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lunedì 5 agosto 2019

Paraíso reconquistado no parque humano

Paraíso reconquistado no parque humano
Hilan Bensusan


Para Pedro Benassi

I who e're while the happy Garden sung,
By one mans disobedience lost, now sing
Recover'd Paradise to all mankind,
By one mans firm obedience fully tri'd.
Milton

E a pior hipocrisia me pareceu esta: também os que mandam fingem ter as virtudes de quem servem. “Eu sirvo, tu serves, nos servimos” […] e ai de quando o primeiro senhor é também o primeiro servidor. […] No fundo o que mais querem é que ninguém lhes machuque. […] A virtude os converte em mansos; […] converteram os lobos em cachorros e o humano mesmo em melhor animal doméstico do humano.
Nietzsche

Se há uma dignidade do humano que merece ser considerada pela reflexão filosófica é porque humanos não são mantidos em parques temáticos políticos, mas eles mesmos é que o mantêm ali.
Sloterdijk

Temos que parar a manivela, eu não quero ser um pet de robô.
Benassi


1. Ainda que estejamos apenas diante de seus presságios, podemos vislumbrar o produto de uma ação cosmológica que a era humana desempenhou: o controle das forças das coisas. A história da extração da inteligibilidade dos processos é a história de um habitat, a história da metafísica onde decidimos habitar. É certo que a inteligibilidade dos processos não pode ser completamente extraída e que a força das coisas – e sabemos como são fortes forças – não pode ser inteiramente controlada; há resíduos, como sobras de mingau quente no prato. Sempre há sobras. Mas a metafísica está determinada a comer por suas bordas favoritas, e a partir destas bordas – o que há de separável no entendimento das coisas – ela avança para dentro do prato.

Com as coisas capturadas, seus funcionamentos extraídos, reproduzidos por máquinas alheias a elas e às quais consignamos todos os poderes que extraímos, produzimos nossa redundância. Ou seja, nossa irrelevância – ao invés de peças de um cosmos, nos tornamos adendos dispensáveis. Trata-se de um destino como o do suicídio lento, o do desinteresse gradual, da gradativa perda da importância e do viço. Com respeito à nós mesmos é que somos niilistas. As forças descontroladas – a anomia – nós colocamos sob a égide de controles cada vez mais estreitos – a heteronomia que é o habitat que fazemos com que nos abrigue. Vivemos em uma heteronomia, em um cosmos ordenado. O hetero aparece para apontar para um nomos que nos rodeia, o nomos que é também a base da inteligibilidade: entender é explicar os poderes subjacentes, explicar é reduzir. E como nossa heteronomia também é parte de nosso habitat, concebemos também os botões que controlam nossos mecanismos. A autonomia – a soberania – é apenas mais uma inscrição da (hétero)nomia. Os poderes externos às coisas – Deus tal como as leis e os sistemas dinâmicos – é que tomam elas pelos braços. Se nós extraímos poderes é porque os temos, não porque os somos.

A vontade de poder seguramente não é nossa – nós, antes, é que nos tornamos dela. Habitar um mundo de vontade de poder é nos colocar ao abrigo da soberania. A soberania, quando é um nomos como deve ser para os niilistas, não é de ninguém. O nada, o anfitrião, requer a redundância. Nós então aspiramos a redundância quando desejamos o paraíso e sonhamos com reconquistá-lo e lamentamos sua perda original tão decisiva. Os deleites sem fim, os prazeres garantidos, a segurança contra o risco, o jardim onde não há selvageria onde não há extrativismo e nem trabalho são aspirações correntes, frequentes, reiteradas. Nada precisa ser feito – tudo está à mão, disponível.
Que desejo de redundância é este, o desejo do paraíso? O desejo de se libertar da necessidade, o desejo de estar provido, de ter seu pastor que garante que nada faltará? E então poder ser aquilo que somos na satisfação edênica de poder caçar de manhã, pescar de tarde e fazer crítica literária de noite? Libertar-se de qualquer constrição. Pedro Benassi, examinando como nos colocamos à mercê dos poderes que extraímos – e nos colocamos à mercê deles já ao extraí-los já que eles se separam de nós – diz que não que se tornar um pet de robot. Podemos estar construindo os robots que tomarão conta de nossas forças e de nossas capacidades; o desejo de redundância pode ser encaminhado nesta direção. Porém talvez esta ação de delegar às inteligências artificiais o pastoreio dos nossos assuntos seja apenas a consequência de nosso desejo de reconquistar o paraíso – um equilíbrio de poderes heterodeterminados que nos deixe finalmente à salvos. À salvos, em um jardim, em um parque. Um parque humano. Em um parque nos livramos das selvagens forças da natureza e estamos aos cuidados de forças controladas que também decidem por nós – como as forças da natureza – mas para a nossa própria satisfação.

