Buca L'umbrello em tempos de prosa publica minha fala com ovos e Solange Tô Aberta no Transarte na sexta passada. Video em breve.
Voragem por viragem
Transarte, a nostalgia do desejo pelas águas turbulentas
Desejo é compulsão. Arte é convulsão. Se inspira, é conspiração. Pelo menos um bocadinho, um bocadinho de compulsão, de convulsão, de conspiração. Uma semente atirada ao vento – é como atirar ovos. Gosto de atirar ovos. Cada ovo é um ovo. Mesmo não sendo mais do que um ovo. Pequeno, descabido e todo fechado nele mesmo. Gosto de atiçar ovos. Gosto de ficar atiçando os ovos. Fazendo cócegas no futuro. O desejo é quando o futuro me faz cócegas. Me faz rachar as paredes de algum ovo. Creck por creck, triz por triz, eclosão. Eclodem pintos, flamingos, pelicanos, avestruzes, pássaros dodôs e combates, arruaças. É da natureza do que acontece eclodir alguma hora. Fica por um triz, fica por meio triz e aí, eclodem. Gosto de falar de uma tectônica subcutânea dos acontecimentos. Toda a geologia que, com suas camadas e camadas de articulações, registram a história das eclosões. É no meio desses vulcões que se produzem lavas. Lavas, como as dos ovos. É das lavas que saem as coisas, das dobras, das fricções. Os desejos vêm desta roça: uma camada que roça na outra, roça, roça, como uma Pachamama do roçado, como quem faz cócegas no ovo, como quem faz cócegas no futuro, montado pelas camadas de lava seca que formam a Terra. Uma Pachamama em que o calango roça o jabuti que roça onça que roça o sapo. E então salta alguma coisa. Uma tectônica subcutânea dos acontecimentos. É uma questão de sanhas. A sanha que convulsiona, que torna as coisas urgentes. A sanha não pode esperar, eclode urgências. Há gritos – e sussurros, urros, berros, vulcões, maremotos, fodas, convulsões – que não podem esperar. As sanhas tomam conta. Uma vez atribuí as sanhas ao poder de Shakti, a deusa das potências, das borbulhas e do germinal. Hoje prefiro ser mais politeu. Não cheiro Shakti nos ovos. Cheiro sanha. E mais sanha. E mais sanha. Os ovos – uma forma quase geométrica – e todos assanhados.
São as convulsões. As vezes pequenas, como um cisco infenso a fulgurâncias. Miudinho. Gosto das miudezas. Das pequenas exceções. Falam dos deuses grandes, tonitruantes, macrobióticos e seus infinitos poderes. Eu prefiro os hipermortais, os ínfimos que são infinitesimais e que são habitados por mortais ainda mais poderosos. Porque do pequeno sempre há o menor. Não são os imortais, mas os mais que mortais, os que estão sempre por morrer. Aqueles da vida curta, curtíssima – aqueles que tem tempo apenas para o ínfimo. São batalhões deles que fazem o exército dos desviados. Os que por serem hipermortais também são nano-heróis. Dizem que os filósofos nascem, pensam e morrem. Pois as sanhas elas nascem, eclodem e morrem. Cheias de outras sanhas. As miudezas não tem o poder dos grandes imortais, mas tem o poder dos infinitesimais. Epicuro falava das clinamens. As clinamens, as pequenas exceções. Uma clinamen é quando um grave sai da sua órbita, uma miudeza que faz eclodir. Um desvio. É o rabo da curva normal. Que venha uma clinamen. São os desvios que redirecionam as órbitas. Elas constroem o que há, e constroem também nadeiras. Porque as órbitas são arranjos, são feitas da mistura das forças – e dos desvios. Clinamen. Como um clitoris que desvia a cis-hetero-órbita do sexo que é jogo de armar. Meu clitoris, marca da minha autoginefilia compulsiva. Miudeza que eclode. No meio do caminho de Maria, a Virgem, havia um clitoris. No meio da órbita das famílias que fazem mais famílias e mais famílias – o sistema solar do Édipo caudilho – há uma clinamen, um desvio, um desejo recalcitrante. Aticem ele, assanhem ele. No meio da pedra tinha um caminho. O desejo recalcitrante. As sanhas são miúdas e hipermortais como as fúrias. Elas se medem com trizes, e por um triz eclodem.
Como os ovos. Com suas voragens: matança e amanhecer. Novo espatifado, ovo chocado. São muitos ovos. Eu adoro chacoalhar os ovos, chocar todos eles. Ovos. Novos. Minhas pequenas exceções. Minhas lavas. Meus futuros fazendo cosquinha. Meus pequenos deuses cheio de deusas, cheios de blasfêmias – gosto dos microdeuses, mortalíssimos, e gosto dos que nem criam, os deuses estéreis – aqueles que ficam por trás da casca do ovo tramando, confabulando, armando, se assanhando e que preferem não. Só atiçam. Porque te amo não nascerás. Os deuses abstêmios, e os que nem abreviam nada. São rascunhos. Não gosta de um rascunho? Daqueles que ficam pra sempre largados na gaveta. Aquilo que poderia ter sido e não foi. A coleção de Fedoras, planejadas, arquitetadas e que não foram. Fedoras de grama, de linfa, de cuspe, e que não foram. Fedoras invisíveis: fedoras de vidro. Imagine as genitálias de vidro. Uma pica de vidro. Pronta pra ser quebrada, em caquinhos. E, ainda assim, berrando: pinto, falo, danço! A pica de vidro berra. Eu sussurro: é que porque há sanhas dentro das sanhas e as deusas estão cheia de deuses, que tudo tem ovo. Cada transartimanha, cada vontade de sair do armário, cada borbulha, cada convulsão, cada vontade de não ter cabimento na casca montada para os desejos arruaceiros, é ovo. Eclode, eclode, eu sussurro.
