Corpos Diversos, Rio, Casa de Rui. Evento concebido por Ana Chiara e sua super turma. Falei assim:
Elementos para uma dermatologia especulativa:
A erótica, a política e a ontologia da pele
O interior. O endereço da especulação e talvez o avesso da vida se Nietzsche tinha razão em recomendar um modo de viver (grego) que para corajosamente na superfície, na dobra, na pele e adora a aparência – todo o Olimpo da aparência. Mas a aparência, e o sensível, e o sensual, também tem seus interiores. Schelling se pergunta (em Ideen) que é aquilo que origina a sensação? Algo de interior, uma característica interna da matéria [...] Pois onde se encontra este interior da matéria? Podeis dividir até o fim da matéria e nunca passareis das superfícies dos corpos. O interior é a pedra, interlocutora de Szymborska e que diz mesmo que você me queber em pedaços, nós ainda vamos estar fechadas para você, você pode nos triturar em areia e, ainda assim, nós não deixaremos você entrar. Mas dentro da superfície da pedra há a superfície da areia, a superfície dos grãos, a superfície espaço entre os grãos. Estar dentro é também estar às voltas com as peles que recobrem já que nada pode ser sensível sem ter a sensualidade de uma superfície que pode ser sentida.
É que pelo menos no sensível, existir é poder ser encontrado. Nada fica no sensível sem poder ser sentido. Nada fica sem pele já que tudo fica em uma superfície. Fica exposto. Ficar posto no espaço é ficar exposto, posto para fora, ser afetável. Existir é estar em uma encruzilhada. É estar a mercê do que mais existe já que se existe tendo uma pele, onde se começa e onde se termina. A encruzilhada dos existentes, a encruzilhada do que existe. Do que existe também. Porque existir é coexistir. Ser é estar em companhia. (Do que mais seja). Existir é estar no meio das coisas que existem, expostas a ela, com uma pele. A pele é exposição. É disposição. E é disponibilidade. E é à disposição. Pela pele entram os bárbaros, os bacilos, os desejos, os ventos, os acasos. A substancialidade do sensível é dermatológica – é sobre isso que eu quero especular. Especular com a epiderme virada para os estratos subcutâneos, entrelaçada na endoderme, adentrada no stratum spinosum, membranas adentro. Pelo interior da pele, sem sair da soleira, sem sair da soleira senão para entrar em outra soleira já que toda coisa que existe e persiste tem fronteiras. Todo indivíduo é também refém de sua pele já que existir é coexistir. Especular sobre o que faz parecer que no sensível tudo corre – tudo corre porque tudo é susceptível a tudo. Tudo está a mercê. O sensível, que é domínio dos contágios, das infusões, do que toca, do que se toca, do tocante, das insinuações, do contato, do trato, da flor da pele, é muito sensível. Qualquer desatenção, pode ser a gota d’água.
O sensível também tem ele todo uma pele. Se ele pode ser encontrado, ele pode ser tocado. Ele todo não pode existir sem se exibir. Ele todo é um horizonte de insinuações – e é por isso que o desejo está espalhado por todas as peles que eu posso esfregar. O sensível está para ser sentido, está a disposição, está aberto a quem chega. O sensível é o que tem uma aparência. E tem uma presença independente de todas as suas qualidades – tudo o que é sensível pode ser apontado: aquela ali. Esta capacidade de ser espiada sem ter suas qualidades inspecionadas é o que faz uma coisa sensível ter o que Duns Scotus chamava de haecceitas. A presença é um assunto de peles, de membranas, de máculas. Quem esbarra, não esbarra em profundezas antes de esbarrar na pele – é nela que se toca. Posso não saber nada da pele que eu toco – posso não me tocar do que toco, mas toco. Nada pode estar presente sem estar em exibição. O trato – o contato – não é uma questão de conhecimento do interior, é uma questão de notar o que se exibe. Não é uma questão de entranhas, mas uma questão de nervuras. Ser sensível é também poder tocar, poder afetar. Os eleatas diziam: provocar e ser provocado.