Conhece-te a ti mesmo, no entendimento edêmico que temos destas palavras, quer dizer extrai as forças que te constituem de modo a poder te transformares em uma marionete delas. Ou seja: destaca-te de ti mesmo, transforma-te em um algorítmo que possa ser implementado por qualquer outro.

Um parque: cada vez que sabemos mais sobre os animais, podemos fazer melhores zoológicos. Os pandas não trepam. Por que não se reproduzem em cativeiro? Conhecendo seus dispositivos mais recônditos – ou seus recônditos mais como dispositivos – podemos fazê-los se reproduzirem, e também treparem e também, talvez mais tarde, gozarem e serem capazes de querer trepar (em cativeiro). Ou talvez eles ressentirão sua perda de soberania. Ou talvez nós ressintamos. Mas, no nosso caso, escolhemos deixá-la de lado constantemente quando preferimos o nada – quando preferimos não parar diante de nada, nem sequer diante de nossa autonomia; preferimos deixar de ser índios para sermos periféricos agregados de um sistema que nem controlamos e nem estamos próximos de quem controla. Decidimos – e fazemos isso constantemente, reiteradamente – abandonar a diplomacia com as coisas em favor de extrair delas um manual de instruções. Com as coisas, com nossa comida, com nossos predadores, com nossos ímpetos, com nossas fissuras, com nossos estados de espírito. Ou quando preferimos isentar a verdade de qualquer tribunal externo. Os pandas terminam por se reproduzirem e nos melhores zoológicos eles se sentem mesmo livres como os peixes nos grandes aquários. Não são pets – são cuidados com zelo crescente. Ou então, o que é um pet? Adão e Eva antes da queda? Se eles não são pets, os paraísos perdidos são jardins antropológicos.

Do ponto de vista de quem sonha em reconquistar o paraíso, ser um pet é ruim quando se é maltratado. Mas de onde pode resultar o maltrato já que os senhores são servidores? O maltrato resulta de uma incompreensão e não de uma fraqueza da vontade – a incompreensão sistemática resulta em maltrato. A fraqueza da vontade é ela mesma dissipada em um contexto niilista – ela se transforma em vontade de nada. Não há akrasia se colocamos toda anomia – ou todas as clinamina sem razões – sob a égide de uma heteronomia. Algo pulsa, controla, governa, tem poder sobre aquilo que não temos poder. Do ponto de vista da heteronomia generalizada, a akrasia é coisa de quem obedece a mais de um comando – o comando da obrigação e o da preguiça ou o comando do bom senso e o da disciplina ou o comando da saúde e o do gozo. Quando um mero nomos é destacado do que existe, este nomos não é senão monodeterminado. Não há senão burros de Buridan entre as inteligências artificiais. E se as razões que movem o burro não forem suficientes, melhores ainda virão já que o parque humano estará a cada dia em melhores mãos e melhores maniverlas já que quando nos transladarmos ao parque, as inteligências artificiais melhorarão elas mesmas a sua raça.

Então o que há de desagradável no parque humano? O que há de desagradável em ser cuidado e mantido no bom cativeiro por quem sabe o que nós podemos saber, como nós acreditamos que devemos agir e o que nos é permitido esperar? Benassi pensa que há uma soberania, uma vontade de mais-que-nada que se distingue de uma mera vassalagem aos poderes extraídos, mesmo quando estes são sábios e gentis. Mas do ponto de vista das inteligências artificiais – ou dos burros de Buridan ou, ainda, de nós, zelosos cuidadores dos pandas nos bons zoológicos – esta soberania perdida só pode ser uma manivela mal-apertada, um capricho, a falta de alguma coisa que nós não detectamos mas que superiores gênios laplaceanos detectam. Querer soberania talvez seja abdicar do paraíso. Ou seja, o contentamento ou a responsabilidade – o que queremos?

Talvez antes: a satisfação ou a sujeição à vontade alheia – do ferro que não se dobra, da árvore que para de frutificar. Queremos o paraíso porque senão estamos à mercê das forças selvagens da natureza, à mercê do inumano. Era melhor estarmos à mercê do pós-humano, do supra-humano.

