Sirvo de alimento a feroz vontade que não sacia. Deito na rua, já bêbada de cachaça dada, durmo sono profundo, não sinto o duro do chão, nem os carros-barulhos que rasgam a noite em sons agonizantes. Sonho um sonho pesado, tranqüilo, entregue. Já não tem volta. Não quero voltar. Dignidade cansa demais, estou preguiçosa de levantar cedo e ganhar pouco, comer pouco e cansar. Não sonho com telefones e viagens caras, descubro que não sou escolhida. Eles são os escolhidos. Eu os assisto, como um dia assisti televisão.
Sou doente, sofro do fígado. A cachaça dissolve minha dor e os anjos da noite me dão sanduíches. Não estou sozinha, têm outros como eu que habitam aqui. Tomara que não falte cachaça no inverno, nem loló, nem algum doido metido a poeta que me fale poemas pela metade, dividindo seu cobertor comigo, caso venha a perder o meu.
Meu cobertor é vermelho, com algumas manchas mais intensas, de quando mênstruo; e algumas marcas de porra, mas já nem me lembro de quando foram. Arrasto meu cobertor vermelho rua afora e "instalo" minha imagem pelas calçadas, faço chorar senhoras sensíveis de dentro dos carros - puritanas filhas de uma puta, choram de culpa religiosa. Elas pensam -Deus, como pode alguém viver assim, o que eu poderia fazer? Sou tão impotente!
Minha desgraça é o seu mais profundo terror.
Elas pensam que não sobreviveriam. Mas sobreviveriam. Se adaptam: e o sorriso não depende de nada. O riso ri quando quer rir, a lágrima cai quando o olho quer chorar e a dor é constante, mesmo à dor se acostuma.
Só sofro quando tenho pena de mim mesma, mas até isso vira capricho, já estou noutra há algum tempo. Uma espécie de letargia, tranqüila e insossa. Minha memória funciona por relâmpagos. Às vezes acho que vivi algo, depois lembro que foi alguém que me contou, eu confundo as histórias, carrego lembranças de outros - e filhos e cachorros, calçadas...
Um dia sentava na calçada da vila, contava os carros com um filho que tive. Deve estar por aí, ou seria filho de alguém outro? Já não interessa muito, só quando tenho pena de mim mesma. Memória não tem dono. Nem filho, tem dono não. Não conto. Nem conto os carros. Mas as vezes urro.
Berro como uma cadela no cio e gasto toda minha angústia em gritos, como alguém que reza pra deus, logo passa, o sono sempre vem. Indubitavelmente!
Tenho experimentado vários lugares na cidade. Depende do tempo. Às vezes me acomodo numa rua bem movimentada, com meus sacos pretos, estendo a mão e chego a dormir com a mão estendida, umas pessoas me dão dinheiro então compro mais cachaça e uns pães e assim me sinto meio rica, já divido com outro qualquer, prá trocar uma idéia. Fui importante ou nasci ali, depende da temperatura, e da minha úlcera.
Quando cago, alguns bichos saem da minha barriga , eu até tinha nojo deles, agora compreendo que faz parte, toco-os, brinco com eles como se fossem minhoquinhas achadas na terra molhada, e são. Se uns saem, outros devem entrar, e não é raro eu conversar com eles.Tenho coceiras nas pernas, sei que é sarna, essas coceiras me entretêm, as vezes coço-as a noite inteira e fico adivinhando onde ela vai coçar, só é ruim quando é nas costas, por isso, ando sempre com uma varinha que arrasto pelo chão, varinha mágica que acaba com minhas coceiras, também sou bruxa. Os piolhos como-os todos, não suporto piolhos, são que nem crianças pequenas, tem que se dar atenção o dia inteiro. Estralo eles entre as unhas e como-os, sem piedade. Como os macacos comem.
Eu tenho um nome, e vou dizer se você perguntar.
composto por Fabiane Borges, espalhado e deturpado por Heráclitas, caquéticas que insistem em adiar tudo.
(vai ter que ir pra rua, os blogs são pequenos demais para Maria, dos lábios esticados)
Nessun commento:
Posta un commento