O sensível é sensível porque carrega uma virtualidade – por isso parece que nele tudo corre. Nele, tudo depende das circunstâncias. Deleuze, em Le Pli, entende o contingente como sendo imerso na virtualidade: que o vinho seja doce ou que Adão peque depende de todo o resto do mundo. É que o sensível está a mercê de tudo o mais, de tudo o mais sensível. Porque existir é co-existir, parece que tudo corre – minha pele exposta aos elementos. Nada traz em si as rédeas de sua substancialidade. Já que tudo tem que ter pele. Toda estabilidade é perdida e reconquistada. Como a saúde – esvaída e recuperada. Não é por si mesmo que as coisas são estáveis, mas pelo que elas encontram pele afora. Simondon chamava isso de meta-estabilidade: a capacidade não de persistir, mas de recobrar, de voltar a ser. O sensível é dermatológico: aquilo que individua cada coisa é a pele que deixa passar o que está fora para manter a forma do que está dentro. Mas tudo se deixa levar pelas aparências, e pelas aparências das aparências. O cristal captura materiais para se sobre-cristalizar. Sua forma não é estável. É meta-estável. As aparências são meta-estáveis. O sensível: virtual e meta-estável. A mercê de todo o resto para permanecer o que é. Pele: o emblema do que está a mercê. O emblema da vulnerabilidade – do que por estar presente é capaz de ser outro. É por isso que as aparências carregam profundidades: elas são pele do que está dentro, e também pele do que está de fora. Individua, mas também permite todas as perturbações. Tudo corre por elas. E ainda assim, elas seguem sendo a aparência. Já a pele, é onde todo o sensível ressoa. Eis a dermatologia especulativa: tudo tem uma medida de pele. As coisas vivas são uma plataforma de lançamento especulativo que chega a todas as aparências das coisas, vulneráveis, virtuais, meta-estáveis e entregues às insinuações da co-existência. Tudo está exposto ao toque.
As aparências são aquilo que esconde – não é que tudo corre nas aparências, é que elas amam esconder-se. Aparências por trás de aparências. A matrioshka das peles é também um biombo, roupa tirada sobre roupa. As aparências são afetadas. Aparências escondem aparências – não há a última roupa, nem há a última pele. Porque há pele, as aparências é que são hábitos, as aparências é que habituam. Tudo o que é sensível se habitua com as aparências. E nas aparências habita a política. O Heráclito recente, o caquético objeto de uma anarqueologia selvagem diz:
215. A política ama esconder-se em moitas de natureza.
Ele parece pensar que também o pensamento do sensível pode exorcizar o conhecimento de coisas últimas. Pensar é mais do que desvelar o último véu. Ele entende que muitas vezes pensa-se
277b. [...] como se estivéssemos descortinando alguma coisa. [...] Tiramos as roupas, mas apenas para mostrar alguma coisa que estava escondida e que vai voltar a se esconder para que outra coisa possa ser despida – não há a última pele. Physis ama esconder-se: ninguém vai desmascará-la de uma vez por todas. Nenhum corpo pode ficar completamente vestido, nem completamente pelado – o pensamento não tem nada que ver com o universo nu. [...]
As aparências escondem aparências – a evidência é uma artimanha de ocultação. Mas não há o não aparente subjacente, aquilo que, substrato do sensível, é indiferente aos ires e vires do sensível. Há, é claro, pele sobre pele, pele sob pele – mas as aparências não são sustentadas por nada que não seja aparência. Porque existir é co-existir. Mas sensibilidade, pele, afetação não é estar todo aparente. Aquilo que se revela, se revela porque se esconde. E isto é a do caráter dérmico das coisas: elas revelam só se escondem alguma coisa. E a pele – e não quem a toca – é que decide o que aparece e o que fica recôndito. Heráclito insiste que o sensível não é o disponível à nossa sensibilidade, é antes o que está sensível à disponibilidade (ou, talvez mesmo, sensível à nossa disponibilidade):
204. [...] Se estamos em um exercício de voyerismo das coisas (mesmas), como parece que tanta gente anda pensando, essas coisas também agem decidindo o que permitirão que seja visto. Raramente as coisas são apenas espionadas. Elas estão em uma sala de onde as vemos, mas elas estão fazendo um peep-show. Elas decidem como as vemos – e vão para casa depois do horário de trabalho.