A responsabilidade, por outro lado, aponta para um outro caminho. Não há inteligibilidade pronta, mas incumbência, vigilância. O paraíso, pronto como a inteligibilidade, é da ordem da segurança – sine cura, na etimologia de Heidegger. A natureza, diz Rilke em uma carta de Muzot, não protege especialmente nenhuma de seus seres e nem sequer nossa natureza nos proteje. Ela nos joga no risco. A segurança desincumbe, nos torna redundantes já que outra coisa se incumbe de nós (ou de tudo). O supra-humano é o pós-natural – a natureza em prótese, em artifício.

2. A gradativa substituição do esforço pela justiça – a responsabilidade – pela desincumbência – a atribuição de uma propriedade verdadeira a alguma coisa e que se separa da coisa tornando-a redundante – e da transformação destas propriedades em disponíveis inventou o capital por meio da crescente abstração do trabalho. O trabalho abstrato constitui as condições de possibilidade do capital ao mesmo tempo que é o produto mesmo do capital – como diz Marx, o trabalho com máquinas promove o trabalho como máquinas. O trabalho abstrato é a extração de um procedimento inteligível de uma atividade humana. Assim como em qualquer extração de inteligibilidade, uma vez que a extração é consumada, o trabalho é separado do humano que o executa – o trabalho podendo ser implementado sem o consórcio de humanos e os humanos podendo ser redundantes ao exercício do trabalho. Assim como a extração da inteligibilidade da fotossíntese permite fotossintetizadores artificiais e torna as folhas das plantas dispensáveis (para este efeito), o trabalho produto da abstração torna o trabalhador humano substituível e dispensável (para esta tarefa). A proletarização – a transformação da atividade em trabalho abstrato - obedece ao princípio do perigo que Heidegger apresenta nas conferências de Bremen: das Ge-Stell bestellt den Bestand. Ou seja, o dispositivo torna disponível um repositório. Assim como a represa torna a energia disponível, o trabalho abstrato torna a execução de uma tarefa disponível. O princípio do perigo, para Heidegger, é um princípio que afinge tudo aquilo que é – aquilo que é está sendo perseguido para ter sua inteligibilidade extraída. O mingau quente da realidade se come pelas beiradas, mas o perigo aflinge igualmente a vida e a morte dos humanos. A atividade humana é posta em um repositório, criado pelo capital quando ele se apresenta como Bestand, como repositório, como disponibilidade, como trabalho abstrato.

O salário dos trabalhadores é feito de capital. O conflito entre proletários e capitalistas é pautado por um cabo de guerra em que a corda é o capital. Há um sentido em que o capital, em qualquer situação, ganha a disputa: ou ele se multiplica ou ele se espalha. Porém há um outro sentido em que ou ele se preserva – em Bestand nas mãos dos capitalistas que não tem como gastar aquilo que acumulam e almejam por uma deriva que Max Weber diagnosticou como incompreensível em termos de uma explicação, da apresentação de um sistema fechado, de uma cibernética negativa – ou ele se dissipa no consumo dos trabalhadores. Há este segundo sentido em que é o capital maneja a acumulação já que ele extrai do trabalho (humano e não-humano) seu corpo. O trabalho abstrato é o efeito empírico do capital e sua condição transcendental. E portanto há também o primeiro sentido em que o trabalhador do trabalho abstrato já é o corpo do capital – a proletarização é uma salarização da atividade humana. O trabalho não oferece senão uma oposição interna ao sistema do capital. Mas o sistema não é ele mesmo estático: o trabalho se torna mais abstrato, os salários refluem aos grandes reservatórios de capital, os trabalhadores humanos mais redundantes e os patrões mais atrelados à sistema reprodutor do capital – já que os senhores são servidores. O domínio do capital é rizomático, ele se concentra porque se espalha e ele se flui porque ele unifica.

As dificuldades dos assalariados em se contrapor ao sistema do capital pode surgir de uma comparação, estimulada por Marx, entre a revolução burguesa e a suposta revolução proletária que aprenderia com a primeira mas que destronaria a égide do capital em favor de uma universalidade humana. A revolução burguesa foi uma consequência de uma crise no sistema feudal que permitiu que o pesadelo de todo socius – nos termos que Deleuze e Guattari consagraram ao capital no Anti-Édipo – abrisse uma fresta no meio das disputas entre camponeses emancipados, senhores feudais arruinados em meio a terras comuns que desafiavam o modo de produção estabelecido. Os servos e ex-servos tiveram um papel central no processo de desmantelamento do sistema feudal como o próprio Engels relata em seu livro sobre as revoltas camponesas do século XVI. Porém a revolução vista em seu resultado, foi burguesa – o agente que preponderou era externo ao sistema. A burguesia é estrangeira ou, no máximo, marginal ao sistema de produção. A revolução proletária seguiria uma outra dinâmica, uma dinâmica que se orienta por uma espécie de condição sui generis do proletariado de acordo com a qual ele é um produto do capital porém ao mesmo tempo o desestabiliza desde dentro e, supostamente, desde fora.

