Quibungos: A vingança do pó
Hilan Bensusan
O que que você fez para merecer isto? O merecimento apela para uma transação ainda que implícita: aqui se faz, aqui se paga. Mérito. Quem tem mérito tem uma recompensa espiritual devida, diz a etimologia de meritum. Meritum tira merecimento, e tira ter direito, por exemplo, à merenda. Mérito diz respeito a uma contrapartida por um serviço prestado. (E demérito ao uma contrapartida a um estrago ocasionado.) Meritum aponta para uma dívida, portanto, a um estado em que há um crédito – ter um mérito é como ter um crédito. Porém não se trata apenas de ter um crédito em uma instituição, em um sistema financeiro ou em um cartório de registros específico. O mérito é cósmico – ele aponta para uma justiça de transações cósmicas, recompensas cósmicas, contrapartidas cósmicas, serviços cósmicos, estragos cósmicos. O mérito se insere em um sistema de reparação, aquilo que associa à origem do mal – o mal surge de alguma parte e, de modo recôndito ou explícito, da ação de alguém. O mérito invoca alguma agência – se o que se passa comigo tem mérito ou demérito é porque há algum responsável pelas contas destas transações cósmicas. Aqui se faz, aqui se paga. Porém, como formulava em sua primeira lei da ecologia humana Garrett Hardin, não se pode fazer uma coisa só. Hardin ele mesmo, depois de pregar o controle populacional por anos, se matou aplicando-se auto-eutanásia e deixando 5 filhos.
O discurso do mérito é o discurso da agência – e se o mérito está disperso, também está dispersa a agência. Uma ação pode ter mérito em uma praça – por exemplo, junto aos beneficiários de energia mais barata – e demérito em outra praça – por exemplo, junto aos rios, aos patos, à Gaia. É por isso que Isabelle Stengers fala da intrusão de Gaia. Não é, como deixa clara a ideia de Lovelock de uma vingança de Gaia, que a Terra chegou agora e instituiu sua jurisprudência. É que seu tempo é outro. Ou bem, seu tempo era outro antes do antropoceno. A intrusão de Gaia não é primordialmente a intrusão de uma vingança, nem uma declaração de guerra, nem mesmo a descoberta de uma outra forma de vida que se mistura ela mesma com a vida mesma no regime cósmico sublunar. A intrusão de Gaia é sobre a animação. Sobre o que é animado o suficiente para se sublevar, para que a força que faz abaixar a cabeça seja também a força que devora.
Merecimento é cósmico. O demérito – aquilo que surge de um estrago ocasionado – é também cósmico. Não é só uma dívida em algum banco ou praça, é algo que pode ser cobrado de alguma parte qualquer. Mérito e demérito são transações cósmicas, mas quando dizemos o que que eu fiz para merecer isso?, invocamos alguma agência contábil, e ainda não sabemos qual. Pode ser, por exemplo, o grande árbitro de tudo, uma agência que pondera nossas boas e más ações e, por necessidade, faz mal quando castiga, faz bem quando premia. E mais, faz mal de acordo com o demérito e bem de acordo com o mérito. E é possível que o árbitro leve em consideração algo mais do que as transações entre o bem e o bem, entre o mal e o mal: pode ser que dê o frio conforme o cobertor. Trata-se do juízo de Deus, cósmico o suficiente. E pode ser que, por exemplo, haja muitas cortes de justiça, muitas praças e não se pode fazer uma coisa só. Há tantas instâncias contábeis do mérito e do demérito quanto agências – uma natureza sem agências é uma natureza onde não há mérito, nem crédito, nem árbitro, nem vinganças.
Vinganças e justiças invocam uma à outra. Nemesis é muitas vezes enviada de Dike e associada a Erinyes; elas atuam muitas vezes em bando. A indignação, a retribuição, a punição – as deusas do crédito e do mérito, do débito e do demérito; as deusas de um universo capaz de fazer promessas. Elas são guardiãs das promessas cósmicas. São agências contáveis – são instâncias de memória. Erinyes vem do sangue da genitália de Urano que caiu na terra quando Chronos o castrou. Dike é filha de Zeus e Themis (Hesíodo), mas talvez também de Nomos e Eusebia. Nemesis é filha da Nyx. Elas surgem do Tempo, do Céu, do Comando, da Ordenação e da Noite. São também as guardiãs de uma necessidade: de dia se faz sob o céu, diz o comando, de noite se paga sob o céu. Ou seja, elas invocam a agência no cosmos – a arché, comando e começo. Trata-se de um sistema que não é aquele de um agrupamento de humanos, diz respeito a todo o resto – méritos e deméritos são adquiridos no comércio com qualquer humano e com qualquer não-humano. A justiça é talvez o lado de dentro da vingança. Clamar por vingança é querer justiça – os justiceiros, que estão se movendo do lado de dentro, são os que se engajam nas vendettas. Olho por olho, dente por dente, sangue por sangue: o demérito cósmico nos faz despreocupar com a sorte dos demais, e nos tranquilizar com a nossa sorte – basta que a mereçamos. E começamos a fazer o cálculo diário das obrigações e permissões, o cálculo dos deméritos e das vinganças – e aquele dos prêmios. Nosso cálculo, já aqui, tem que ser ele também cósmico.