Torço pelo ovo, pelo que há no ovo, ele não está previsto – tem uma casca na frente. Ele não abrevia nada. Heráclito, aquele obscuro filósofo que se perdeu incognito por milênios e milênios e se encontra desaparecido desde o bombardeio de Gaza de 2009, insistia nisso. Ou terá sido alguma das Heráclitas, já que ele teria sido transgênero e transnúmero... Seu fragmento 269a diz:
269a. Há quem possa ver o mundo em todos os grãos de areia – e gotas de água, e lufadas de ar, e chamas de fogo. Há um rascunho do mundo em cada gomo de tangerina. Mas o mundo não pode ser abreviado em parte alguma, nem numa coreografia de devires, nem numa estratégia de combate, nem numa coleção de ordenamentos e menos ainda em um princípio universal de todas as coisas. O mundo é inabreviável porque se soltarmos uma abreviatura no mato, ela roça mandioca, roça milho, roça vendavais. O açucar abrevia a água doce? Nunca a mesma água dissolve o açucar duas vezes...
Façam ovos, não façam abreviaturas. Façam rascunhos. Nem fiquem chocando os ovos, larguem eles pela selvageria dos dias. Vamos encher o planeta de ovos, ado-o-o-o-o-o-oro. No meio do caminho tinha... um ovo. E no meio da pedra tinha... um ovo. E eles vão germinar, eclodir, erodir a disposição concêntrica dos desejos. Não a terra dos nossos avós, a terra dos nossos netos que não nascerão... Não o desejo de levar tudo de volta para o seio da família, mas o desejo de dissolver. O ovo não acumula, ele eclode, larga a casca, se despreende. O ovo é a centrífuga dos futuros – da casca tudo o que sai se solta. No ovo não há o que traz de volta pro seio da família o desejo, o ensejo, a renda, a prenda, a merenda. Do ovo só se vai pra fora, não tem caminho de volta, não há deuses centrípetos, nada se acumula, tudo se despreende, se gasta, se esbanja na eclosão. É por isso que um ovo parece as vezes sem pé nem cabeça. Quando um flamingo sai da casca do ovo, não volta mais.
No ovo, no ovo cabe tudo, mas cabe tudo demais. Cabe o que não vai ter cabimento em outro lugar algum. O ovo é confabulação. Todo poder ao ovo. O ovo é trama. Um pedaço de futuro cercado de presente por todos os lados. Se bem que ovo também é passado remoto, retrofuturista. Tem gente que coloca um ovo antes de Colombo: Giuseppe Campuzano relata fielmente o travestismo do Perú antes dos espanhóis – a genitalia recreava e transitavam as pessoas por entre as bordas de gênero. Mudavam de cinta, mudavam de penugem, mudavam de pluma, entre gêneros. Nem macha, nem fêmeos. E os espanhóis chegaram com suas galinhas antes dos ovos: que ciscaram pelos Andes afora, cis, cis, cis, hetero, hetero, hetero, cis, cis, cis. Ah, que vontade de viragem, voragem. O desejo tem a nostalgia das águas turbulentas. Tem uma turba dentro dos ovos. E mesmo nas galinhas crescidas há ovos – peles impostas sobre pele, ursos costurados sobre braços, cobras sobre pernas, lagartos sobre falos. Uma pachamama: o mais profundo é a casca do ovo. Quem vê coração não vê cara, quem vê calcinha não vê genital. Porque ninguém pode medir a inflamabilidade dos corpos. Um corpo que arde. O ovo que choca. L'avenir est dans les oeufs. Clarice Lispector dedicou ao ovo a nação chinesa: O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. E ela diz: a galinha é o disfarce do ovo. É por isso que a galinha é assanhada. Eu largo o osso, mas não largo o ovo. Prefiro pisar em ovos.
Ovos. Contrabandeiem os ovos, deixem eles pelas estradas – os pequenos, os de codorna que deslizam como bolas de gude. Coloquem um ovo de codorna no ninho dos avestruzes, um ninho de cisne preto no ninho dos pelicanos. Insira um ovinho, um desejinho, um desvio, uma mutação. Um ovo do esquisito, choquem os ovos. À esquerda, mas esquisita: à esquizerda. Não é uma nova espécie, é a espécie que ainda pode vir, a gestação, a especiação, a trama assanhada dentro da bola branca. Meu ovo, plácido e explosivo. Bom de cheirar, bom de bolinar, com o cheiro do que ainda não há. Feito de prestes. E bom de tacar. Tacar ovos, tocar o terror. Há um terrorismo no novo. Uma profanação. Uma quebra de protocolo. Uma aliança com o erro: um errorismo. Pornoterrorismo. Pornoerrorismo. Uma pequena convulsão no meio da coreografia. Vira, vira, uma voragem, um ovo no sapato. O ovo, limpido, profano, com gosto de multidão. Quem disse que o ovo é um?
2 commenti:
levei uma ovada. obrigado por compartilhar, hilan. isso tudo foi muito bonito.
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