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giovedì 31 dicembre 2015

A Shoah, a Maafa e a Sapucaí

Um texto que eu mandei pra Revista da ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros). Escrevi com um amigo que também sonha com as escolas de samba, Ricardo Lobato.

A Shoah, a Maafa e a Sapucaí
Sobre carnaval e catástrofe


1. O que faz arrepiar
Nas vésperas do desfile das escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro de 2008, uma liminar da Justiça estadual impediu o desfile do carro alegórico que representava o terror dos campos de concentração e extermínio no enredo da Viradouro. O enredo tratava do que traz arrepio: dos maravilhamentos aos êxtases, dos medos aos horrores. A Shoah tem sido considerada um dos horrores da história recente – utilizado muitas vezes como parâmetro de massacre e extermínio4 e também de medida das capacidades de controle pela destruição na modernidade (ver BAUMAN(1989) e AGAMBEN (2008)). As imagens dos campos de concentração e das câmaras de gás se tornaram ícones do apavorante, da extrema violência e da crueldade na cultura ocidental. Muitos filmes, romances, peças de teatro e até mesmo poemas5 foram feitos sobre o extermínio como partes de diferentes mensagens e mostrando os acontecimentos sob diferentes vieses.6 Até então o tema não tinha aparecido nos desfiles de escolas de samba.
A liminar foi apresentada pela Federação Israelita do Rio de Janeiro alegando que o tema da Shoah era inapropriado para um desfile de carnaval, que tem espírito festivo e de alegria, humor, descontração e erotismo. Os desfiles não seriam lugar apropriado para pensar o horror – nem sequer sob a forma da questão sobre o corpo arrepiado – já que estão confinados à festa, onde não caberiam certos pensamentos. A liminar insinua que o tema da Shoah cabe em filmes, romances e até em poemas – mas não em desfiles de escola de samba. Que pensamento foi este que impediu a exibição do carro preparado pela Viradouro para representar a catástrofe? Aquele quinto carro teve que ser substituído por uma alegoria sobre a censura onde se lia “Liberdade ainda que tardia – Não se constrói futuro enterrando a história” em meio a pessoas amordaçadas – e uma imagem de Tiradentes. O carro com a escultura dos corpos retirados da câmara de gás não desfilou. Em seu lugar, o arrepio da mordaça.
Um dos elementos alegados pelo pedido de proibição da exibição da alegoria pela Federação Israelita do Rio de Janeiro foi o plano do carnavalesco, Paulo Barros, de colocar um passista vestido de Hitler sobre o carro no desfile. Paulo Barros havia já inovado a noção de carro alegórico nos desfiles que fez para a Unidos da Tijuca desde 2004. A concepção de Barros era de introduzir elementos humanos na escultura das alegorias – e ao invés de passistas sobre um púlpito, ele introduziu dançarinos em grande quantidade fazendo movimentos sincronizados. Os sincronia da dança dava um elemento vivo à alegoria ela mesma, e os movimentos refletiam eles também elementos do enredo. Foi assim com o carro do DNA onde pessoas pintadas de azul faziam movimentos espiralados. Também foi assim com os amordaçados que vieram na alegoria que substituiu aquela que havia sido proibida: pessoas amordaçadas faziam movimentos sincronizados, não dançavam samba, não eram passistas. Na Viradouro, Barros pretendia com este enredo transversal, tentar pensar o arrepio que, como algumas outras reações corporais, responde a humores muito distintos.
A alegação da proibição, presumivelmente, era que os passistas estariam imbuídos de um espírito festivo ou uma descontração e alegria incompatíveis com a imagem do líder nazista. A ideia de que os elementos sobre os carros são sambistas alegres e descontraídos independentes do enredo da escola é talvez uma maneira de entender os elementos humanos em uma alegoria. A tendência recente – que começou com a introdução de fantasias inteiramente acopladas ao enredo para as baianas por Fernando Pinto na Mocidade Independente (em 1984, 1985, 1987) às comissões de frente coreografadas de Carlinhos de Jesus na Mangueira desde 1998 – é de que menos elementos do desfile sejam alheios ao enredo. O enredo e como ele é desenvolvido toma conta de todos os elementos do desfile. O desfile, assim, torna-se uma espécie de obra de arte total de rua, como veremos. De toda maneira, passistas habitualmente representam ou incorporam elementos do enredo da escola; quando estão sobre os carros alegóricos eles levam o ritmo comum do desfile às esculturas – já que o samba sincroniza os componentes do desfile. No caso, todos os passistas se associam ao tema comum do arrepio através do samba, “nem tudo são flores; há dissabores, infelicidades, vidas perdidas – neste mundo de maldade.” Claramente, a alegria e a descontração não são compulsórias para todos os desfiles – mas os passistas respondem ao que eles expressam com seu traje e, ao mesmo tempo, ao contexto em que o traje se encontra dentro do enredo. Ou seja, os passistas, como todos os elementos de uma escola respondem à sua parte do enredo – localmente às suas alas ou aos seus carros – e globalmente ao enredo como um todo expresso no samba. Sobre o carro dos corpos indo para o crematório, os elementos humanos iam também responder ao tema da alegoria e também ao arrepio, o enredo da escola. Como isto aconteceria na avenida ficamos sem saber uma vez que a alegoria foi interditada e substituída por outra.
Filmes, livros e outras manifestações sobre a Shoah já foram alvo de processos, críticas e boicotes.7 Na maioria dos casos, no entanto, o problema era como os episódios da catástrofe eram retratados – de um modo excessivamente indulgente, ou excessivamente cômico ou mesmo excessivamente descontraído. É como se o pensamento, que navega nas margens dos esquecimentos, das lembranças, das importâncias e das indiferenças corresse riscos e precisasse ser de alguma forma observado e monitorado de perto quando trata da catástrofe. Talvez porque, como Elizabeth Costello diz a Paul West no romance de Coetzee (COETZEE, 2004), aquilo que escrevemos (ou filmamos, ou desfilamos) faz não apenas o público mas também a nós mesmos melhores ou piores. Observar e criticar a mensagem é uma maneira de dizer que o meio importa. No caso do desfile da Viradouro, no entanto, a alegação parece ser de que o tema não é apropriado de modo algum ao meio – não que disso não se fala assim em um desfile de escola de samba, mas antes que disso não se fala em um desfile de escola de samba de modo algum. Ou seja, o meio é inapropriado para o tema – não importa como ele seja tratado. O argumento da alegação parece ser que os desfiles de carnaval não são a forma apropriada de se pensar na catástrofe. Resta a pergunta, é claro, sobre o que é que pode pensar as escolas de samba desfilando na avenida.