Até onde podemos estragar ou prestar serviços – e acumular méritos e deméritos? Talvez haja zonas de trégua – onde não haja agência, não há instância contábil, nem há crédito, demérito, dívida, dádiva. Onde não há agência não há genuíno comércio, de nenhuma espécie. Uma natureza inanimada é o exorcismo de Nemesis (e de Dike, e de Erinyes) – apenas uma agência que impõe sobre todo o resto suas leis, seus comandos. Nada, sob o manto da natureza inanimada, tem protagonismo para poder contar mérito, ter dívida, merecer ou se vingar. O inanimismo é um exercício de subserviência ontológica – os inanimados são aqueles que jamais transitam na vingança. A natureza, por outro lado, é uma espécie de Pax Americana onde ninguém reclama, ninguém protesta, ninguém concede – e ninguém merece. Viver na natureza é viver sem méritos. Aquilo que é tratado como natural, fica fora do espaço da justiça; fora de qualquer âmbito de reivindicação, de qualquer protesto. O que é posto na inanimação é retirado de qualquer política. A produção de inanimação é portanto um empreendimento teratogênico – e gera atrocidades congênitas. Arremessar alguma coisa ao pó é um empreendimento de quem cria cuervos. Os monstros que emergem do exorcismo da agência são como lava: ninguém pode medir, dizia Nietzsche, a inflamabilidade de um corpo. Exorcizar a agência é esmagá-la em uma economia restrita onde tudo é recurso – uma economia de proprietários e seus dividendos.
As propriedades, elas mesmas, transmitem mérito ou demérito para quem as tem, porém elas são imunes umas às outras já que não entram em nenhum contato que não seja aquele estabelecido pela leis gerais. Meritum, em certo sentido, se assemelha a munus – o termo em volta do qual Roberto Esposito apresenta uma etimologia pra comunidade e para imunidade e, com isso, apresenta as bases de uma biopolítica. Munus – ou munia – indica uma tarefa, ou um dever – ou ainda uma obrigação de prestar um serviço. Munus é um serviço aos outros, e aquele que o pratica adquire um meritum diante dos outros a quem este serviço é executado. Uma comunidade é uma distribuição de serviços e deveres – os agentes se entrelaçam porque tem alguma coisa em comum (um serviço conjunto que serve a todos). Por outro lado, aquilo que está imune está dispensado deste intercâmbio – não presta serviço, não demanda serviço. A natureza é o jeito de imunizar algumas coisas – a elas não se deve nada, elas não distribuem mérito ou demérito. Recursos não participam de comunidades, recursos não tem uma biopolítica – são servos ontológicos atrelados a uma suposta inanimação estrutural e a uma economia restrita em que a eles nunca cabe a preponderância.
A vingança é uma marca da animação – mas de uma animação tão disputada que pode ser a animação do próprio inanimado como atesta o comando de fidelidade ao pó: voltarás a ele e assim ele se vingará de tudo o mais que fizestes desde que dele saístes. Quando dele saístes, ele tornastes um recurso: o teu pó, a ousada alçada da tua ossada. Mas o pó clama a Chronos, que corta a genitália de Urano e deixa marcas de sangue na terra. É o decorrer dos dias que vinga – é o futuro que é o juiz. Mesmo onde não há animação, decorre o tempo e decorre sobre o chão. O chão e o tempo tem seus vulcanismos, os vulcanismos monstruosos das agências exorcizadas. O próprio pó que guarda em si a ameaça de um mundo animado onde aqui se faz, aqui se paga, onde regem as forças que calculam e distribuem méritos e deméritos. E se o pó, aquilo que é natural e inanimado, se erigir em um manifestação de Cthulhu, em um parlamento dos outros, retorcendo as coisas em um vulcanismo monstruoso como aquele que dá forma ao que passou anos sedimentando, faz sujeito do que estava por anos apenas asssujeitado?
