É a terça de carnaval
e eu desembarco em São Paulo na hora do último sol
- o seu sol, o mesmo, aquele que está toda hora outro
e que agora se espalha pelas pontas das coisas
e pela ponta da janela do avião. A hora boa, eu penso,
para chegar a uma cidade – uma hora acolhedora porque desocupada,
ainda que seja uma hora ocupada para quem está na cidade,
é uma outra hora para quem chega. A boa hora, eu penso,
dos pedaços de sol largados na cidade,
é parte de um guia que eu faria
para a tua felicidade. O guia serviria
para tratar o mundo como boa companhia.
Um guia talvez tivesse que ter regras, c
omo as instruções para o uso, como um manual
ou pelo menos algumas pistas. Ou alguns atalhos.
Como por exemplo: chegue.
Ou então: aproveite para flagrar a cidade
quando ela estiver com o último sol largado nela,
em pedaços. Flagrar, porque com uma cidade,
ou com um urso ou com uma onda,
nós encontramos só em flagrante, ou de soslaio ou de lampejo –
se demoramos muito tempo observando, ela se esconde
por trás da nossa própria cara.
Outro exemplo: há coisas que só se iluminam
com pouca luz – claro que elas podem
ficar obscuras, como quase tudo o que vemos
quando ainda não sabemos se nos importa.
Mas há uma lucidez em cada tipo de luz.
Olho para trás no avião lotado, e uma garota que me parece
muito mais jovem que eu e muito mais velha que você
olha para a multidão confinada esperando a hora de desembarcar
com um olhar distante. Ela veste uma camiseta preta em que se lê:
“escape the ordinary”.
Deve ser uma outra regra do manual. Eu gosto de escape – fuja.
Todos os direitos humanos
e não-humanos – todo direito, se é que há algum –
poderiam se resumir neste: o direito de fugir.
Porque casa, comida ou nome próprio
são prisões se você não pode fugir.
Fugir e chegar – já não é mais uma coleção de regras, é uma história,
um esquema de história.
Dizem que as histórias começam com o que vai e com o que fica.
The ordinary: você pode começar alguma coisa,
você pode não prosseguir coisa alguma.
Poder começar, poder fugir – senão, de onde vem a dignidade,
a possibilidade mesma de uma outra órbita, uma revolução?
Direitos. Quando você está imbricada com alguma coisa,
todos eles evaporam.
Você não fica declarando direitos,
você nem fica declarando amores,
você gruda.
Este grudinho é um tudo que não é nada – quero dizer:
não é nada e é tudo.
Ele é diferente do que te compele, porque ele só te conduz.
O que parece tudo e nada é mais turbulento quando
as vezes parece tudo
e as vezes nada.
Não sei o que te dizer sobre isto. Então a regra é: cozinhe e coma.
E ofereça.
As farinhas, os alhos, os tubérculos, as ervas
são cúmplices das tuas forças
mais inesperadas – você não sabe o que elas vão te fazer fazer.
E são manuais. Do tipo que te segura pela mão.
Quanto a mim, já em San Alfonso de Maipo, sentado diante da montanha,
ouvi dizer ontem que escrevi
em algum lugar na internet que você era feliz.
Você vai me dizer se é por isso que,
já que há este espaço absoluto que não tem passado e nem futuro,
olho a terra da cordilheira
na hora boa vinte e quatro horas depois e por isso mesmo também
olhei ontem ainda mais para o sol espalhado na cidade.
PS: Em que língua se escreve para daqui a muitos anos?
E onde encontrar um dicionário para ler o meu diário?