2. A disciplina do enredo
A história dos desfiles das escolas de samba está repleto de episódios de censuras diretas ou indiretas, de proibições e de interferências de autoridades de todo tipo. A turbulenta história dos desfiles de escola de samba é uma trama de conflito com autoridades constituídas. Em 1937, por exemplo, um ato de um delegado, Dulcídio Gonçalves, interrompeu os desfiles na Praça Onze antes mesmo da Mangueira, do Prazer da Serrinha e de outras 14 escolas desfilarem. Os anos 30 foram anos pesados em que a repressão deu forma e conteúdo aos desfiles. Interferências de outras autoridades também afetaram os desfiles. Em 1960, a Império Serrano teve que modificar seu samba e o nome do seu enredo após representação da embaixada do Paraguai, já que o desfile, chamado “A retirada da Laguna” mencionava negativamente personagens e episódios do tempo de Solano Lopes. Depois de uma complicada negociação, a escola modificou seu samba e o enredo passou a se chamar “Confraternização Latino-Americana”, já que o governo federal da época dizia se esforçar para estabelecer políticas convergentes na região (ver, por exemplo, CABRAL (1996) ou COSTA (2001)). Ainda mais dramático foi a censura nos anos do regime militar.8 Em particular, o famoso desfile da Império Serrano de 1969 (“Heróis da Liberdade”) que teve em seu samba, composto por Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola e Manuel Ferreira a palavra “revolução” substituída pela palavra “evolução”. Mais recentemente, no clássico desfile da Beija-Flor de 1989 (“Ratos e Urubus Larguem Minha Fantasia”), o carro que viria com uma reprodução do Cristo-Redentor foi proibido por interferência da Igreja Católica. Joãosinho Trinta, que havia preparado um desfile Brechtiano sobre a indigência e a suntuosidade na vida dos que desfilam na avenida, tapou o carro com pano preto e colocou sobre ele um cartaz onde se lia “Mesmo proibido, olhai por nós”. Ali, Joãosinho insinua que, para os artistas de rua, até mesmo os ícones de devoção são invocados indiretamente e, apenas através de um véu preto, podem abençoar. O sagrado tem que ser mantido longe da rua, protegido, ainda que por um pano preto, das hordas que, só assim, podem pedir sua proteção.
A proibição do carro da Viradouro orienta este texto. O arrepio, decidiu a liminar, não pode ser considerado por uma escola de samba levando em conta a catástrofe do extermínio em massa de pessoas. Além de uma possível incompreensão do que se tornaram os desfiles de escola de samba nos últimos 50 anos – e de como a noção de carnaval mobilizou a história do gênero – há duas questões importantes e relacionadas entre si que a proibição traz à tona. Primeira, se certos temas são de fato incompatíveis com a arte de rua que não poderia tratar de coisas pungentes, mortais, decisivas ou politicamente muito sensíveis. As ruas deveriam se contentar com as migalhas do que pode ser pensado. Segunda, se certos temas não podem estar associados ao espírito geral de folia já que esta invoca uma alegria e uma descontração incompatíveis com o pungente, com o mortal, com o decisivo ou com o politicamente muito sensível. Ou seja, a proibição convoca questões acerca da compatibilidade entre catástrofe e carnaval. E, considerando os desfiles de escolas de samba, acerca de se há uma tonalidade em que o catastrófico não pode ser pensado. Este texto não pretende muito mais do que se aproximar destas questões. Não se trata de responde-las ou solucioná-las, mas antes de torna-las vívidas.

3. Arte e folia
A arte urbana dos desfiles de escola de samba é uma evocação. O desfile é obra de arte total de rua que congrega música, dança, escultura, instalação, performance e teatro. Elementos de cada ala contribuem para um conjunto global que dá sentido a toda obra. Da maneira como conhecemos hoje, os desfiles tem talvez oitenta anos, mas sua natureza foi se transformando a cada década, a cada desfile. O elemento comum da evocação permitiu que os desfiles se transformassem de ranchos e blocos para a capacidade de desenvolver um enredo por meio dos seus componentes, dispostos em diferentes alas uniformizadas e, ao mesmo tempo, integrados pelo canto comum.
O desfile é assim um malabarismo de diacronias e sincronias: o enredo se desenvolve ao longo das alas e o samba-enredo fala de todo enredo, e é cantado repetidamente; por outro lado todos cantam juntos e todo tipo de elemento plástico dá unidade ao conjunto do desfile. É um malabarismo complicado que muitas vezes falha: o samba atravessa, os carros destoam, as alas se atrasam e criam brancos, o samba não empolga os componentes. O desfile das escolas de samba é morfogênico: inventa uma forma. Mais que isso, faz do espírito carnavalesco um ingrediente utilizado de diferentes modos para obter certos efeitos. Há elementos fixos (muitos deles estabelecidos pelos critérios mesmos do julgamento dos desfiles): samba-enredo, ala das baianas, mestre-sala e porta-bandeira, comissão de frente, bateria sem certos instrumentos entre outros. Estes elementos, contudo, servem de restrições para a composição – oferecem uma gramática a partir da qual coisas distintas podem ser articuladas. Por causa disso mesmo, os desfiles tem uma forma em grande medida aberta. Como toda arte aberta, o desfile de escola de samba está pra jogo: sua história é parte de sua forma.
Porém a proibição do carro da Viradouro em 2008 descreve os desfiles como tendo um compromisso com a folia, com a alegria, a descontração e o erotismo. A pressuposição, que seria independente do tratamento que fosse dada à catástrofe no desfile da escola, é que o terrível não pode ser tratado com descontração. Como se o erotismo próximo do massacre não pudesse produzir pensamentos diferentes daqueles da Repubblica di Salò. A pressuposição parece ser a de que não pode haver liberdade temática para os desfiles de escola de samba porque a forma dos desfiles em si mesma restringe aquilo de que pode tratar. O que a proibição do carro alegórico traz a tona poderia ser entendido em termos da natureza mesma da seriedade: temas sérios requerem tratamentos ou tonalidades de certa natureza? Ou, antes, aquilo que é instituído como sério, fica instituído assim apenas porque algo impede que apareça em alguns contextos eles mesmos menos sérios? Serão a alegria e o erotismo incompatíveis com alguns assuntos demasiado sérios que por sua vez não poderiam ser considerados senão sob certas condições que o carnavalesco e o popular não atendem? Será simplesmente que as escolas de samba são parte de uma baixa cultura que não estaria equipada para pensar em questões mortais?