Além do tempo e do chão, a lava animada da vingança também se faz de associação. O plural de inanimado nem sempre é inanimado: as alianças reconfiguram as forças e são as sociedades de moléculas que produzem agência – pelo menos se agência têm, por exemplo, os humanos. As associações são o que transforma pó em osso, osso em ossada, ossada em núcleo de uma alçada. Pó, pó, mais pó e pronto, enquanto durar esta rede de pós, aparece animação. Aos inanimados acontece o que acontece aos fracos, eles se associam. O monstruoso é a associação que não é reconhecida – aquela que agrega pessoas a mais pó, a agência que vem de ingredientes servis, o Golem que cresceu e que quando desaba se vinga daquele que o fez nascer e morrer. A larva da animação está por tudo o que pode ser acoplado, em tudo o que em uma conexão pode produzir vingança. Tudo guarda assim a semente de uma vingança – mais primeva e rústica das animações. E como as associações não se mantêm entre aqueles que se desmerecem, a matriz de mérito e demérito periga se espalhar por todo tijolo posto a serviço e por todo mandamento emitido. O espaço do mérito é também um espaço messiânico: o espaço da salvação. Derrida insinua que todas as coisas guardam uma messianicidade. Cada uma delas pode ser decisiva em um contexto onde nenhuma outra coisa poderia encaminhar uma saída; cada gota pode ser a gota d'água que dispara a vingança ou que remedia a sede.
Uma tonalidade recorrente da trama da vingança é a tonalidade da surpresa. De onde menos se espera: a vingança é um prato que se come frio. Ela demora. Ela pode demorar porque ela depende da castração feita por Chronos – e ela depende muitas vezes de que ela não seja mais esperada. Ela é de um tempo que não é esperado. Não se vinga o que se deve em um registro conhecido e estabelecido. Neste caso, trata-se de justiça, ou de finanças, ou pelo menos de contratos. A vingança é da hora do que está para além do esperado, do que está para além do repetido que é o futuro previsto. A vingança é da ordem do acidente: o monstruoso da tsunami e o da revolução. A origem da vingança é a origem do monstruoso: o monstruoso mesmo é da ordem do inesperado, do acidente, do que não cabe no repetido que é o futuro. O monstruoso é o mutilado – a vingança é o que retorce as normas da justiça já que é a justiça do lado de fora. É este o elemento mais incisivo do caráter cósmico da vingança, ela não atende a regras comerciais, nem espera o trabalho do reconhecimento. Ela nem sequer espera trabalho algum, ela é afeita aos becos, às moitas – Heráclito, dizem, disse mais recentemente que a política se esconde em moitas de natureza. Pois é assim a agência disfarçada do inanimado: imprevista. A vingança insere no presente a ordem do mérito e do demérito: não é apenas dos acordos que fizemos que virão os dias por vir, é também dos serviços que prestei, dos estragos que ocasionei. Do mérito e do demérito. O futuro, ou o prato que resfria, é também cósmico.
Uma personagem central da trama da vingança é a presença dos outros. Ela sempre vem, em algum sentido, de fora. Das esposas. Das putas. Das bichas. Das bruxas. Das abjetas. Das escravas. De Gaia. De Cthulhu, dos pássaros de Hitchcock, dos porcos de Porcile, da microbiota contra a antibiota, dos Triebe recalcados, dos ressentimentos terceirizados, dos excluídos do pensamento e das cabeças abaixadas. E, de súbito, aparecem aqueles que agora se vingam – que retomam um tempo, que fazem alianças cósmicas, que pareciam inanimados. Este é o ato da vingança: inesperadamente aparece uma outra matriz de méritos e deméritos e é isso então que eu fiz para merecer isso. A emergência de uma vingança é a emergência de uma outra narrativa – de uma outra protagonista e de uma outra narradora e de uma outra justiça. É esta a abjeção: aquilo que era apenas barro virou matéria rebelde, o que era matéria-prima virou devoradora. O dia da caça. O merecimento pergunta por uma agência contábil: sob os olhos de quem mereço o que aconteceu? A trama da emergência de uma nova animação é a trama do que surge daquilo que foi imunizado e que agora aparece desmerecendo o que antes estava apartado do jogo cósmico das retribuições ou que simplesmente aparece fazendo a pergunta que inaugura a política: por que existe alguém e não apenas ninguém? Ou ainda: que que você fez para merecer isto?
