1. Sim
A natureza, com seu porrete de condão,
rege teus atos, quer aceites ou não.
De nada vale fugires dos campos baldios,
encerrar-te sozinho em quartos vazios,
ou cercar-te de asfalto, metal e cimento.
Ela adentra sempre onde entra o vento.
A natureza, com suas lettres de cachet,
está em teus ossos, fezes, pois tudo vê.
As dores árduas ela inventa e cura
e deita com teu corpo junto à sepultura.
Chama os vermes audazes que fazem mofo.
Destrói o que fez, espera e faz de novo.
A natureza, que governa por decreto,
tem caprichos, birras e desígnio secreto.
Quer todas as coisas ao alcance das garras;
as quer títeres, lacaias ou escravas.
Carregando pedras, no ombro ou na cabeça;
para que ela deleite, se enoje ou se aborreça.
A natureza, indômita soberana cruel,
mostra-nos verdes largos, frutas e mel.
Feitos de sangue, cadáveres e destroços;
penas macias cobrindo secos ossos.
Ar, luzes, brancas garças - só brutalidade
Em tudo, paciente, ela guarda temeridade.
A natureza, ditadora caprichosa,
cria meios sem fins, como a pétala na rosa.
Pequena folha sinuosa que murcha ou voa
aparece, balança, fenece, sempre à toa.
Nem sabe, a astuciosa, o que persegue
por toda porção de pó a ela entregue
A natureza, rude patroa intolerante,
distribui fins sem meios. O animal errante,
perdido entre bestas a comer-lhe a carcaça,
ela enche da fome que entrega-o a quem passa.
Mata a mordidas frias, sangra e rói
E alimenta quem destrói o que destrói.
A natureza é assassina indolente.
Arranca-te os dias da mão noturnamente.
Despeja sobre ti novos dias que não queres,
e neles te afoga um dia, um dia reles.
Pois ela, a gananciosa proprietária,
aluga-te horas e as retoma de forma sumária.
A natureza, despótica majestade,
jamais consulta, receia ou tem piedade.
Os sonhos grandes mata sempre de um só golpe,
ou estraçalha sob pretas patas no galope
de outros sonhos, ralos, fracos, subordinados,
pequenos pesadelos, pelos ventos espalhados.
A natureza, intocável, mas sempre tirana,
não explica o que faz, se repete, sempre insana.
Governa com leis frígidas e estrangeiras
que esmagam a cada dia criaturas inteiras.
Surda autoridade, seus dentes não falam: mordem.
Em silêncio, ela esconde caos atrás da ordem.
A natureza invade, ocupa, espalha o terror.
Não aceita argumento, arranca o caule e a flor.
É agente secreto em teus foros mais íntimos;
massacra tuas certezas, teus desejos ínfimos.
Encurrala o que sentes e nas pedras o mar.
Dita o que pensas e quando paras de pensar.
A natureza, que vem em hordas visigodas,
amordaça no tempo tuas pretensões, todas.
Derrete os continentes, seca as cachoeiras,
entope-te de vontades ainda que não queiras.
Enruga a tua pele, desbota todas as tuas idéias.
Derrete todas as almas, as crentes e as atéias.
A natureza, feita de leis sem justiça,
tortura seus súditos enquanto seduz, atiça.
Faz achares belo o que é a tua calamidade,
cobre os ossos de relva, o horror de tranqüilidade,
emprega carrascos feitos de horas e metros
e ordena-lhes que enfeitem de flores os féretros.
A natureza que age de olhos fechados,
trucida os ossos dos animais assassinados.
Enlaça as certezas puras nos teus instintos
e cada dia enfia a tua esperança em labirintos.
Escraviza-te com desejos que são só dela
e arranja que sua verde mandíbula aches bela.
A natureza, Richelieu feita de fruta doce,
inventa o que foi e o que foi faz que não fosse.
Amarra boas razões em nós de fomes e sedes.
Onde não atentas ela tece largas redes.
Põe em teus gens ingredientes incongruentes,
e larga-te em um planeta ao lado dos teus parentes.
A natureza, uma caudilha inatingível,
governa o necessário, legisla o possível.
Despedaça as horas grandes em minutos
e as enterra para que dêem carne seus frutos.
Todo o ar que respiras está dela enpesteado,
fede seu odor, exala seu cátaro machado.
A natureza, que nunca faz inquérito,
pune todas as coisas com culpa ou mérito.
