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lunedì 20 aprile 2009

Roubar, doar, desertar: excessos e exceções (quando a traição vira arte)

* Este era o texto para o Ciclo da Intolerância na Feira do Rolo no sábado de manhã - um texto que não berrei de dentro do armário porque o armário nos arremessou do carro no ônibus e o comboio não teve mais saúde para chegar à Feira. Mas este era o texto:

Muita gente fala em cultura. Cultura. Cultura. Cultura. E muita gente fala até em arte. Arte. Arte. É arte. Pega que é arte. Paga que é arte. Promove que é arte. Patrocina que é arte. Cultura está nas ruas, arte em toda parte, tem um orçamento para a secretaria de cultura.
Essas palavras são difíceis de falar (e de entender) porque são bombas,
e são palavras que nos abandonam,
evaporam nas mãos...
estão sempre de malas prontas,
e são palavras que estão sempre sendo roubadas. E palavras que nos assaltam de noite e roubam o significado que colocamos dentro do armário delas.
São palavras bonde andando, são palavras que não param na parada de ônibus, são palavras de rua – elas não tem casa, dormem na rua, comem na rua, mijam na rua, pensam na rua, significam na rua; e deixam seus significados largados pela rua, nem se preocupam em colocá-los em um saco de plástico e depositar no lixo.
Palavras displicentes, cultura e arte, displicentes e indisciplinadas. Palavras intoleráveis. Pedras no caminho – ou ainda mais, elas piscam o olho e dizem assim:
Debaixo da pedra havia um caminho.
Arte. Cultura.
Eu só escrevo essas palavras para me ver livre,
pronto,
falei, agora vou escrever elas de novo para me ver livre deste alívio.
Arte. Cultura.
As palavras são movediças, algumas são larva de vulcão.
Não morra por uma palavra, ela é areia que voa e vai parar em outro castelo. Não morra pelo significado de uma palavra, ele é gota d’água que escorre e vai parar em outro rio. Mas tem palavra que é traição.
Tem palavra que é Ricardão no armário.
E onde é que estava mesmo o que significava arte, cultura?
Era repente de praça, virou disco plastificado, era disco plastificado, virou MP3 pirateado.
O que era para ser dado, fica sendo vendido... E o que era pra ser vendido, é roubado, depois esquecido, depois doado, depois desmontado em pequenas partes – chassis mocozado – e volta a virar mercadoria, mercadoria roubada, mercadoria desmontada, mercadoria transmutada, mercadoria encontrada na rua.
Isso é arte. Pasolini diria assim: cinema é toda a paisagem das pessoas se esbarrando, futricando, caminhando pela rua, coçando a cabeça, pegando roupa no armário, entrando no armário, saindo do armário, ..., olhando para o céu, procurando os espíritos, tentando achar os significados perdidos, coçando o pé. A câmara filmando – ou não.
Escândalos – podemos fazer uma escola de escândalos?
Tudo isso é coreografia. E coloque-se tudo isso no palco:
- Aí nós acabamos com a idéia de que as pessoas são Hamlets, são Alaídes, estão esperando Godot.
As coreografias começam destoando, descombinando, a arte começa com alguns gestos sem eira e nem beira.
E perde as estribeiras.
Mas onde está a eira, onde está a beira?