Os Bantos tem um nome para um tipo especial de monstro – e com o nome uma lenda, um pedaço de ontologia dos afetos e um chamariz para algum sentimento. É o Quibungo. O quibungo é uma imagem do assustador, e o assustador nos põe a examinar nosso mérito e nosso demérito: que que eu fiz para merecer isto? O quibungo pertence à categoria geral dos monstros devoradores – os bichos-papões. Ou seja, ele não discrimina o que come por meio de que castigo quer exercer – ele engole tudo. A classe dos devoradores tem como matriarca – ou pelo menos como patrona – o chão, que transforma resíduos em coisas novas que terminam na boca do chão. É de onde saem os frutos, os tubérculos e dos grotões as águas. É chão o engolidor de tudo que é sublunar, é Gaia na sua forma Nanã, a mãe antiga. A lama que devora porque cobre as vísceras da Terra – o Tártaro. O quibungo pertence a classe dos que devoram indiscriminadamente, é como um chão, uma lama, uma pele movediça. Onívoro, porque come tudo. E ele pertence também à classe dos monstros de sopetão: os que aparecem a qualquer hora, inesperados. É portanto um monstro devorador e de sopetão – quem o vê de frente, não vê mais que um rosto – muro branco e buraco negro, mas antes muro negro e buraco cintilante. O quibungo é negro como tudo o que é banto. Ele se apresenta de frente como um rosto humano, como um rosto que é um outro que pode ser aniquilado mas que pede que não o aniquilem. Um rosto de olhar e de palavra. Um rosto que se apresenta, que se expõe, que se entrega. Porém na nuca, o quibungo traz suas mandíbulas devoradoras. Na nuca, que é a parte do corpo que se expõe apenas quando a cabeça abaixa, quando a agência fica soterrada.
A nuca do quibungo é a cara da vingança. A nuca: uma articulação do ânimo, da altivez, da subserviência – e uma articulação do recôndito, do sopetão. Outra vez, o sopetão, ou o acidente, carregam uma monstruosidade – fora do ordinário. A vingança é uma irrupção e sua tectônica pertence àquela das urgências. Ela instaura um outro ritmo porque instaura uma outra agenda, uma outra matriz de importâncias e um outro tempo. O quibungo aparece nos relatos coletados por Nina Rodrigues como um monstro que coleta pessoas (sobretudo crianças – uma forma de comer um prato frio) e as enfia na goela da nuca. No relato da caçada ao quibungo, o quibungo come as crias da cachorra sempre, e então ela se disfarça e esconde as novas crias. O coelho informa ao quibungo que a cachorra está disfarçada vestindo uma saia e sentada sobre um buraco onde estão seus filhotes. Segue-se uma caça onde os homens matam o quibungo e a cachorra mata o coelho. No outro relato, um homem chega com uma espingarda e mata o quibungo e recupera seus filhos de dentro da goela da nuca do monstro. O quibungo é uma marca do terror, do terrorismo. Ele escolhe suas vítimas, a vingança é uma urgência e só enquanto urgência ela se articula com a contingência. As oportunidades aparecem ao Quibungo – mas ele parece ter uma direção. Ainda que uma direção monstruosa como o cuidado de quem executa a vendetta ao esquadrinhar toda uma localidade para se certificar de que não tenha sobrado nenhum daqueles que precisam ser justiçados. A ira da vendetta é cósmica: ela não conhece limites como nenhum vulcanismo conhece fronteira.
A boca devoradora do Quibungo está na nuca. A nuca é uma espécie de fronteira. A nuca é o lugar onde a coluna se conecta ao crânio, é onde há um vão entre a parte do monstro que planeja e a parte que o mantém ereto. A nuca é onde a cabeça começa a ficar erguida e onde começa a se reclinar – é o vão onde a ação e o pensamento se desconectam. No quibungo, ele é um buraco que morde como uma boca – dentada. É o órgão da altivez, da negação e, também, é onde no quibungo irrompe a negação da negação. É na nuca que a decisão econômica acerca da servidão ou da violência, da sobrevivência ou da rebeldia tem lugar. Ela é o órgão da emancipação, e a emancipação no quibungo é dentada. Trata-se de uma nuca dentata. Uma nuca de devoração, com os dentes da vingança. Os hindus contam que o demônio Adi queria vingar seu pai e se apresentou a Shiva como se fosse Parvati, mas com sua vagina cheia de dentes pontudos. A vagina dentata também aparece nos relatos de súcubes que são seguidoras de Lilith e que seduzem os homens e devoram-lhes a genitália. A devoração da genitália, como arrancar a genitália é marca da vingança na Odisséia. Entre os intrumentos anti-estupro, aliás, há aqueles que procedem pela vingança dentata como o rape-axe de Sonnet Elhers que é uma camisinha feminina dentada. A vingança é uma mordida. A mordida que é a marca de uma animação recôndita, de uma animação desconsiderada. A vagina não é só território a ser ocupado – ela tem o protagonismo do que mostra os dentes. Assim também o quibungo, que mostra os dentes através do órgão da servidão (e da rebeldia). O protagonismo do pescoço negro aparece também na forma da nuca dentada. Da servidão que se vinga devorando.