4. Shoah e Maafa
Nos últimos 50 anos, os desfiles de escolas de samba aceleraram sua história no sentido de que passaram por muitas transformações – e transformações que derivaram em que diferentes coisas passaram a ser cabíveis nos desfiles das escolas. Um elemento importante introduzido pelos desfiles do Salgueiro de Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues nos anos 60 e início dos anos 70 foi os temas da história africana do Brasil. Pamplona, formado na Escola de Belas Artes do Rio e cenógrafo do Teatro Municipal, entrou no carnaval do Salgueiro em 1960 e procurou um enredo histórico ainda não abordado pelos desfiles no passado. Obteve naquele ano o primeiro título para o Salgueiro com o enredo sobre Zumbi dos Palmares. Em 1963 o Salgueiro ganhou outra vez o carnaval sozinho pela primeira vez com um enredo que tratava de Chica da Silva, como uma heroína negra. No ano seguinte, foi a vez de Chico Rei. O desfile de 1964 foi precisamente, portanto, sobre a Maafa – a catástrofe africana. A Maafa foi composta pela organização de campos de trabalho forçado em dois ou três continentes, pelo organização da vida das pessoas em função do trabalho produtivo, do tráfico sistemático de pessoas e do extermínio de todos os considerados inadequados para o regime de trabalho.9 Assim como a Shoah ou outras catástrofes, a Maafa também foi um episódio (longo) de escravização e genocídio cometido de maneira sistemática e legitimada de tal maneira que não havia espaço, no sistema escravagista, para nenhum recurso, nenhum apelo, nenhuma instância de implementação de justiça. Assim como a Shoah, a Maafa também é vista pela história dos vencedores como o massacre contra um povo (ou um conjunto dos povos). Do ponto de vista dos escravizados e dizimados, trata-se de um ataque sem razão nenhuma. Sem presságio. Sem antecedentes. Sem fio condutor. Como diz o samba do Salgueiro daquele ano, “um dia, ...[a] tranquilidade sucumbiu, quando os portugueses invadiram, capturando homens para fazê-los escravos no Brasil”. A história contada no enredo do Salgueiro – a de Chico Rei – é uma história de adaptação ao status quo escravocrata. O rei capturado compra sua alforria – e a alforria de seu pessoal – e depois compra terras e tem escravos, adota o nome de Francisco e se converte ao catolicismo e, por fim, ergue a igreja de Santa Efigênia do Alto da Cruz em Ouro Preto, uma igreja para os negros alforriados. Trata-se de uma história de cooptação do escravo – mas também, como viu o enredo de Pamplona, de uma história negra de êxito. Uma história, contudo, traçada pela migração forçada, pelas mortes precoces e pelo assassinato dos inábeis. Também pela destituição de toda uma maneira de pensar e de saber – a cooptação de Chico Rei coroa um epistemicídio sistemático.
Os carros de navios negreiros, com todo seu sofrimento e desolação, passaram a se multiplicar nos desfiles. O tema já havia sido enredo do Salgueiro em 1957 (“Navio Negreiro”), e continuou sendo uma constante nos carnavais. Por exemplo, em 2012 dois carros exuberantes de navios negreiros entraram na avenida, da Beija-Flor (em “São Luís – Poema Encantado de Amor”) e da Vila Isabel (em “Você Semba De Lá Que Eu Sambo De Cá – o Canto Livre de Angola”). Nestas alegorias, frequentemente há passistas que seguem a cadência da escola, sorriem e dançam. Talvez se possa dizer que a presença dos navios negreiros banalizou a Maafa e que, talvez, a liminar procurou evitar que o mesmo se desse com a Shoah. O argumento não está presente nos documentos que nortearam a proibição do carro alegórico da Viradouro em 2008 que não faz nenhuma menção à Maafa e nem sequer ao que aparece nos desfiles das escolas nos últimos anos. Porém o argumento em si mesmo é duvidoso: os muitos carros alegóricos fizeram parte de uma presença constante do tema da catástrofe africana no carnaval em um país onde não há sequer um museu dedicado ao massacre perpetrado pelo status quo brasileiro e por seu antecedente colonial. Ainda que possa ter banalizado a associação entre carnaval e navios negreiros, as alegorias fixaram na cabeça do público que foi através de navios de concentração que a população africana chegou para quase toda morrer nos campos de trabalhos forçados no Brasil. Os carros também evocam a destituição dos coletivos que foi a catástrofe africana. Talvez um efeito similar pudesse ser alcançado com alegorias como aquela que Paulo Barros tentou colocar na Sapucaí. Talvez a história de muitos judeus, ciganos e outras vítimas da Shoah no Brasil ficasse evidenciada e refletida pela alegoria. De todo modo, aquilo que os desfiles promovem é múltiplo: é da ordem de um resgate de uma identidade, mas também da capacidade de crueldade, da memória e, potencialmente, do arrepiante.10
Desde o Estado-Novo, haviam determinações de que os desfiles se limitassem a enredos nacionais e a temas que surgissem da história (oficial) do Brasil. Os desfiles do Salgueiro nos anos 60 e 70 introduziram muitas modificações junto com a temática da história africana. A imagem também era de que os desfiles eram uma manifestação folclórica mais ou menos estável e estática. Nada como uma obra de arte total parecia estar em jogo nestas determinações. A partir dos anos 1960, os desfiles começaram a fazer mais do que ecoar a história aceita, mas também a pressioná-la, encurvá-la, apresentá-la a contrapelo de modo que os heróis negros preponderassem (como o carnaval mencionado de Zumbi dos Palmares em 1960, Aleijadinho em 1961 e como na história da liberdade no Brasil em 1967). Em 1971, com “Festa para um rei negro”, a escola tratou do primeiro rei negro reconhecido internacionalmente, Haile Selassie, o Ras Tafari.
Lentamente, desde os anos 1930, quando o enredo era uma quesito relativamente de menor importância no julgamento dos desfiles, os carnavais passaram a tratar de um tema. Também ao longo do tempo, os desfiles passaram a ser embriões de engajamentos e, ao mesmo tempo, passaram a se relacionar, graças a Pamplona e Rodrigues, com a comunidade artística do Rio. Gradualmente, os desfiles passaram a ser assinados e o enredo passou a ser um elemento motriz de todos os outros – ficou consolidada a ideia de que os desfiles tinham autores que tratavam os enredos. Estes eram os carnavalescos que passaram a imprimir suas marcas nos desfiles – as cores de Max Lopes, as alegorias leves de Rosa Magalhães, os metálicos de Fernando Pinto etc. Os carnavalescos passaram a ser disputados pelas escolas com base em sua obra passada. Os desfiles deixaram de ser então tanto arte coletiva de uma comunidade, e passaram a ser, implementados por uma comunidade estruturada de músicos e dançarinos, uma manifestação de autor.