Órgãos, indivíduos, acontecimentos e substâncias que ocupam espaço e persistem no tempo têm superfície que as cobrem. O que há tem pele – poder ser tocado já que existir é co-existir. Dentro das aparências, mais aparências. As voragens nascem das aparências, e se nutrem de fricção. Fricção. Pele é fricção. Touchscreen. De touchscreen. Galatzia diz: mi cuerpo es touchscreen, touchscreen, touchscreen. Acariiicialo. Soy hibrido sexual, todo me provoca. Touchscreen. Toda a metafísica se resolve na touchscreen. Touch, touch, touchscreen. As coisas se afetam. São afetadas. Tudo o que há é afetado. Uma dermicidade onde as coisas são moldadas por suas bordas, por suas membranas que são também suas fronteiras. Touchscreen: afetável. Um toque pode trazer alguma coisa de longe. Os toques acessam. Sintonizam. Programam. Chamam. Touchscreen. Pele é antena tátil: um plano. O plano do que existe. O plano em que o que existe co-existe. Por isso Marcos Vinícius, em Frágil, na transperformance, em dezembro de 2011, se cobriu da etiqueta de frágil. A pele é susceptível a tudo. Touchscreen.
A pele é touchscreen, e por isso os corpos são diversos. Eles estão expostos aos ritmos do sensível. O sensível esculpe os corpos – genes, voragens, batidas, ambiente. E faz isso porque os acontecimentos pulsam. Co-existir – e ter meta-estabilidade – é dançar conforme a música, mas também conforme as outras dobras dos acontecimentos: as articulações dos corpos, as dobraduras, as viragens. A planta transgênica de Eduardo Kac mostra isso: os visitantes manipulam em que claridade a planta vai ficar, se vai ficar na luminosidade de Oslo, de Tóquio, de Nova Iorque ou do Rio agora. Trata-se de uma extensão do sensível – estar esculpido pelo que passa. Esta escultura das coisas tem sua forma geológica expressa de maneira explícita nos ritmitos. Um ritmito é composto por camadas de sedimento que foram depositados com uma certa periodicidade. É como a cristalização que condensa os ritmos dos acontecimentos passados. Alguns se repetem por pouco tempo, outros por um tempo mais longo. Os ritmitos de Brasília registram padrões que são remanescentes de marés e registram um possível mar pré-histórico na área. O mar pode ter estado presente há milhões de anos, mas deixou vestígios rítmicos. A geologia dos ritmitos inspira uma especulação: pedras, montanhas e corpos são moldados e compostos pelos padrões que os circundaram. Os corpos são diversos porque têm pele.