A cabeça que abaixa e levanta, pela nuca, guarda uma tensão mandibular: no quibungo ela se abre como uma boca – dentes que devoram. O quibungo tem uma segunda boca, uma boca recôndita, subjacente: a boca que se cala ou que engole. Quando a cabeça se ergue, a boca fica fechada. Quando ela se abaixa, ficam seus dentes abertos, a boca da nuca escancarada e, de acordo com o tamanho da força que abaixa a cabeça, por ali pode ser engolida qualquer coisa. Na nuca o quibungo tem a boca dos seus ossos, de sua medula. E a boca está na nuca porque por ali passa a escolha pela sobrevivência. E é pela nuca que se cortam cabeças; através dela se enforca, se guilhotina. Por ela se decepa, se decapita – é na nuca que o corpo se torna acéfalo. A cabeça cortada, por sua vez, pode adquirir uma animação sem nuca, uma animação sem movimento – e o corpo acéfalo sem orientação. O pescoço marca uma vulnerabilidade. Vulnerabilidade, porque carrega. Saint Denis é este bispo que carrega a própria cabeça, fazendo com as mãos a tarefa da nuca. A nuca apenas segura a cabeça – mas é justamente disso que se trata, orientar o corpo. Conectando a coluna vertebral ao cérebro, a nuca é onde está o atlas, que carrega nas costas o globo.
O atlas é a primeira vértebra cervical e também a primeira vértebra da coluna. Está conectado com o processo odontóide – ou seja, o atlas é o reverso da boca, é as costas da mandíbula. A nuca é assim como um prolongamento da boca, como aquilo que se come e se dejeta fosse prolongado naquilo que ergue e que rebaixa. O eixo da boca à nuca é um eixo de vulnerabilidades. Em ambos os lados, um vão que permite movimentos de enorme força – a força da devoração, a força da humilhação. São os músculos potentes que executam as tarefas da sustentação. O atlas é aquilo que deixa a cabeça cair, o a mantêm, e para isso precisa da flexibilidade de uma boca que abre e fecha, de uma dupla articulação que sedimenta e desaba, que acumula e solapa. O vão do reverso da boca no atlas do quibungo é dentado. É a boca da surpresa e a boca da vingança: ela devora para se vingar. A boca das costas é o reverso da boca da frente porque ela devora – e destrói o que está do lado de fora – não para produzir o que está dentro, mas antes destrói o que está fora – e para isso coloca coisas para dentro. No Congo e em Angola, o quibungo é simplesmente um lobo. E ele é da classe dos lobos – e dos lobisomens, das cucas. Mas na Bahia, o quibungo virou antropófago. Ele se tornou um bicho-papão negro que engole para se vingar.
Desta antropofagia se aproxima Marcelo D'Salete na sua novela gráfica Cumbe. O quibungo habita a fazenda, perto dos mocambos onde ficam os escravos – é por ali que circula o quibungo, sua monstruosidade não é povoamento das matas, é artifício da escravidão, da desanimação. O quibungo aparece nos desenhos de D'Salete como parte de um vulcanismo negro, e um vulcanismo antropófago que está pronto para se contrapor às práticas colonizadoras nos becos, nas quebradas, nos breus. Ao mesmo tempo, o quibungo é antopofágico porque se posta como monstro negro pós-colonial, como resíduo de devoração de uma boca que contra-diz o que lhe disseram quando fizeram o lobo virar um ente inanimado. Esta boca reversa poderia dizer alguma coisa assim, com Oswald de Andrade: Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago: o Visconde de Cairu: é verdade muitas vezes repetida. Mas não foram os cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo porque somos fortes e vingativos como o jabuti.
O quibungo é um monstro pós-colonial e antropófago. Ele tem a cara da vingança – da vingança do que foi feito pó. Daquilo que foi engolido e que, sim, tem uma boca subjacente, uma boca na retaguarda. Pensar o quibungo é pensar que há sujeito no abjeto e que há muito mais matrizes de mérito e demérito do que congregam os sistemas de justiça. O quibungo é uma intrusão – como a de Gaia, como a do suposto inanimado, como a do pó – é uma intrusão do inesperado. Neste sentido, ele é um vingador para a pós-colonialidade, com sua antropofagia e com seu vulcanismo negro. Ele é monstruoso, mas esperar calorosamente por ele é esperar pela deglutição que vem.
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