Este texto orienta um pouco minha cabeça enquanto fazemos o filme Presságios de um continente ekeko.
A exigência comunista:
Dar cabo ao interlúdio colonial
Que se conte outras histórias, uma história sem aceleracionismo:
Antes do bacilo colonial, havia paz e guerra e fartura e miséria na vida dos agrupamentos humanos no planeta. Os agrupamentos humanos, aliás, eram quase sempre bosques, florestas, desertos e enseadas onde viviam outros agrupamentos, enredados nos humanos que por sua vez eram eles mesmos híbridos, cheios de espíritos, animais, vegetais. Haviam comunidades com todo o poder – o terrível poder, injusto e destruidor. Trata-se de um tempo que já desapareceu nas brumas das nossas histórias de progresso que deixam para trás incapazes e primitivos e antiquados. Nestas comunidades havia protagonismo, cosmogênese, apocalipse. As comunidades inventavam engenharias sociais para lidar com seus integrantes e com as demais comunidades – modos de encontrar o que comer, modos de lidar com o sofrimento, modos de gerenciar libido, modos de deixar marcas no que há ao redor.
O colonial entra em cena com os impérios, centralizadores e que anexam o território do comunal e saqueiam parte de seus poderes. O comunismo é gradativamente mas forçosamente substituído pelo imperialismo. Esta substituição não é a marca da necessidade de um progresso ou a marca de um avanço. É a marca de uma dinâmica que ocorre nas comunidades que se apoiam na desigualdade. O acúmulo da vida comunitária tende por vezes a intensificar justiça. Não porque a comunidade tende à justiça, mas porque a comunidade é capaz de encontrar soluções e de melhorá-las. Quando uma minoria privilegiada atua para se ater a seus privilégios, ela pode atentar contra a comunidade. O comunismo é combatido em cada caso pela defesa de privilégios; do passado com respeito ao presente, do já obtido com respeito ao que está sendo obtido. Assim surge a propriedade, ela é uma espécie de destacamento do comunal, um saída para fora do comum: uma vacina contra o comum, contra oferecer uma munição comum, uma imunidade.
Quando as comunidades são anexadas por impérios, os mandatários de fora regem não mais que os semblantes, os tributos externos, o que sai das comunidades. O colonial que intenta saquear o poder das comunidades tem que negociar com elas – tanto para vocês, tanto para o déspota; tanto para o local, tanto para o nacional. É preciso conviver com o comunal que ainda guarda alguns de seus poderes já que é nele que está o tessitura da vida (a produção, a reprodução, os afetos, a produção, os desejos, as rotinas) ainda que a administração da justiça, a segurança e poder sobre quem pode continuar vivendo tenha sido tomado pelo imperial. O colonial se ressente do imperial porque ainda há margem para o comunal.
O colonial fica a mercê dos poderes das comunidades – de suas revoltas como as da Alemanha de 1525 ou da Bolívia de 1781, de suas tramas intestinas como a dos proletários que Pasolini descrevia como tendo uma vida própria mesmo sob o fascismo (dos fascistas) ou dos Yorubás nas Américas em seus rituais secretos e seu conhecimento subalterno e resistente das ervas ou de suas associações como as corporações de ofício dos artesãos europeus ou as aldeias indígenas com seus diferentes graus de intensidade. Se as comunidades lutam por justiça, a convivência imperial entre elas se torna excessivamente custosa. É preciso encontrar uma forma de vida imperial que as desmantele, que prescinda delas, que as dissolva.
O colonial então dá origem ao capital. O capital é o braço do colonial que dissolve as comunidades, que as transforma em indivíduos que não podem senão vender sua força de trabalho. O cercamento do que é comum e a destruição do conhecimento sobre o que é comunal – humano e não-humano – inventa indivíduos e famílias isoladas. O capital gradativamente destitui os elos comunais, combate os vínculos e apegos entre pessoas e entre pessoas e lugares, plantas, animais, minerais. Trata-se de tratar tudo como recurso, como dispositivo, como à disposição. O capital retira para o colonial tudo o que sustenta as comunidades. É um exercício que demora séculos, mas que se acelera. Vocês ainda não viram nada.