5. Carnaval de autor
A ideia de um carnaval de autor pode ser comparado com aquela de cinema de autor. No cinema de autor, o filme inteiro é assinado: fotografia, roteiro, direção de elenco, cadência. Tudo é assinado e, assim, ao invés de uma arte cooperativa, os diretores deram aos filmes com suas marcas pessoais. Em particular, a partir dos anos 1960 – o tempo de Pamplona no Salgueiro – o cinema de autor se difundiu com diretores provenientes do neorrealismo italiano, da geração alemã de Fassbinder e Herzog e no cinema novo brasileiro. A difusão do cinema de autor teve muita relação com a imagem de cinema como forma de arte completamente clara no Cahier du Cinéma que pautou a Nouvelle Vague francesa. Truffaut, naquela publicação, investia contra alguns roteiristas consagrados em um realismo psicológico envelhecido e abjeto (ver LE BERRE 1994). Este era o ponto nevrálgico do argumento: os roteiristas até então ditavam o teor da produção, restava ao diretor ser um burocrata dos enquadramentos. Com a montagem insubordinada, personagens sedutores e movimentos de câmera insinuantes, o Bout de Souffle de Godard virou o paradigma de cinema de autor. A reviravolta pode ser entendida aqui como uma rebeldia do diretor contra a trama pronta, contra o roteiro imperativo. Algo parecido pode ser dito da intervenção da geração de Pamplona (e de Rodrigues, mas também de Maria Augusta, Fernando Pinto e Joãosinho Trinta). O Salgueiro foi um laboratório que permitiu usar os desfiles para experimentar elementos plásticos, materiais, temas, cores e até passos de dança como a ala de dançarinos de minueto levados para avenida em 1963. O Salgueiro introduziu o elemento de experimentação nos desfiles, desafiando os aspectos formulaicos arraigados na maneira como os enredos eram apresentados até então. Por isso mesmo, aquela geração abriu caminhos para um carnaval de autor em que o tema importa menos do que a montagem, a disposição das alas, a ousadia dos passos e a insinuação dos materiais.

O carnaval de autor e sua experimentação tornou o carnaval vivo e instigante – não se trata mais de uma repetição de uma fórmula, mas de uma negociação original a cada ano com restrições impostas pela história, pelo regulamento e pelo traço do autor. Como manifestação artística, o desfile passou a poder ser lido como uma obra de arte total também no sentido europeu: a expressão de um autor com uma ideia na cabeça e seus recursos de expressão na mão. Há, ainda, um elemento relativamente alheio ao cinema de autor e outras formas de arte total: a presença de um corpo de jurados que a partir de dez quesitos determinam qual é a melhor escola que se apresentou nas noites de desfile na Sapucaí. Um paralelo direto deste jurado pode ser encontrada na forma de arte total das tragédias áticas que se apresentavam em um festival competitivo na cidade (rural) de Dionísia. Ali, os autores se esforçavam para ter um bom desempenho competitivo, e isto acontecia se eles conseguissem inovar dentro dos elementos estabelecidos do teatro grego. A competição, em ambos os casos, oferece um outro limite à experimentação – ela tem que se enquadrar em expectativas de quem julga. O cinema de autor também responde a este tipo de restrição: há o público a ser satisfeito, e há os festivais de cinema que premiam anualmente alguns filmes. Assim, Cannes ou Berlin funcionam um pouco como os certames de Dionísia ou da Sapucaí: oferecem parâmetros com os quais os autores negociam. É sempre uma negociação complicada onde frequentemente dois passos a frente são sucedidos por um passo atrás – certas inovações de vanguarda são lentamente assimiladas pelos filmes, e carnavais, ao longo do tempo.
O carnaval de autor negocia com estes parâmetros de diferentes maneiras. Assim, desde os anos 1960 e sobretudo ao longo dos anos 1980 e 1990 muitas inovações foram premiadas e muitas outras condenadas pelos jurados. Se “Kizomba – A Festa da Raça”, de Milton Siqueira, Paulo César Cardoso e Ilvamar Magalhães conquistou o título para a Vila Isabel em 1988 introduzindo todo tipo de materiais e cores africanos – da palha ao barro das construções de Timbuktu –para substituir os paetês e brilhos tradicionais do carnaval, o “Ratos e Urubus” de Joãosinho Trinta, talvez o carnaval mais inovador de todos não deu o título à Beija-Flor em 1989. A ousadia de Ney Ayan na Império Serrano em 1991, com “É Por Aí Que Eu Vou”, onde caminhões não decorados cruzaram a Sapucaí sem disfarces para tratar dos caminhoneiros, foi penalizada com a saída da escola do Grupo Especial. Em todo caso, não são os temas propriamente que decidem o destino dos carnavais, é antes a maneira como os temas são desenvolvidos na avenida, como o enredo é desenvolvido e como a inovação da realização negocia com os parâmetros fixos estabelecidos e com a história dos desfiles.