Os corpos são diversos porque tem pele. E tem uma pele que é diversa – cada pele tem suas dobraduras, suas rugas, seus corpúsculos de Pacini, seus estratos, suas endemias, suas endermias, sua biografia de suscetibilidade a miasmas. Touchscreen. Entendo que os miasmas são aquilo que Simondon chama de apport d’information, que fornecem informações, mas tem que ser entendidos através da epidemiologia. Eles podem ter várias formas: microbiota, micropadrões de desejo, pequenas variações de temperatura, cócegas, sanhas, voragens, mas também proteínas, catalizadores, hormônios. Os miasmas são unidades de contaminação. Toda dermatologia é uma epidemiologia: a dermatologia especulativa é uma epidemiologia especulativa. Os miasmas podem ser populações, de genes, de memes, de batidas, de medos. Aquilo que afeta: uma ecosofia – ou seja, articulação das três ecologias de Guattari: as unidades de adaptação e construção do ambiente biológico, das sociedades humanas ou não e da subjetividade. Meta-estabilidade – a produção de diferenças. É que a pele é uma antena local que vai se sintonizando por onde anda, por onde roça. É roçado. É a mágica que faz erguer o gênio da lâmpada. A pele é uma trama que captura miasmas. Os corpos são esculpidos pelos miasmas em sua carnalidade, em sua velocidade, em sua intencionalidade e em sua dermicidade – ou seja em suas dobras, redobras, dobraduras; rugas, rugas nas rugas, rasgos. Os miasmas são como ritmos, eles provocam repetições, mas repetições apenas nas formas já esculpidas – o subcutâneo tem suas geologias. O ritmo contamina, mas a contaminação é diferente nos diversos corpos – alguns batem o ritmo como um xequerê, outros como toda uma bateria. As repetições sempre dependem de quem repete – de que corpo ressoa o que está sendo repetido. O repetidor é contaminado desde quando se habitua à repetição, habita a repetição. Intensidade: o quente contamina o frio. O lento contamina o acelerado. As questões contaminam as soluções – a pele ressoa corpo a dentro.
A pele dos corpos é aquela pele a partir da qual especulamos todas as outras. Ela tem um grau de intensidade que molda as capacidades dos corpos dobra a dobra, camada a camada, estrato a estrato. Uma trama de infiltrações. Nada que é sensível é alheio a pele – ainda que a capacidade de captação de cada coisa sensível seja sempre regional e limitada por uma sintonia. Por uma sintonização. Por uma matriz de diferenças e indiferenças. Nada que é sensível é sensível a tudo. Há um pano de fundo de insensibilidade, de aturdimento, de indiferenciado – como o que está além do horizonte. Um continuum. Do que não alcança a me tocar com suas peles. Como a noite ou o espaço entre as estrelas no céu de noite. Como o som ao redor. Substituir a substância pela derme é também renunciar à possibilidade mesma de uma visão de parte alguma, de um panorama do sensível, de uma paisagem completa de tudo o que é concreto. As antenas, é certo, são resintonizadas, a captura é reorientada. A pele é vulnerável a ter sua vulnerabilidade alterada.
Tudo o que precisa de pele está exposto aos transeuntes, aos que transitam, às transduções, às partículas de intensidade que vão e vêm. Aos pequenos demônios que roem as substâncias. Traças. Vermes. Transmissores microssexuais. Começos de compulsão. Pele é falta de imunidade: é comunidade. A pele está aberta aos desejinhos. Eles se propagam como os vírus, como os germes, como os mosquitos da malária que não reconhecem fronteiras. São forças que moram n’água, ou moram na falta d’água, e não fazem distinção de cor... Por isso há cura gay. Claro, os desejos são infecções. Alguns estão à flor da pele, outros estão recônditos e podem precisar de muito roça-roça para emergir. São disposições. Não são posições fixas. Vão de um lado para outro. Ninguém aprende a ser hetero, mas ninguém nasce sabendo. Por isso há cura hetero. Por isso os desejos são permeáveis – eles são feitos do que é feito a política. Epidemiologia. Escultura de corpos – de acontecimentos, de instituições, de hábitos, de dispositivos.
Já a subversão, ela está na aparência – ela está na evidência. O poder instituído é como um corpo que se apresenta substancial – mas o poder também tem pele. Tem porosidade. Tem membranas. Tem tectônica. Tem camadas. A atenção à pele é a atenção ao que fabrica o poder, e ao que o deixa fabricado. São as questões, a pele de toda solução que é sempre permeada e infectada de questões. A pele é a questão. A pele é a porta de entrada. A solução – como o poder – é não mais do que o interior, pele sobre pele, retorcida, resguardada, retirada. Jabès, no Petit livre de la subversion hors de soupçon, escreve que não podemos interrogar senão o poder, o não-poder é a questão mesma. A questão é pele. As questões iniciam alguma coisa – não estão predestinadas a uma solução e nem sequer a ter uma solução. Elas pertencem à ontologia da pele. E os corpos, touch a screen, são questões.