Esta condição sui generis do proletariado poderia ser entendida em termos de uma negação determinada. Hegel entende que na negação determinada um elemento interno a algo promove uma negação por meio de uma explicitação. Este é o processo avesso ao da abstração: é o processo da concrescência, para Hegel. O espaço abstrato envolve pontos, retas e planos, mas ainda não tem nele nenhum ponto (ou reta ou plano). O ponto introduzido no espaço abstrato torna o espaço genuinamente espacial – agora relações espaciais como vizinhança, distância, localização começam a ser possíveis – e, ao mesmo tempo, menos abstrato. O ponto torna o espaço explícito ao mesmo tempo em que o torna concreto – ainda que o ponto não possa ter sua concretude senão com a introdução da negação determinada que é produzida pela reta. Ao final do processo, o espaço se torna concreto, o que é e não é o espaço abstrato. Cada etapa de negação determinada suplementa e, ao mesmo tempo, explicita o que está já na etapa anterior. O espaço concreto do fim do processo não é estrangeiro ao espaço abstrato mas nem tampouco é integrante dele. A concrescência é um produto de uma atividade, de um processo de negação. Analogamente, o proletariado torna concreto o abstrato que é o capital, ele torna o processo de extração de inteligibilidade que constitui o capital explícito. Uma revolução proletária não seria um desmonte do sistema abstrato do capital, mas uma concrescência deste – ela o tornaria concreto.

O apelo a negação determinada é uma passo teórico astuto de Marx ao projetar uma revolução proletária. De fato, as tentativas de retirar Hegel do portfólio teórico crucial dos pensamentos marxistas deixa a ideia de uma revolução proletária desguarnecida a críticos como Jacques Camatte (e mesmo como Deleuze e Guattari ou Lyotard). Talvez o exorcismo de Hegel do marxismo tenha sido possível apenas nos anos 1960, quando foram levados a cabo por filósofos como Althusser e Balibar, depois que a ideia mesma de uma revolução proletária começou a sair do horizonte e a esvaescer. Porém sem a negação determinada, a revolução proletária – e mesmo o sistema do capital que foi levado a cabo pelo stalinismo que estimulou a acumulação estatal e a aumento da produtividade e a experiência chinesa desde o fim dos anos 1970 – se tornam menos compreensíveis. Abandonada a negação determinada, não há mais como pensar no privilégio revolucionário do proletário.

No entanto, talvez no exorcismo da negação determinada possamos enxergar não apenas uma rejeição de um passo teórico astuto de Marx, mas também uma crítica ao seu alcance. Que o proletariado torne o sistema do capital concreto não se segue que ele o transforme em favor da humanidade. Camatte entende que Marx pensou – e deu seus passos teóricos – a partir de uma convicção de que a revolução proletária viria e que não tardaria. Porém ela tardou. E surgiram, por exemplo, suspeitas sobre a ideia mesma de uma negação determinada feita pelos proletários ao sistema do capital. Lyotard, em seu livro que ele considera maldito, Économie Libidinale, é talvez o nome desta suspeita: o que seria esta humanidade reconquistada que as máquinas permitiriam senão uma nostalgia da vida camponesa que o proletário entende e compartilha cada vez menos? Ou, como renunciar a crescente mecanização – e anonimização – das relações sociais que deixa o humano mais emaranhado nas artificialidades e menos distinto delas? Ou ainda, por que renunciar ao conforto (que tende ao paraíso) que o sistema do capital providencia? A revolução tardou e o horizonte mudou; mas talvez porque a negação determinada não seja desde o início senão um procedimento de concrescência. E mais, a concrescência não tem talvez um final certo, ela segue um caminho em que mais e mais coisas são explicitadas na medida em que ela torna concreta outras abstrações. O sistema do capital se concretiza no trabalho – esta negação determinada não é o projeto de uma revolução, mas de uma redundância.

Camatte considera que o futuro do sistema do capital trará uma das seguintes alternativas: a) ou a completa autonomia do capital, em que os humanos se tornam simples acessórios mantendo um papel executivo; b) ou a mutação do humano; c) ou a atomização dos humanos, com a realização dos desejos dos humanos pelo capital sem que eles possam se encontrar. Sem a revolução proletária, estas seriam as alternativas à interação entre capital e humanidade. Talvez elas possam ocorrer conjuntamente: no parque humano, os humanos ainda decidem pelo seu bem-estar ao confiar às inteligências artificiais a disponibilidade do que necessitam, eles se transformam pela relação com as máquinas e precisam talvez de poucas relações sociais, sobretudo dispensam aquelas que giram em torno do trabalho – produtivo e reprodutivo. Os humanos, dispensados do trabalho – e talvez recebendo uma renda mínima universal – seriam curiosidades redundantes que as máquinas cuidariam para extrair delas apenas o que se extrai de um zoológico: a ilustração de uma outra possibilidade. Seria preciso incitar as máquinas a gostarem de seus pets e de seus zoos – e, pronto, reconquistaríamos o paraíso. Sem salário e sem trabalho.