Arrebenta as amarras que antes erigira,
amassa, massacra, sem que ninguém interfira,
resseca as folhas, os córregos e a vida.
Dona da lei, fica solta, nunca é punida.
2. Não
A natureza, tua morada, tua pele,
não deixa que fervas, tua mão congele.
Oferece de toda cor muitos matizes,
e dá-te remanso, mesmo que não precises.
Não cobra pelo tempo, pelo ar ou pelo vento
que sossegam em teu corpo todo lamento.
A natureza, teu sustento generoso,
faz teus ossos firmes, nariz curioso.
Descansa teus pensamentos, acuados,
e de teus desesperos faz dias passados.
Sempre tem recantos para teus refúgios,
e admite por muitos anos teus subterfúgios.
A natureza, que encontra meios diferentes,
faz paisagens novas para toda gente,
inventa embrulhos de genes todos os dias
e a todos concede algumas regalias.
A natureza é vento e água e fogo
e deixa que tudo dure um pouco.
A natureza, que consola o que desola
permite que a pises sempre com tua sola.
Mesmo em tuas gaiolas, ela floresce
e se queres que faça, ela obedece
- deixa que praguejes contra seus frutos
e dá tinta pros teus muitos estatutos.
A natureza, que não pede só concede
é tua matéria prima, teu corpo, tua sede.
É matéria-mãe, tia, netos e sobrinhos
e para cada vez que não encontras teus ninhos,
ela faz uma fruta ou erva espasmódica
e para teus humores dá a tabela periódica.
A natureza, de que é feito todo cuidado
enche o planeta de vale, monte, prado;
faz o vento pôr fogo de vez em quando
para que não te apegues ao teu mando.
A natureza, que nunca te abandona,
não te esquece, é pastora, nunca é dona.
A natureza, alheia a teus mal-tratos
aceita que digas que é dela os teus fatos,
decora tua injustiça e tua indiferença
e te mantém por anos longe da doença;
ela empresta-te tudo sem cartório
o ar para que vivas e o jasmim, o acessório.
A natureza, que pressente o que não sentes
deixa que te enganes, sabe que mentes
tolera tuas ordens e tuas conjecturas
deixa-te com tuas amarras pela alturas,
onde voas com tuas asas ela segura
quando vais ao chão e a insultas, ela atura.
A natureza, dedicada à filantropia,
te enfeita, te distrai e te faz companhia
é casa sem portas, sem trincos, sem muros
sem garantias e nem hipotecas, nem juros.
Põe-te a morar na sacada de uma janela
sempre aberta. E fica sendo tua sentinela.
A natureza, kalakuta universal
resiste e invade qualquer poder colonial
não te impõe fronteiras nem mandamentos
deixa que penses livre e que nos teus aposentos,
que tenha sonhos de histórias que duram milênios
ela te dá o tempo, e oferece oxigênios.
A natureza, fada madrinha de prontidão
tem horror ao vácuo, nada deixa em vão
te descansa, te enxágua, te purifica
em forma de melão, noz ou mixirica
sopra em teu corpo núvens de segundos
que às vezes erguem para ti dias fecundos.
A natureza, cenário de quase tudo
ao teu lado é sempre forma ou conteúdo
nunca abandona ou esquece qualquer pessoa
te acompanha quando te ocupas ou estás à toa
deixa a cabeça pensar e lhe dá uma órbita
e tempo a varrer qualquer angústia mórbida.
A natureza, que sabe de teus segredos,
está no sangue e no alcance dos teus dedos,
controla os relógios, reúne as distâncias,
espalha as espécies e reparte as ignorâncias.
A natureza nunca deixa nada estrangeira,
traz ventos íntimos até sem eira nem beira.
A natureza, pão, prato, toalha e mesa
solta o predador mas cuida da presa.
Ela não se aborrece, não se irrita
e todo dia brota ou arranja coisa bonita.
Nunca cansa, a natureza, de te dar ar
e quando sofres, dá-te água para chorar.
A natureza, feita de barro de utopia,
inventa alternativas verdes a cada dia,
alheia a tua rotina e surda para as ofensas,
ela espera quieta nos temas que pensas.
Sabe que é todo maior que qualquer parte
e traz para si tudo o que afirma a arte.
A natureza, origem de todo estupor,
faz a ti, teu chão e é teu fio condutor.
Produz possibilidades mesmo que não vejas
e deixa crescer mangas perto das tuas igrejas.
A natureza que nunca te pede a passagem
é também o caminho, o comboio e a viagem.
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