Elementos para uma dermatologia especulativa:
A erótica, a política e a ontologia da pele
O interior. O endereço da especulação e talvez o avesso da vida se Nietzsche tinha razão em recomendar um modo de viver (grego) que para corajosamente na superfície, na dobra, na pele e adora a aparência – todo o Olimpo da aparência. Mas a aparência, e o sensível, e o sensual, também tem seus interiores. Schelling se pergunta (em Ideen) que é aquilo que origina a sensação? Algo de interior, uma característica interna da matéria [...] Pois onde se encontra este interior da matéria? Podeis dividir até o fim da matéria e nunca passareis das superfícies dos corpos. O interior é a pedra, interlocutora de Szymborska e que diz mesmo que você me queber em pedaços, nós ainda vamos estar fechadas para você, você pode nos triturar em areia e, ainda assim, nós não deixaremos você entrar. Mas dentro da superfície da pedra há a superfície da areia, a superfície dos grãos, a superfície espaço entre os grãos. Estar dentro é também estar às voltas com as peles que recobrem já que nada pode ser sensível sem ter a sensualidade de uma superfície que pode ser sentida.
É que pelo menos no sensível, existir é poder ser encontrado. Nada fica no sensível sem poder ser sentido. Nada fica sem pele já que tudo fica em uma superfície. Fica exposto. Ficar posto no espaço é ficar exposto, posto para fora, ser afetável. Existir é estar em uma encruzilhada. É estar a mercê do que mais existe já que se existe tendo uma pele, onde se começa e onde se termina. A encruzilhada dos existentes, a encruzilhada do que existe. Do que existe também. Porque existir é coexistir. Ser é estar em companhia. (Do que mais seja). Existir é estar no meio das coisas que existem, expostas a ela, com uma pele. A pele é exposição. É disposição. E é disponibilidade. E é à disposição. Pela pele entram os bárbaros, os bacilos, os desejos, os ventos, os acasos. A substancialidade do sensível é dermatológica – é sobre isso que eu quero especular. Especular com a epiderme virada para os estratos subcutâneos, entrelaçada na endoderme, adentrada no stratum spinosum, membranas adentro. Pelo interior da pele, sem sair da soleira, sem sair da soleira senão para entrar em outra soleira já que toda coisa que existe e persiste tem fronteiras. Todo indivíduo é também refém de sua pele já que existir é coexistir. Especular sobre o que faz parecer que no sensível tudo corre – tudo corre porque tudo é susceptível a tudo. Tudo está a mercê. O sensível, que é domínio dos contágios, das infusões, do que toca, do que se toca, do tocante, das insinuações, do contato, do trato, da flor da pele, é muito sensível. Qualquer desatenção, pode ser a gota d’água.
O sensível também tem ele todo uma pele. Se ele pode ser encontrado, ele pode ser tocado. Ele todo não pode existir sem se exibir. Ele todo é um horizonte de insinuações – e é por isso que o desejo está espalhado por todas as peles que eu posso esfregar. O sensível está para ser sentido, está a disposição, está aberto a quem chega. O sensível é o que tem uma aparência. E tem uma presença independente de todas as suas qualidades – tudo o que é sensível pode ser apontado: aquela ali. Esta capacidade de ser espiada sem ter suas qualidades inspecionadas é o que faz uma coisa sensível ter o que Duns Scotus chamava de haecceitas. A presença é um assunto de peles, de membranas, de máculas. Quem esbarra, não esbarra em profundezas antes de esbarrar na pele – é nela que se toca. Posso não saber nada da pele que eu toco – posso não me tocar do que toco, mas toco. Nada pode estar presente sem estar em exibição. O trato – o contato – não é uma questão de conhecimento do interior, é uma questão de notar o que se exibe. Não é uma questão de entranhas, mas uma questão de nervuras. Ser sensível é também poder tocar, poder afetar. Os eleatas diziam: provocar e ser provocado.
