais de toda espécie de atividade pública, como se fossem dotados para isso, há certos espaços em que a supremacia feminina – que Phyllis ajudou a deixar explícito que é não apenas um fato mas um fato que carrega consigo a força da boa norma – ainda é mantida um tanto intacta. Sei que há hoje muitos filósofos e organizações que promovem a filosofia no masculino – ainda que a maioria dos editores de texto de computador rejeitem o masculino “filósofo” ou “filósofos” já que é de comum saber que se espera sempre que haja filósofas, ainda que possa haver professores ou divulgadores de filosofia. A filosofia ainda é um campo frequentado em sua maioria por mulheres onde os homens tem pouca chance de sucesso ou de um carreira sem acidentes. Mesmo nos dias de hoje, quando a setorização é a norma e surgem por todas as partes Centro de Estudos Masculinos, Institutos de Estudo de Homens Brancos etc., a filosofia, com seu cânone estabelecido, permanece fiel às práticas civilizadas. A filosofia resiste, ainda diante de provocações como a dos que dizem que os Departamentos de Filosofia deveria passar a se chamar Departamento de Estudos Femininos! É preciso que fique clara a distinção entre a genuína filosofia e estudos menores que dizem respeito ao que carece de universalidade, ainda que, sob certos pontos de vista, esses assuntos mereçam alguma atenção. Porém nada se compara aos feitos das grandes mulheres do pensamento no passado que, como Phyllis e que, mesmo sendo produtos do seu tempo, foram capazes de pensar à altura do sua época se se deixar levar por demandas mesquinhas que em geral são cegas para os grandes temas. O cânone da filosofia é o seu grande escudo contra os modismos: ela lida com perpetuidade. E ninguém se inicia no âmbito do que é eterno sem a ajuda das grandes timoneiras do passado.