Teses sobre o interlúdio colonial
1. O colonial inventou o capital.
2. O colonial desautorizou a vida comunal, ele opera por desterritorializações, esse é o seu território. Mas seu território não é um terra-de-ninguém ou é terra arrasada. Quando ele promove desenraizamento, ele distribui a falta de imperativos para os que o ajudam e a falta de alternativas para os que ele expolia. A falta de alternativas não é a falta de raízes firmes, é a falta de nutrientes.
3. O colonial é o avesso do comunal.
4. O colonial é a substituição acelerada (ainda que por vezes gradativa) do protagonismo pela minoridade.
5. O colonial retira de suas vítimas os meios e inculca nelas o único fim de ter de alguma maneira de ter de volta os meios.
6. O colonial faz o que toca virar café-com-leite.
7. O capital é a infecção criada pelo bacilo do colonial mas não é nenhum progresso, é a substituição dos lugares de poder das comunidades locais – como a Bastilha e como o conselho dos anciões de que fala Chinua Achebe – por lugares de poder do capital global que não estão de fato em parte alguma. É a invenção da parte alguma. E inventar a parte alguma significa inventar a terra arrasada, uma terra que não manda, não comanda, não começa. Extrair das comunidades suas capacidades.
8. O colonial está no Ocidente que precisou recebê-lo queimando bruxas e destruindo as terras comuns – como nas Américas destruiu os xamãs e as aldeias - como está no Banco Mundial e na ciência da economia.
9. Não importa se a colônia reverencie sua metrópole ou qualquer outra – importa é estabelecer a reverência à metrópole. A metrópole ela mesma se torna invisível, desterritorializada, não-localizável e aceleradamente mas gradativamente imperceptível. A colonização é uma diluição do protagonismo.
10. O colonial atua tornando os elos comunitários rarefeitos, sem importância, sucursais, vassalos. Torna as capacidades das comunidades perpetuamente dormentes.
11. O colonial tem um parceria com o nada. O niilismo é um hóspede das religiões da salvação, da vida eterna e da insuficiência do presente. O niilismo é o mestre de cerimônias da espreita; do estado de esperar a hora do bote. Quando ele vem, não é mais o que fazemos que importa, é o que fica feito, são as presenças colossais que podem, como as religiões da salvação, da vida eterna e da insuficiência do presente, sobreviver ao nada roedor.
12. O colonial, parceiro do nada, produz o rarefeito. Condensa a intensidade do que está sendo feito pela maior intensidade do capital que é o que fica à salvo do nada. A aventura do pensamento ocidental é a aventura de um pensamento que não desenvolveu anticorpos para a rapina do nada. Com isso, não desenvolveu anticorpos para a rapina e se tornou refém do capital e, assim, do colonial. E a higiene que prescreve o capital é o cercamento do que é comum.
13. O colonial é uma infecção na vida comunitária, ele pode ser debelado.
Que se conte outras histórias, uma história sem aceleracionismo:
Ao fim do interlúdio colonial, as comunidades são reinventadas. Deixam de ser dispositivos de segurança e passam a ser fricções de abundância. O pós-colonial é neo-comunista: nele o que era comum se torna estranho, avesso ao mesmo. É que o capital transforma o comum em máximo fator comum. O máximo fator comum é a inteligência das coisas. A inteligência adquire muitas faces: o trabalho que se destaca da vida, o procedimento que se destaca do processo, o raciocínio que se destaca do corpo, o artificial que se destaca do natural, a trama que se destaca do aventura. Em todas estas faces, o comum se transforma no mesmo – a convivência em controle, o coletivo em impositivo e a sociedade em unidade. O capital produz o mesmo – ele é o agente performativo de um monismo, tudo é mesmo. Depois do capital, o neo-comunismo trata o comum como o avesso do mesmo; ao invés de mais do já visto, ele é a origem mesma do novo. O capital explicita a máquina de convivência e o sistema de segurança humano das comunidades. Depois dele, as comunidades se reinventam em associações de qualqueres.
O comunismo pós-capital pensa e age desinformado pela ideia de que há uma inteligência nas coisas que pode ser extraído dela. Antes do extrativismo da inteligência, as comunidades que sobrevivem à inteligência artificial, se comprometem em inventar maneiras de responder. O capital foi um suplemento às comunidades que transformou suas capacidades. Mais que isso, o capital introduziu uma abertura na comunidades – elas deixaram de ser fechadas, integradas, unificadas, compreensíveis para serem interrompidas, dialógicas, ch'ixi.