O sensível é sensível porque carrega uma virtualidade – por isso parece que nele tudo corre. Nele, tudo depende das circunstâncias. Deleuze, em Le Pli, entende o contingente como sendo imerso na virtualidade: que o vinho seja doce ou que Adão peque depende de todo o resto do mundo. É que o sensível está a mercê de tudo o mais, de tudo o mais sensível. Porque existir é co-existir, parece que tudo corre – minha pele exposta aos elementos. Nada traz em si as rédeas de sua substancialidade. Já que tudo tem que ter pele. Toda estabilidade é perdida e reconquistada. Como a saúde – esvaída e recuperada. Não é por si mesmo que as coisas são estáveis, mas pelo que elas encontram pele afora. Simondon chamava isso de meta-estabilidade: a capacidade não de persistir, mas de recobrar, de voltar a ser. O sensível é dermatológico: aquilo que individua cada coisa é a pele que deixa passar o que está fora para manter a forma do que está dentro. Mas tudo se deixa levar pelas aparências, e pelas aparências das aparências. O cristal captura materiais para se sobre-cristalizar. Sua forma não é estável. É meta-estável. As aparências são meta-estáveis. O sensível: virtual e meta-estável. A mercê de todo o resto para permanecer o que é. Pele: o emblema do que está a mercê. O emblema da vulnerabilidade – do que por estar presente é capaz de ser outro. É por isso que as aparências carregam profundidades: elas são pele do que está dentro, e também pele do que está de fora. Individua, mas também permite todas as perturbações. Tudo corre por elas. E ainda assim, elas seguem sendo a aparência. Já a pele, é onde todo o sensível ressoa. Eis a dermatologia especulativa: tudo tem uma medida de pele. As coisas vivas são uma plataforma de lançamento especulativo que chega a todas as aparências das coisas, vulneráveis, virtuais, meta-estáveis e entregues às insinuações da co-existência. Tudo está exposto ao toque.
As aparências são aquilo que esconde – não é que tudo corre nas aparências, é que elas amam esconder-se. Aparências por trás de aparências. A matrioshka das peles é também um biombo, roupa tirada sobre roupa. As aparências são afetadas. Aparências escondem aparências – não há a última roupa, nem há a última pele. Porque há pele, as aparências é que são hábitos, as aparências é que habituam. Tudo o que é sensível se habitua com as aparências. E nas aparências habita a política. O Heráclito recente, o caquético objeto de uma anarqueologia selvagem diz:
215. A política ama esconder-se em moitas de natureza.
Ele parece pensar que também o pensamento do sensível pode exorcizar o conhecimento de coisas últimas. Pensar é mais do que desvelar o último véu. Ele entende que muitas vezes pensa-se
277b. [...] como se estivéssemos descortinando alguma coisa. [...] Tiramos as roupas, mas apenas para mostrar alguma coisa que estava escondida e que vai voltar a se esconder para que outra coisa possa ser despida – não há a última pele. Physis ama esconder-se: ninguém vai desmascará-la de uma vez por todas. Nenhum corpo pode ficar completamente vestido, nem completamente pelado – o pensamento não tem nada que ver com o universo nu. [...]
As aparências escondem aparências – a evidência é uma artimanha de ocultação. Mas não há o não aparente subjacente, aquilo que, substrato do sensível, é indiferente aos ires e vires do sensível. Há, é claro, pele sobre pele, pele sob pele – mas as aparências não são sustentadas por nada que não seja aparência. Porque existir é co-existir. Mas sensibilidade, pele, afetação não é estar todo aparente. Aquilo que se revela, se revela porque se esconde. E isto é a do caráter dérmico das coisas: elas revelam só se escondem alguma coisa. E a pele – e não quem a toca – é que decide o que aparece e o que fica recôndito. Heráclito insiste que o sensível não é o disponível à nossa sensibilidade, é antes o que está sensível à disponibilidade (ou, talvez mesmo, sensível à nossa disponibilidade):
204. [...] Se estamos em um exercício de voyerismo das coisas (mesmas), como parece que tanta gente anda pensando, essas coisas também agem decidindo o que permitirão que seja visto. Raramente as coisas são apenas espionadas. Elas estão em uma sala de onde as vemos, mas elas estão fazendo um peep-show. Elas decidem como as vemos – e vão para casa depois do horário de trabalho.