6. Carnavalização e sacralização
O apelo a ideia de um carnaval de autor talvez sirva para tornar o desfile de escolas de samba mais próximo das formas de arte total como o cinema onde podemos atribuir a responsabilidade não a um coletivo mas a quem assina. Esta aproximação permite perguntar porque a Shoah não pode aparecer em um desfile de escola de samba se aparece em filmes (e poemas, romances e peças de teatro). Uma questão mais ampla é se a interdição da Shoah se aplica a qualquer forma de carnaval e se, mesmo se ela pudesse ser tratada por autores, ela ainda assim seria tema inapropriado para expressões de arte coletiva. Essa questão ampla diz respeito à compatibilidade mesma entre catástrofe e carnavalização, entre assuntos viscerais e a descontração da folia. O carnaval tem uma tradição de abordar temas proibidos e até macabros (ver HUMPHREY 2001). A carnavalização é um artifício que deixa os temas mais palatáveis e permite que, permeados de uma euforia por vezes desvairada, outras vozes sejam ouvidas, outras perspectivas possam ser canalizadas. A carnavalização é uma desarrumação que torna explícito a fragilidade das construções a partir das quais vidas são moldadas. Ela expõe um gradiente de arbitrariedade que torna sério o seu objeto – neste sentido, ela contrasta com o que é sagrado que é colocado fora dos limites11 (em particular, fora dos limites dos processos carnavalizadores).
Sem explorar os dispositivos de carnavalização, este texto se restringe aos desfiles de escola de samba no Rio de Janeiro e engaja o carnaval de fato em uma forma autoral e de fácil leitura para quem entende arte como tendo assinaturas individuais. É neste contexto que é interessante pensar no que conduz a proibição do carro sobre a Shoah, em comparação tanto com a presença ubíqua de elementos alegóricos sobre a Maafa – talvez em algum sentido carnavalizando-a – quanto com os filmes e textos que, também autorais, fazem uso da catástrofe para conduzir uma trama. Com diferentes intensidades de carnavalização, os desfiles propõem-se a abordar assuntos, a fazer associações, a considerar elementos conjuntamente e a olhar alguma coisa de um modo inusitado. Trata-se de um empreendimento estético – é a estética que apela, que conclama e que engaja em uma obra de arte total. Por isso, ela tem sua força. Proibir a estética dos desfiles de trazer a baila uma catástrofe é desacreditar na sua capacidade de encontrar um modo original ainda que apropriado uma questão.
Talvez se possa dizer que a Maafa e a Shoah são diferentes porque a última ocorreu há mais tempo e assim é menos parte de uma história recente. Primeiro, há que se considerar que a distância cronológica entre 1888 e 1957 de um lado e entre 1945 e 2008 do outro não é tão marcada. Porém, mais importante que isso, é que a história e suas marcas são presente tanto quanto passado: os vestígios destas catástrofes estão presentes hoje como em 1957 e como 2008. Ou seja, estas catástrofes modelaram muitas instituições, práticas, subjetividades e estruturas políticas de hoje. Ambas tiveram enorme impacto para além das supostas identidades de suas vítimas – e ambas marcaram o destino dos descendentes destas pessoas. Talvez a diferença esteja antes na imagem mediatizada de uma tragédia – uma imagem oficial que substitui os poucos minutos de filmagem dos campos nos dias seguintes à Liberação. Há uma visão da Shoah, composta por crematórios, câmaras de gás, cercas eletrificadas e kapos que trabalhavam pelo privilégio de comer o suficiente. Esta visão, seguramente aterradora, está vívida e presente graças a presença da catástrofe na mídia. Já a Maafa parece distante porque suas marcas foram apagadas e nem sequer há uma imagem icônica dos navios transportadores de gente ou dos açoites genocidas a que eram submetidos os insubmissos e os incapazes. As catástrofes procuram destruir suas marcas, e em geral conseguem. Que uma catástrofe tenha conseguido imagens icônicas que a tornem vívida na memória coletiva não deveria deixa-la mais presente que outras, ela apenas está mais nítida – e este é o efeito da imagem mediática que a relembra.
Parece que o que está em jogo na proibição – como no caso do Cristo Redentor da Beija-Flor de 1989 ou da revolução da Império Serrano de 1969 – é que o que é tomado como sagrado não pode ser alvo de carnavalização. O sagrado é precisamente aquilo que deve ser preservado – aquilo que merece seriedade, merece ser poupado de toda operação que o faça ser pensado junto com outras coisas. A Shoah adquiriu um elemento de sagrado – o que, em certo sentido, preserva sua memória mas ao preço de deixa-la impensada em alguns contextos. Olhar para a memória é Uma questão que aparece é se a sacralização (dependente de instituições que sacralizam) é o melhor a se fazer com a memória da questão ou se o caminho da multiplicidade e da proliferação de referencias ao evento presta um melhor serviço à difusão por meio de sua maior dispersão. Outra questão, no entanto, se aplica a Maafa: ausente dos espaços instituintes de sacralização, ela fica completamente disponível para ser carnavalizada?
A sacralização é anátema da carnavalização: o sagrado é o intocado pelos dispositivos que produzem carnaval. Os desfiles de escolas de samba do Rio, no entanto, criaram uma outra matriz de sacralidade cristalizada em sua estética e em sua história. Trata-se de uma sacralidade alternativa aos mecanismos de sacralização das instituições: a estética tem uma capacidade persuasiva porque ela desloca o sagrado, reinventa as inteligibilidades. A matriz de sacralidade dos desfiles impõe restrições internas ao que pode acontecer no Sambódromo em dia de carnaval. Este texto procurou enfatizar esta matriz focando no gradual surgimento do desfile de autor onde a obra de arte total de rua é assinada. Este foco fez perder de vista um pouco da generalidade dos processos de carnavalização em prol de tornar os desfiles mais próximos de outras formas de arte total, em particular do cinema. Os desfiles de escola de samba, deste modo, aparecem vividamente ainda contrastados com artes totais alheias à carnavalização. Este contraste ilumina outro, entre a catástrofe judaica e a catástrofe africana como temas que por sua vez permite ver como há mais de uma medida para o que pode sair na Sapucaí. Afinal o que ainda falta na história estética dos desfiles de escolas de samba para que eles possam parecer capazes de pensar qualquer catástrofe, independente de credo ou raça?

Referências:
AGAMBEN, G.  Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I, tr. Henrique Burigo, segunda edição., Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz, São Paulo: Boitempo, 2008.
ARENDT, H. Eichman em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal, tr. de José Rubens Siqueira, São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BAUMAN, Z. Modernity and holocaust, Cambridge: Polity, 1989.
CABRAL, S. As escolas de samba do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Lumiar, 1996.
CELAN, P. Gesammelte Werke, ed. B. Allemann, S. Reichert, R. Bücher, Frankfurt: Suhrkamp, 2000.
COETZEE, J. M. Elizabeth Costello, Londres: Vintage, 2004.
COSTA, H. 100 anos de carnaval no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Irmãos Vitale, 2001
CRUZ, T. P. As escolas de samba sob a vigilância e censura na ditadura militar: memórias e esquecimentos, Tese defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
FACKENHEIM, To Mend the World: Foundations of Future Jewish Thought,, Nova Iorque: Schocken, 1988.
Humphrey, C. The politics of Carnival, Manchester: Manchester University Press, 2001.
LE BERRE, C. Truffaut au travail, Paris: Cahier du Cinéma, 1994
ROBERSON, E. The Maafa and beyond, Columbia: Kujichagulia, 1995.
SEXTON, A, The Awful Rowing Toward God, Boston: Houghton Mifflin, 1975




giovedì 24 dicembre 2015

Evidências (primeira) e Transmutá de Tateann


Evidências (primeira)

Transmutá:

em nome do cais
do trilho
e do espírito banzo

ele me disse “sim”
ele disse “não”
ele disse: talvez

em nome do capataz
do grilho
e do espírito claustro

ele me disse “sim”
ele disse “não”
ele disse, talvez

em nome do maiz
o milho
e seu espírito quântico

ele me disse “sim”
ele disse “não”
ele disse! talvez?

em nome do saravá
do brio
e do espírito solto

ele me disse “sim”
ele disse “não”
ele disse tao vez

em nome do ai
do íleo
e do espírito sângueo

em nome do hepático
do rínio
e do espírito pâncreas

ele me fez

renome Orí-zoma
bile tática
instinto drapetômano

ele me fez

o xamânico bicho
ancestral biônico
animal ilícito

ele me fez

tectônico rito
continente risco
y o espírito pranto

ele tex
tura

de pele
cura
quebranto
lura
acalanto
de pele es
cura

era tanto
de areia
de fundo
de mar
de low
cura

Ilê me disse “sim”
Ikú “não”
ao amém

NÃO!

e Ele dissen-

tão vem

Tata

Atotô,

Baba.

o curandeiro palhico é o pai,
em seu canto,
Sapatá
dançarino varíoloco o filho,
em seu banho,
Odoyá,
doburu é o espírito do milho,
em seu manto:
pipocá

para transmutá
para transmutá
para trans

mu

tatá
tatá

ta ta

tá tá


Mais Tateann

Rostos negados

Silogismo parece haicai
já que argumentos são musiquinhas.

Os dias.

Se eu pudesse conviver com esquecimentos,
com cada estranho,
me lembraria por todos.

Abri meu tambor de Fez, já que o couro
furou.
Lá dentro tinha um cartão de embarque e uma caneta:
"Reinventar a composição química da terra,
reinventar meus olhos.
Grades são feitas de loterias sem regras
pesam.

Minhas memórias se derretem no ralo.
Minhas memórias são saliva,
moléculas de placidez.
Estou todo vestido da cabeça aos pés, meus sapatos combinam com minha cara.
Estou com as calças arregaçadas sobre um ralo e sinto o cheiro.
Um cheiro.