Ali, ali, ali! Onde não tem cabimento, aparece uma flor nascendo no asfalto. Estrelícias, copos de leite, lírios, tulipas, margaridas e essa flor sem nome ainda, torta, tonta, troncha, flor que nasceu dentro do estômago de um homem que pensava que andava cultivando um tumor. Uma flor nasceu no estômago... sem adubo. Uma flor nasceu na rua.
Arte sem eira, cultura sem beira. Nem estribeiras.
As duas na corda bamba. Nem cabe no armário, nem fica pronta pra guardar no armário.
Em que armário se guarda arte, cultura. No museu? Na biblioteca? Quando elas apodrecem, pomos elas lá. Lá ficam os escombros, os rastros, os vestígios.
Mas e as vertigens?
Desbalanceia, desequilibra, estou caindo, estou caindo.
Pra dentro do armário! Não dá mais pra você ficar aqui, entra no armário. Sai do armário. Entra no armário.
Sai do armário. Larga de esconder aquilo que você é, mostre-se ao mundo, a glória e ao escárnio do povo na feira – diga a todo mundo o que você é?
Hein?
Sai do armário. Me chamam de Aylacostoma, me chamam de Samaluk, me chamam de Avindebé. As palavras já são o armário. E me dizem: saia do armário, mostre ao mundo que você é Aylacostoma, Samaluk, Avindebé.
Já me chamaram de tanta coisa – nem cabia no armário. E eu saia do armário. É desse armário que eu tenho que sair, eu saio. Eu saio. Eu saio.
Tem uns armários que a gente tem que sair: tu é gente, humano, humanão, sacou? Tu não é rato e nem anjo e nem chiuhaua, tu não é petúnia e nem a flor que nasceu na rua.
Tem uns armários que a gente tem que sair, tem uns armários que a gente tem que entrar.
Mas arte, cultura estão saindo do armário
Toda hora.
Nós colocamos elas no armário, elas saem – é que elas nasceram para ficarem entulhadas, não cabem na gaveta, não entram no cabide, não dobram pra prateleira, não penduram no parafuso.
Cuidado pra não esquecer, o guarda-chuva, cuidado pra não cair, da bicicleta; cuidado pra não esquecer, o guarda-chuva, cuidado pra não cair, da bicicleta...
Mas e se eu não quiser sair desse armário: sai, sai, sai. Mas eu não estou lá dentro.
Nós colocamos o armário na tua frente e dizemos: agora, sai dele. Sai.
Mas eu não estou lá dentro – ou... talvez tenha uns pedaços meus lá dentro, um aurículo, um ventrículo, um ventríloco... uma clavícula... agora que eu ouvi essa música, cheirei este quadro, risquei esta bordado verde com triângulos da cor-de-grafite é que eu achei minha glândula pineal – ela está naquele armário ali, na terceira prateleira. Vou pegar.
Arte faz as pessoas saírem do armário pra dançar, com a xana no asfalto. Faz as pessoas entrarem para dentro do armário.
Só vale quando treme, quando não tem cabimento.
Se tudo tivesse cabimento – e tudo fizesse o que lhe é cabido – teríamos casos exemplares, não teríamos casos singulares.
Exemplos, exemplos, exemplos.
O exemplo de alguma coisa. Cabe no armário.
Mas tem a exceção – ela contorce, torce, retorce, distorce.
Exceção. Não cabe, tem uma parte a mais, um excesso, um excesso grande, um excessão.
Exceção.
É apenas enquanto dormes.
Enquanto dormes, eu tento meu destino.
Do teu sono
Depende meu verso minha vida minha cabeça.