A redundância humana – o parque humano – é também o era do capital pós-trabalho. O trabalho é a ponte entre uma vida de incumbências de um lado – a vida das responsabilidades, das atividades, das comunidades – e o paraíso. Trabalhamos para alcançar o paraíso que não é um idílio edênico, é uma desincunbência que começamos a desfrutar mesmo escravizados pelo capital – a possibilidade de não mais ser responsável por (quase) nada ou ninguém. O projeto da automação do mundo é o projeto da imunidade, da dispensa que qualquer atividade de serviço. A conversão de dinheiro e trabalho é a mágica que faz a incumbência fluir para qualquer mão e qualquer manivela – o pesadelo realizado da destruição do socius é o paraíso reconquistado. O paraíso que perseguimos será verde e terá figos e um regato do tamanho humano – mas não terá cobras, nem frutos proibidos, nem maldições.

O parque humano será gerido sem um elo cosmopolítico entre os reservados e os incubidos de seu bem- estar. A automação do mundo é também o projeto de fim de toda (cosmo-)política, que começa com a transformação do Reno, do gado e da vida marinha em recurso e prossegue com a transformação dos desejos humanos em demandas ao mercado. Um parque bem gerido é também aquele que se sustenta e que dá lucros – os executivos artificiais do parque humano tratarão de fazê-los atrativos para garantir a continuidade de sua soberania neo-cameralista. O sonho da redenção humana por meio de sua redundância requer que tenhamos certeza que seremos zelados a partir de nossa essência que não tem história. É este zelo que temos quando evitamos que nossos governos sejam corruptíveis – é preciso que eles não tenham nenhum outro interesse ou necessidade senão o de implementar o algorítmo de gestão dos humanos. Há um problema: a extração da inteligibilidade da atividade política é a gestão. A política parece estar precisamente em um resíduo que a extração tem que desprezar, em uma sobra, em algo que não se rende ao manejo. Sloterdijk entende que as regras para o parque humano estão sendo buscadas pelo menos desde O político de Platão. E o parque humano – assim como o zoológico se preocupa com a gênese de novos pandas – é um lugar de antropotécnica. O resíduo desaparece na medida em que novas gerações crescem no parque humano; os pandas que se reproduzem em cativeiro – assim como os escravos que saíram do Egito e passaram 40 anos no Sinai esquecendo ou morrendo – gradativamente consideram a soberania algo obsoleto. Algo do passado. Algo que se confunde com a nostalgia de uma terra de riscos, de insegurança, de incumbências, de cuidado, de vigilância. Sem precisar da vigilância, para que soberania? O resíduo da política também desaparece como uma nódoa; é talvez como a probabilidade inicial que é washed out quando se reitera várias rodadas de exame das novas evidências pelo teorema de Bayes. As várias gerações, como as várias reiterações, lavam esta nostalgia de política já que os novos humanos serão produzidos no parque e se tornarão humanos no parque. Serão criaturas do paraíso. Conhecerão apenas a vida depois da ascensão e não precisaram conservar as lembranças da Queda.

Os resíduos, no entanto, talvez não desapareçam completamente do parque. Talvez eles sobrevivam como as adinkras do ocidente da África nas estampas dos afro-brasileiros ou como pequenas musiquinhas que se repetem em rodas. Como os resíduos do mingau quente são descartados mas que de alguma maneira não foram exorcizados. O mingau quente completo não fica devorado – mas o que sobra são apenas resíduos. O exercício da vidência requer uma intrepidez com os resíduos: como quem faz tasseografia, ou como quem lê a borra do café, é preciso uma atenção ao que foi tornado supérfluo – o que pode fluir por cima da hybris que estamos fazendo as inteligências artificiais herdarem. '

1 commento:

Pedro Benassi ha detto...

Eu só agradeço suas reflexões, obrigado por lembrar de mim nas aulas.
Obrigado por se lembrar de mim aqui, vou continuar nas suas aulas e buscando um parlamento das coisas, pensar uma autônomia entre os sistemas.
E continuamente pensar uma cosmo-política.