Medos são estrada, semáforo e guarda de trânsito de tudo o que eu senti,
mas não senti nada, senti o mar de insensibilidade.
Um mar.
Uma poça d’água de insensatez.

Nem controlo o que olho––olho para os sapatos, distraio da cara.
Muito menos que o perigo de ultraser e não tenho fôlego para o fastio
––eis minha placidez; tufões serenos, os continentes a afundar.
O vento sopra dos relógios."

Tentei me lembrar já se era Tarfon, Shamai ou Hilel
que deixaram em Fez o cartão de embarque no tambor.
Tentei me lembrar.
O salário é considerável.


venerdì 18 dicembre 2015

One eyed (Meena Kandasamy)

the pot sees just another noisy child

the glass sees an eager and clumsy hand

the water sees a parched throat slaking thirst

but the teacher sees a girl breaking the rule

the doctor sees a medical emergency

the school sees a potential embarrassment

the press sees a headline and a photofeature

dhanam sees a world torn in half.

her left eye, lid open but light slapped away,

the price for a taste of that touchable water.


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Torpor

Neste poema de Bagul, o horizonte aberto: surge um barco no mar, uma vela,
e nela uns deuses novos, o nome das coisas,
o nome das velas
o nome dos barcos,
o nome dos pedaços das velas e dos barcos -
um jeito de proceder com o mar,
um jeito de juntar o oceano que chega ao Índico ou ao Caribe
com a persistência dos meus pares em seguir vivendo
de conchas, de peixes, de sal, de iodo ou de luz.
Houve um dia em que os nomes tomaram conta dos modos,
houve um dia em que a mordida de quem quer acordar outra vez amanhã
se misturou ao que não era nada.

Esta mistura dos dalits com as diferenças sexuais e com
as identidades ancestrais faz as máscaras ficarem rasgadas,
recortadas.
E elas ainda tampam.

Before the Vedas (Baburao Bagul)

You lived before the birth of the Vedas
even before the birth of the Almighty
looking at the frightening material
pained and anxious you raised your hands
and prayed
those prayers went to make the Vedic verse,
it is you who celebrated the birth of all gods,
and named them happily
oh the mighty humans,
you named the sun
and the sun got its identity,
you named the moon
and the moon got its fame
only you gave a name to this world
and it was accepted with honour
oh the creative, the genius humans,
you are the cause
because of you so beautiful,
so lively is the world. -
See more at: http://sanhati.com/excerpted/6049/#sthash.SfaCrU7V.dpuf

Torpor dravídico

Meio tonto, meio doente, situado em um fim de linha. Leio Limbale. Um romance. Penso nos dalits como são retratados por Libale, nunca são deixados sós na sua subalternidade - há sempre patrões, e diferenças sexuais, e aproveitadores, e ancestrais. Encontro um texto esquizotrans assim:

Os pes encabulados, surda, os dentes pretos de fumaça de carros, de todos os cigarros e um punhado de submissão, de falta de gozo, de barriga doída de lombriga. Caspas e pétalas de flores cometendo o brilho do seu cabelo já ralo. Intocável. Desde pequena, intocável. E desvanescida. Vinda de casta derradeira, um fruto podre nascida escolhida pra ser pior que ratos, ser pior que qualquer bicho, mão de obra barata. As posições retorcidas da coluna pra carregar as bacias, o pescoço duro de aguentar lenha de patrão, de senhora, mãos habituadas a pedir esmola e a guardar sapatos na entrada do Templo.

Há muito não lhe importunava os ombros de fora, as vestes rasgadas e se contentava com folhas verdes, folhas de árvores. Teve um tempo em que sentiu força pra mudar de casta, furar o cerco, subir na escala, alcançar a pirâmide... Talvez se não fosse tão escura, tão feia, tão fêmea. Foi na época da rebelião hormonal que se instalou em sua cútis que exigiu mais respeito, mais dinheiro e mais atenção, e até conseguiu alguns ouvidos, nesse tempo seus devaneios lhe pareciam escandalosos: se imaginava dançante dos templos de shiva nataraja, da mais alta hierarquia das dançarinas. As que abençoam com mãos e cantos e também fazem milagres. Não lhe importava que isso fosse coisa de homens, queria carregar o deus amado em seus ombros fortalecidos de carregar roupas encardidas, do pai, dos irmãos, das tias, tudo numa bacia gigante, sua companhia.

Não odiara os ingleses, nem os arianos, pelo menos não o bastante – sua impostação era puro amor, sem nem ressentimentos contra as descrições escassas sobre sua personalidade viva. Teve poderes e fez ressecar feridas com toques de unhas. Sua força atômica não empunhou peixeira, nem dardo, nem cabelos assanhados. Achou que bastava ser feiticeira. O que lhe sobrava agora era um estranho fetiche com sapatos de turistas. Polia-os e sofria de graxa, de costura, imitava brilhos, usava dez anéis roubados nos dedinhos dos pés e parecia a beira do colapso. Não morria. Quatro cachorros lhe seguiam e ela cuidava dos seus fiéis andarilhos, que latiam e protegiam da noite sem teto dormida no puxado do templo. Sim, ainda era abençoada pois dormia perto do templo e às vezes de noite cantava e embalava no sono alguns companheiros de destino.

Intocável. Será que por isso nunca casou, será que por isso nunca deu cria? Porque disso sempre fugira e nunca, nunca aconteceu. Era por demais dos deuses, e eles sabiam disso, o que atrapalhava era a hierarquia, da qual não tinha clareza mas obedecia. Já pouco lhe sobrara de certeza e quase nenhuma feitiçaria. Os deuses a queriam carregando a extinção com a ponta dos dedos, na ponta dos pés. Mas ela pisava no chão. Foi com muito atrapalho interno que um dia roubou um sapato do templo, e foi essa toda a maldição consequente. Primeiro a alegria, os sapatos eram perfeitos para seus pés e eram fortes, de material sagrado. Depois uma gastura terrível, quase uma falta de ar. E súbita. Coro de vaca nelore, que escárnio!

Ela vestiu o escárnio. No início com timidez e apenas quando dormia em seus quartos mais secretos; não queria ser vista já que tudo nela contrastava com aquele sapato de couro bem nascido, bem criado, bem matado e bem cortado. Profaníssimo. E nela tudo era lama do nariz, tudo era desgostura, tudo era gerações de improviso ardido. Não era sapato de sua classe, nem de sua casta, nem de sua cor, nem de seu domicílio, nem de sua imperfeição. Seus quatro cachorros de guarda entendiam hedonistas que aquele conforto caia bem e já estava apropriado. Eles eram veículos, entre o santo e as heresias incontáveis, não eram criaturas de um só mundo, nem pisavam sempre nos mesmos chãos. E seguiam ela e seus sapatos torpes e confortáveis. O sagrado despedaçado em utensílios perde a boa aura mas os cachorros não seguem a aura, seguem o fedor onde fizeram ninho, onde se acolhem com toda a cumplicidade ou com toda indiferença. Os cachorros sim seguiam templo adentro, sem parar na porta como a pastora porca que era intocável. Eles entravam e engoliam farelos alheios a qualquer solenidade ou embriaguez. O que alimenta não tem procedência. As vezes ficavam por cerimônias inteiras, se coçando, se lambendo, se arrastando no chão do templo. E depois voltavam ao fedor familiar de sua intocável, que eles achavam roçável. Ela então se retirava para um bueiro feito privado e ali sim colocava seus sapatos para virar deusa intocável, inatingível, inalienável. De uma religião clandestina, prolífica e piedosa.