Órgãos, indivíduos, acontecimentos e substâncias que ocupam espaço e persistem no tempo têm superfície que as cobrem. O que há tem pele – poder ser tocado já que existir é co-existir. Dentro das aparências, mais aparências. As voragens nascem das aparências, e se nutrem de fricção. Fricção. Pele é fricção. Touchscreen. De touchscreen. Galatzia diz: mi cuerpo es touchscreen, touchscreen, touchscreen. Acariiicialo. Soy hibrido sexual, todo me provoca. Touchscreen. Toda a metafísica se resolve na touchscreen. Touch, touch, touchscreen. As coisas se afetam. São afetadas. Tudo o que há é afetado. Uma dermicidade onde as coisas são moldadas por suas bordas, por suas membranas que são também suas fronteiras. Touchscreen: afetável. Um toque pode trazer alguma coisa de longe. Os toques acessam. Sintonizam. Programam. Chamam. Touchscreen. Pele é antena tátil: um plano. O plano do que existe. O plano em que o que existe co-existe. Por isso Marcos Vinícius, em Frágil, na transperformance, em dezembro de 2011, se cobriu da etiqueta de frágil. A pele é susceptível a tudo. Touchscreen.
A pele é touchscreen, e por isso os corpos são diversos. Eles estão expostos aos ritmos do sensível. O sensível esculpe os corpos – genes, voragens, batidas, ambiente. E faz isso porque os acontecimentos pulsam. Co-existir – e ter meta-estabilidade – é dançar conforme a música, mas também conforme as outras dobras dos acontecimentos: as articulações dos corpos, as dobraduras, as viragens. A planta transgênica de Eduardo Kac mostra isso: os visitantes manipulam em que claridade a planta vai ficar, se vai ficar na luminosidade de Oslo, de Tóquio, de Nova Iorque ou do Rio agora. Trata-se de uma extensão do sensível – estar esculpido pelo que passa. Esta escultura das coisas tem sua forma geológica expressa de maneira explícita nos ritmitos. Um ritmito é composto por camadas de sedimento que foram depositados com uma certa periodicidade. É como a cristalização que condensa os ritmos dos acontecimentos passados. Alguns se repetem por pouco tempo, outros por um tempo mais longo. Os ritmitos de Brasília registram padrões que são remanescentes de marés e registram um possível mar pré-histórico na área. O mar pode ter estado presente há milhões de anos, mas deixou vestígios rítmicos. A geologia dos ritmitos inspira uma especulação: pedras, montanhas e corpos são moldados e compostos pelos padrões que os circundaram. Os corpos são diversos porque têm pele.
Os corpos são diversos porque tem pele. E tem uma pele que é diversa – cada pele tem suas dobraduras, suas rugas, seus corpúsculos de Pacini, seus estratos, suas endemias, suas endermias, sua biografia de suscetibilidade a miasmas. Touchscreen. Entendo que os miasmas são aquilo que Simondon chama de apport d’information, que fornecem informações, mas tem que ser entendidos através da epidemiologia. Eles podem ter várias formas: microbiota, micropadrões de desejo, pequenas variações de temperatura, cócegas, sanhas, voragens, mas também proteínas, catalizadores, hormônios. Os miasmas são unidades de contaminação. Toda dermatologia é uma epidemiologia: a dermatologia especulativa é uma epidemiologia especulativa. Os miasmas podem ser populações, de genes, de memes, de batidas, de medos. Aquilo que afeta: uma ecosofia – ou seja, articulação das três ecologias de Guattari: as unidades de adaptação e construção do ambiente biológico, das sociedades humanas ou não e da subjetividade. Meta-estabilidade – a produção de diferenças. É que a pele é uma antena local que vai se sintonizando por onde anda, por onde roça. É roçado. É a mágica que faz erguer o gênio da lâmpada. A pele é uma trama que captura miasmas. Os corpos são esculpidos pelos miasmas em sua carnalidade, em sua velocidade, em sua intencionalidade e em sua dermicidade – ou seja em suas dobras, redobras, dobraduras; rugas, rugas nas rugas, rasgos. Os miasmas são como ritmos, eles provocam repetições, mas repetições apenas nas formas já esculpidas – o subcutâneo tem suas geologias. O ritmo contamina, mas a contaminação é diferente nos diversos corpos – alguns batem o ritmo como um xequerê, outros como toda uma bateria. As repetições sempre dependem de quem repete – de que corpo ressoa o que está sendo repetido. O repetidor é contaminado desde quando se habitua à repetição, habita a repetição. Intensidade: o quente contamina o frio. O lento contamina o acelerado. As questões contaminam as soluções – a pele ressoa corpo a dentro.