Exceção à regra. Um ministério das exceções? Vamos criar uma secretaria do que ficou do lado de fora? Cultura é capim, arte é mato.
Mato, mato, mato. Na rua. E uma flor sem nome.
Ah, as exceções. Alguém pode achar que as exceções acabam sempre entrando nos trilhos – ou nos eixos; nada fica para sempre fora do eixo
Um cisne preto virou exceção, mas depois criamos uma categoria que é categoria dentro de outra categoria e, pronto, já havia um eixo só para cisnes como ele
(o que era um caso singular se tornou um caso exemplar.)
D. H. Lawrence apresenta uma imagem: vivemos em um guarda-chuva em que a abôbada é pintada de ordem
Tudo parece ter uma ordem, o seu lugar em uma estrutura articulada quase que pré-fabricada, tudo parece ter cabimento.
Eventualmente, o guarda-chuva é furado por um poema
Um poema nasceu no meio da conversa
e vemos o céu do outro lado da ordem.
Desordem: caos, caos, caos, caos. E nos desorientamos?
O furo logo é remendado e o remendo é pintado com um pedaço do céu.
Assim a ordem é restaurada.
Levamos o poema para o livro – ele não pode ficar solto.
Levamos a imagem pra galeria – ela não pode ficar solta.
Chamemos o gesto contorcido de dança, de manifestação cultural.
Vamos criar o fundo de financiamento do furo do guarda-chuva.
O movimento de sair do cabimento.
Sair do armário? Não parar de sair do armário. Tira tudo do armário.
Teu cuecão, tuas calcinhas, tuas ligas, tuas lombrigas, tuas fatigas, tuas bandeiras de uma figa.
E ninguém pode nos obrigar a ficar fora do armário. Tem sempre um Ricardão dentro de nós. A arte trai.
Tem gente que adota outro nome, tem gente que adota outra identidade, tem gente que adota outro cpf, tem gente que adota outro sexo, tem gente que quer ter o sexo de quem ama, o corpo de quem ama.
Gênesis P Orridge.
Mingau, mingau, mingau.
Ele se apaixonou por Cosi Fan Tute. Ela era esbelta, garbosa, faceira, bonita e gostosa.
E o Gênesis se apaixonou.
E casou e foi fazer espetáculo – um show e a bilheteria era para a operação: por olhos como o de Cosi, outro show e a bilheteria era para fazer a operação: por os peitos da Cosi, e outro e outro: todo o corpo da Cosi. Ele queria ver a Cosi no espelho. Adotou a Cosi. Traiu sua identidade, traiu sua biologia.
A traição.
Há certas lealdades compulsórias desnecessárias.
A traição, ela move montanhas.
Ninguém precisa ser leal a nada – nenhuma lealdade precisa ser mantida a qualquer preço. Todo mundo tem direito de escapar.
A arte escapa, sai do armário, e entra no armário porque trai – é Ricardão.
Vamos fazer o ministério dos Ricardões?
A traição faz tremer, e quando as coisas tremem elas vão pra outro lugar, o saleiro vai parar no prato de arroz, o tomate derruba o copo, o feijão pula para fora da mesa – a colher se arrasta para dentro do armário. É arte.
Minha avó é a Maria Merivéria.
Ela decidiu desertar da raça humana, da espécie humana. Foi para as montanhas, queimou a carteira de identidade. Queria ser outra coisa no alto da montanha, se preocupar mais com os coelhos e as capivaras que com seus primos, vizinhas e professores.
Ela fundou uma espécie para todos aqueles que querem se refugiar. Gatos que não querem ser mais gatos, baratas que não querem ser mais baratas, e gente que não quer mais ser humana.
Porque temos que ser mais leais a nós que as árvores?
Por que temos que seguir as ordens dos nossos genes, ou dos nossos governos, ou das nossas leis, ou das nossa espécie?
Lealdade à nossa espécie?
E arrastar os arco-iris para as salas de interrogatório?
Usar chave de fendas nas nuvens se for necessário?
Prender o vento porque ele não tem destino certo?
Multar os girassóis por não pagarem sua conta de luz?
Obrigar as tartarugas a usar placas rodoviárias?
Matar gafanhotos em nosso tempo livre?
E as joaninhas, e as baratas, e bois, bois, bois, bois, bois, bois, bois
Galinhas, galinhas, galinhas, da cara preta.
Minha avó criou a espécie dos avulsos. Venham todas, todas bem-vindas, ela dizia. Não temos que ser leais à raça humana: minha avó dizia:
Mexemos a mesa em que as coisas estão dispostas
Se temos coragem de não deixa-las prontas
Só sendo Ricardão com a espécie, com o gênero, com toda a cultura.
Porque um exercício de traição move montanhas, move secretarias, move ministérios, move museus, move galerias, move armários, move a rua, vira arte.
Sem donos, sem carimbos
Sem códigos de barra, sem barra, sem pedigree
Precisamos de traidores – de onde vai surgir a próxima traição?
A corrupção pode ser feia, feíssima; mas ela morde porque trai.
A traição balança
sacode,
tira as coisas dos lugares.
Temos que aprender a sermos Ricardões de nós mesmas, nem sequer sermos fiéis ao nosso conforto.
Nem sequer sermos fiéis a nossa conta bancária
Ou aos desejos dos nossos filhos contra o desejo dos filhos dos outros
Um anjo move a história, para uma direção, para a outra direção.
Esse anjo é o Ricardão.
Você quer entrar no armário?

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