Depois de algumas semanas ela perdeu mais esta cerimônia e passou a ficar na porta do templo também com seus sapatos. Por que ela haveria de ter pudor? Pudor é para quem tem recônditos e ela era escancarada, pedia, implorava, se arrastava, lambia os sapatos – podia vestir o descalabro. E se sentia deusa, fora do picadeiro, mas deusa. Pelo menos do tornozelo para baixo. Seu sapato era um candelabro aceso, lhe acendia. De onde estes sapatos, lhes perguntavam os que passavam com ou sem fortuna. E ela se arrastava, é tudo o que eu tenho, é demais? As vezes até tirava os sapatos e recolhia moedas com eles. Dava sorte. Já não conseguia falar senão para implorar, para mostrar seus sofrimentos e cobrar por eles. Sua voz saía já implorada, esganiçada e quando por descuido e raramente saía-lhe uma tonalidade diferente, quando por exemplo ralhava com alguém reclamando seu pedaço de chão perto da luz, seus cachorros latiam e estranhavam, já que moravam nos grunhidos esganiçados, agoniados, chorados de sua intocável. Não era junto dela cheia de força, cheia de ímpetos que eles moravam, moravam ao pé da fraca, da desabada, da nojenta.

Existem duas tramas entre os intocáveis – e talvez até entre os outros, os que se tocam. Tem a estória de alguém que chega, e tem a história de alguém que parte. Pode ser um rato, um coiote, um guru ou pode ser uma infecção que apareceu de surpresa ou deixou um corpo em paz. E às vezes as tramas se esbarram, quem uma vez veio, volta. Quem algum dia já chegou, desaparece. Quem uma vez infectou, cura. Quem uma vez resolveu o desconforto, traz a maldição. No lodo os complôs saem desbotados, úmidos, dissolvidos. Num meio-dia de monções o templo esvaziou no meio da tempestade. Ninguém entrava, ninguém saia, apenas a água que inundava já quase todo o pequeno santuário de Ganesh quase submergindo sua trompa e a água que era jogada para fora pelos sacerdotes que com cuidado secavam as relíquias, os ex-votos, os cálices bentos. Mas a intocável de sapatos de couro estava com fome, e sentia febre, e sentia calafrios, descalibrada e surda, feia, fêmea e maldita. Ela e outros quantos desesperados ficavam debaixo de uma lona na porta do templo, esperando que alguém chegasse com uma compaixão redentora. Ela não tinha mais para onde ir, mal conseguia se mover com suas pernas tortas, e arrastada para sua ratoeira só poderia arder de febre com fome sem os seus cachorros que não sairiam do templo enquanto não estiasse. Debaixo de chuva e de vento, com os elementos conspirados contra ela e com o desespero do delírio sua cara era ainda mais dolorida, era um buraco negro de desconsolo, como uma parede sem portas. E poderia vir um fiel, um devoto com fortuna que pudesse olhar para baixo e no meio da água sem cartografia abrisse o bolso e tirasse alguma moeda ou algum pedaço de pão. Era miudinho.

E veio. Era um Sri. Barbas brancas e a roupa salpicada de nobreza suja. Iluminado no meio da cinzura do dia estragado. O Sri parou e largou sobre sua mão um pedaço de pão e ainda um figo seco, daqueles que os sábios mordiscam depois de dias subnutridos para que fiquem sabendo apenas do que acham que é preciso saber. Ele entregou a comida lentamente e depois olhou fixamente para seus sapatos. Em seguida fez um sinal com a mão indicando que iria se sentar ao seu lado, debaixo da lona, debaixo da chuva. Que coisa precisaria acontecer agora? Ele se sentou com muito cuidado e sem nenhuma velocidade. Recostou sobre a pilastra do templo e tocou a intocável, não na pele, não na carne, mas no sapato. E disse, os sapatos, eu conheço estes sapatos. A intocável delirava e já nem lhe importava mais nada senão o figo que engolia, o pão que se desfarelava na sua boca. Os sapatos são roubados na porta do templo, ele disse. E ela apenas pensou retorcida entre duas poças fundas de água suja: e o que me traz este agouro, mais tormenta? Quando se rouba um sapato na porta do templo, ele dizia, uma pessoa calçada vai sair do templo com os pés pelados, triscando no chão. É como se seguisse no templo, é como se seguisse em terreno sagrado, é como se não pisasse mais na diferença entre o templo e todo o resto dos chãos. Perder os sapatos é perder uma compostura. Quase nunca se roubam sapatos, quase nunca na porta do templo – já que a fúria dos que sustentam o mundo pode sempre se voltar contra as mãos ladras. Mas ela, a intocável, foi ela que nem temeu fúria alguma – ela não podia entrar no templo, porque haveria de andar descalça? Assim falava o Sri, devagar como se cada palavra fosse um mantra escolhido para a ocasião, como quem fala com cuidado ou sem certeza. Quando uma fúria assim é enfrentada, a geografia da santidade muda. Algum pé roça qualquer parte como se fosse sagrado já que é, já que o templo não pode ter portas e aquele lugar inundado onde eles estavam – já recostados sobre muitos centrímetros de lama – era um lugar que não tinha lugar. O Sri falava e ela saia de si como os famintos fazem, os famintos daquela fome que não mata mas que também não ajuda a viver. Ela não sabia se resmungava ou se tentava encontrar um jeito de levantar a voz e corrê-lo de lá – ou talvez apenas ficar em silêncio e esperar para ver até quando aquele vento ia soprar sem direção.

Ele falava que ele também vivia na porta dos templos, sempre indo e voltando, sempre excogitando o templo pela cidade, a cidade adentro. Seu retiro era nas suas viagens, província a província, indo de porta em porta e ali fazia um ashram, ali fazia discípulos. Ela não queria mestres, queria talvez um pouco mais de figo seco e se decidiu a extender a mão em sua cara, sem som, sem grunhido, que ele falasse já que ela não escutava quase nada do que não lesse em sua cara. Ele parou de falar e, para sua surpresa, colocou a mão no bolso e retirou exatamente um figo, seco e ainda maior que o primeiro, e depositou nos seus dedos. Ele dizia que teve muitos filhos quando morava no norte, fez fortuna, perdeu todo o dinheiro, ficou ainda mais rico, abandonou a cidade em um trem. Tive uma filha criada no exterior. Ela fazia filmes, fazia documentários e estava sempre viajando por toda parte. E ela era devota de Ganesh. Colecionava Ganeshas de ouro, de prata, de diamantes, tudo o que não gastava em roupas e nas viagens, gastava em deuses bibelôs em sua estante. Ele era também aficcionado de Ganesh. Mas não gostava das coleções, preferia que os outros tomassem conta do que é precioso. Ele preferia cuidar do que é descartável. Ganesh tinha uma tromba, não era turqueza, não era rubi e nem de esmeralda, era imprevisível. E ainda assim, ele gostava de olhar para a cor da turqueza, ter uma pedra no seu bolso, junto aos figos, junto aos pães. Ainda que parecesse de tão pouca utilidade no seu bolso. O sapato era de sua filha, ele disse. Ela veio ao templo e voltou descalça.