A pele dos corpos é aquela pele a partir da qual especulamos todas as outras. Ela tem um grau de intensidade que molda as capacidades dos corpos dobra a dobra, camada a camada, estrato a estrato. Uma trama de infiltrações. Nada que é sensível é alheio a pele – ainda que a capacidade de captação de cada coisa sensível seja sempre regional e limitada por uma sintonia. Por uma sintonização. Por uma matriz de diferenças e indiferenças. Nada que é sensível é sensível a tudo. Há um pano de fundo de insensibilidade, de aturdimento, de indiferenciado – como o que está além do horizonte. Um continuum. Do que não alcança a me tocar com suas peles. Como a noite ou o espaço entre as estrelas no céu de noite. Como o som ao redor. Substituir a substância pela derme é também renunciar à possibilidade mesma de uma visão de parte alguma, de um panorama do sensível, de uma paisagem completa de tudo o que é concreto. As antenas, é certo, são resintonizadas, a captura é reorientada. A pele é vulnerável a ter sua vulnerabilidade alterada.
Tudo o que precisa de pele está exposto aos transeuntes, aos que transitam, às transduções, às partículas de intensidade que vão e vêm. Aos pequenos demônios que roem as substâncias. Traças. Vermes. Transmissores microssexuais. Começos de compulsão. Pele é falta de imunidade: é comunidade. A pele está aberta aos desejinhos. Eles se propagam como os vírus, como os germes, como os mosquitos da malária que não reconhecem fronteiras. São forças que moram n’água, ou moram na falta d’água, e não fazem distinção de cor... Por isso há cura gay. Claro, os desejos são infecções. Alguns estão à flor da pele, outros estão recônditos e podem precisar de muito roça-roça para emergir. São disposições. Não são posições fixas. Vão de um lado para outro. Ninguém aprende a ser hetero, mas ninguém nasce sabendo. Por isso há cura hetero. Por isso os desejos são permeáveis – eles são feitos do que é feito a política. Epidemiologia. Escultura de corpos – de acontecimentos, de instituições, de hábitos, de dispositivos.
Já a subversão, ela está na aparência – ela está na evidência. O poder instituído é como um corpo que se apresenta substancial – mas o poder também tem pele. Tem porosidade. Tem membranas. Tem tectônica. Tem camadas. A atenção à pele é a atenção ao que fabrica o poder, e ao que o deixa fabricado. São as questões, a pele de toda solução que é sempre permeada e infectada de questões. A pele é a questão. A pele é a porta de entrada. A solução – como o poder – é não mais do que o interior, pele sobre pele, retorcida, resguardada, retirada. Jabès, no Petit livre de la subversion hors de soupçon, escreve que não podemos interrogar senão o poder, o não-poder é a questão mesma. A questão é pele. As questões iniciam alguma coisa – não estão predestinadas a uma solução e nem sequer a ter uma solução. Elas pertencem à ontologia da pele. E os corpos, touch a screen, são questões.