Era esta a armadilha, achou a intocável, olhando fixamente para os lábios do Sri, com a cabeça empenada para frente como se estivesse debruçada sobre cada palavra. Ela ultimamente as vezes dormia de sapatos. Mexeu um tanto os dedos dos dois pés, sorvendo aquele ambiente enxarcado e ainda assim uma casa, uma corpo para seu corpo. Ele colocou de novo a mão sobre o sapato. E então lentamente começou a se retorcer em direção a um pé esquerdo e começou a beijar a sola do sapato, e o pequeno salto e depois o resto do couro em volta da sola. Ele beijava como quem lambia. Lambuzava. E ela, intocável. Parada debaixo do temporal, sem mais nada senão sua capacidade de se perder em contemplações. Contemplava os pequenos deslocamentos do pescoço do outro maltrapilho, o pescoço esbarrava entre aquilo no que ele rastejava a língua e naquilo que ele não tocava: ele lhe lambia ou beijava os sapatos? Ela olhou para as núvens no horizonte mais escuro: o oriente é o oriente. Os Sris passam, mas a dobra entre o céu e a terra permanece. A chuva apertava. Ele se largou no chão, e em alguns minutos ficou coberto por uma poça, ela olhou para aquela imagem crente se desmanchando e estendeu uma mão – como aprendeu a nunca fazer para uma pessoa já que qualquer um era superior demais. Ele então modeu-lhe o sapato. Com dentes frágeis, talvez só dentes ausentes, a gengiva nua que se acostumara a morder mesmo sem mandíbula. Como se figo fosse carne. Como se figo fosse seco – ele na poça de lama com a boca na sola do sapato da intocável como se a água tivesse cabelos que ele pudesse agarrar. O sapato, enxarcado, se tornava de outra substância. As monções furiosas, a mordida frouxa da boca desmantelada, o cheiro do suor lavado – dali podiam sair caules e miudezas. Uma outra substância. Uma substância anônima e, ainda assim, como dos parias que nascem nos becos abertas nas paredes, prenhe de ardências. Uma substância sem dono, sem objeto, sem contorno e que, avulsa, não tinha corpo, nem era dela e nem era de qualquer sadu. Pleiades de células mortas. Era da matéria extraviada que o sapato se inoculara. Um coito.

Na poça de água com o iluminado dentro, a mendiga via o céu nublado tremido e ele que lhe olhava com o pescoço encurvado e a boca debruçada na sola do sapato como se quisesse um chão. E ele recusava sua mão estendida. Ficava ali sem bordas como se suas gengivas pudessem amparar a situação. Ali germinam galáxias inteiras, segundos duram milênios, horas duram minutos. Passou o tempo de secar o ar e vieram ladrando os quatro cachorros, saídos do templo e fiéis. Como um cipreste, secando pelo chão. A boca largou o sapato, as roupas do homem molhado ainda se escorregaram pela lama e o arrastaram para perto da mureta onde chafurdavam os quatro cães. Arrancaram-lhe um dos sapatos e ele teve que se levantar com o pé pelado, escorrendo água. Olhou para baixo e entrou no templo.





mercoledì 16 dicembre 2015

Ontem, agora

tropeço pedaço despeço
perdão despedaço

MC Bicho Bicha na Decurators


O texto do MC Bicho Bicha na Decurators:

O poder da bicha
É o poder do bicho
Do bicho que devora quieto
Do bicho papo reto
Do bicho que se entrega
Tuas feras soltas, tuas asas
Teus ciscos, teus rabiscos.
O poder do que cresce no lixo,
do carrapicho
do teu mijo

O poder do bicho bicha
É o poder larval
Que te seduz, como um animal
Que te desmonta
Não segura tuas pontas
Te afronta, te deixa tonta
Te espicha a salsicha
Te esguicha
Até que cai a ficha
Nem tenho filo nem espécie,
Sou só bicha.

Como todos os bichos
Concentrados num só animal
O filho da terra
Que não quer ser só mais um mano humano
Devastador.
Chama a mina colorida
Que é feroz e graciosa
A mina que é a pachamama,
É condor, serpente e llama
Peixe, girino, iguana
É uma mina americana
pode mais do que o Obama,
Que o papa e o dalai-lama
Chega junto, te inflama
E não fica cercada, fechada,
Amordaçada, domesticada, encurralada,
Apertada, silenciada, atropelada
Que ela não é só natureza, morou?
Que é só coisa do IBAMA
Ela quebra a cama
Essa mina, a pachamama.
e eu sou seu chifre caribu, dadivosa
Que eu sou homem-viado
O mestre das renas doces
Que se entregam aos caçadores
Que agradecem no jantar
Que este aqui é o meu planeta, vagabundo
E pra comer tem que pagar
Não com o dinheiro do açougue, filé
Mas com a carne do teu bucho
E a ossada que você usa, mané
Pra te sustentar

Caribuuuuuu

Escuta o som da terra, mano
O som da lava, da água, do fogo, do chão. Da terra que não se compra
Nem se arrenda a prestação
É a nostalgia da onça,
Do pato, da cabra, do porco
Do mato, do tronco, da seiva, do lago. Da cinza, diamante, do ouro
Nas moedas de um milhão
A nostalgia dos processos indisciplinados
Nas máquinas que industriais engravatados
Entregam aos somalis escravizados
Que ficam milhões de horas encalacrados
No chão da fábrica amarelado
Fazendo lucro camuflado
Vendidos por outro imigrante proletarizado
Que largou de ser um bakuníndio
Pra rodar a manivela do desejo líquido
nos tentáculos ávidos atávicos hiperbólicos
de Chluthlu
Caribuuu

Meu nome é ruptura,
É V de humanidade
É esquecer a espécie, parceiro
Quero som que faz teus osso requebrá
Geral enviadá, malandro revirá
Reprogramar teu travesseiro
Correr com os equezeiro
As nega colando velero
Misturada nos maloqueiro
E todos os batuqueiro
Montando açucareiro.

Emecida Bicho Bicha
Esse viadão assombração
É o homem-caribú
(dadivosa)
Que te oferece cerdo cru
Pra tu comer ou pra comer teu macucu
Não é umas reninha, é trucuçu
Onde tem bicho tem bicha, xará
Onde tem baba de carniça
tem terremoto em teu angu.