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giovedì 31 dicembre 2015

A Shoah, a Maafa e a Sapucaí

Um texto que eu mandei pra Revista da ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros). Escrevi com um amigo que também sonha com as escolas de samba, Ricardo Lobato.

A Shoah, a Maafa e a Sapucaí
Sobre carnaval e catástrofe


1. O que faz arrepiar
Nas vésperas do desfile das escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro de 2008, uma liminar da Justiça estadual impediu o desfile do carro alegórico que representava o terror dos campos de concentração e extermínio no enredo da Viradouro. O enredo tratava do que traz arrepio: dos maravilhamentos aos êxtases, dos medos aos horrores. A Shoah tem sido considerada um dos horrores da história recente – utilizado muitas vezes como parâmetro de massacre e extermínio4 e também de medida das capacidades de controle pela destruição na modernidade (ver BAUMAN(1989) e AGAMBEN (2008)). As imagens dos campos de concentração e das câmaras de gás se tornaram ícones do apavorante, da extrema violência e da crueldade na cultura ocidental. Muitos filmes, romances, peças de teatro e até mesmo poemas5 foram feitos sobre o extermínio como partes de diferentes mensagens e mostrando os acontecimentos sob diferentes vieses.6 Até então o tema não tinha aparecido nos desfiles de escolas de samba.
A liminar foi apresentada pela Federação Israelita do Rio de Janeiro alegando que o tema da Shoah era inapropriado para um desfile de carnaval, que tem espírito festivo e de alegria, humor, descontração e erotismo. Os desfiles não seriam lugar apropriado para pensar o horror – nem sequer sob a forma da questão sobre o corpo arrepiado – já que estão confinados à festa, onde não caberiam certos pensamentos. A liminar insinua que o tema da Shoah cabe em filmes, romances e até em poemas – mas não em desfiles de escola de samba. Que pensamento foi este que impediu a exibição do carro preparado pela Viradouro para representar a catástrofe? Aquele quinto carro teve que ser substituído por uma alegoria sobre a censura onde se lia “Liberdade ainda que tardia – Não se constrói futuro enterrando a história” em meio a pessoas amordaçadas – e uma imagem de Tiradentes. O carro com a escultura dos corpos retirados da câmara de gás não desfilou. Em seu lugar, o arrepio da mordaça.
Um dos elementos alegados pelo pedido de proibição da exibição da alegoria pela Federação Israelita do Rio de Janeiro foi o plano do carnavalesco, Paulo Barros, de colocar um passista vestido de Hitler sobre o carro no desfile. Paulo Barros havia já inovado a noção de carro alegórico nos desfiles que fez para a Unidos da Tijuca desde 2004. A concepção de Barros era de introduzir elementos humanos na escultura das alegorias – e ao invés de passistas sobre um púlpito, ele introduziu dançarinos em grande quantidade fazendo movimentos sincronizados. Os sincronia da dança dava um elemento vivo à alegoria ela mesma, e os movimentos refletiam eles também elementos do enredo. Foi assim com o carro do DNA onde pessoas pintadas de azul faziam movimentos espiralados. Também foi assim com os amordaçados que vieram na alegoria que substituiu aquela que havia sido proibida: pessoas amordaçadas faziam movimentos sincronizados, não dançavam samba, não eram passistas. Na Viradouro, Barros pretendia com este enredo transversal, tentar pensar o arrepio que, como algumas outras reações corporais, responde a humores muito distintos.
A alegação da proibição, presumivelmente, era que os passistas estariam imbuídos de um espírito festivo ou uma descontração e alegria incompatíveis com a imagem do líder nazista. A ideia de que os elementos sobre os carros são sambistas alegres e descontraídos independentes do enredo da escola é talvez uma maneira de entender os elementos humanos em uma alegoria. A tendência recente – que começou com a introdução de fantasias inteiramente acopladas ao enredo para as baianas por Fernando Pinto na Mocidade Independente (em 1984, 1985, 1987) às comissões de frente coreografadas de Carlinhos de Jesus na Mangueira desde 1998 – é de que menos elementos do desfile sejam alheios ao enredo. O enredo e como ele é desenvolvido toma conta de todos os elementos do desfile. O desfile, assim, torna-se uma espécie de obra de arte total de rua, como veremos. De toda maneira, passistas habitualmente representam ou incorporam elementos do enredo da escola; quando estão sobre os carros alegóricos eles levam o ritmo comum do desfile às esculturas – já que o samba sincroniza os componentes do desfile. No caso, todos os passistas se associam ao tema comum do arrepio através do samba, “nem tudo são flores; há dissabores, infelicidades, vidas perdidas – neste mundo de maldade.” Claramente, a alegria e a descontração não são compulsórias para todos os desfiles – mas os passistas respondem ao que eles expressam com seu traje e, ao mesmo tempo, ao contexto em que o traje se encontra dentro do enredo. Ou seja, os passistas, como todos os elementos de uma escola respondem à sua parte do enredo – localmente às suas alas ou aos seus carros – e globalmente ao enredo como um todo expresso no samba. Sobre o carro dos corpos indo para o crematório, os elementos humanos iam também responder ao tema da alegoria e também ao arrepio, o enredo da escola. Como isto aconteceria na avenida ficamos sem saber uma vez que a alegoria foi interditada e substituída por outra.
Filmes, livros e outras manifestações sobre a Shoah já foram alvo de processos, críticas e boicotes.7 Na maioria dos casos, no entanto, o problema era como os episódios da catástrofe eram retratados – de um modo excessivamente indulgente, ou excessivamente cômico ou mesmo excessivamente descontraído. É como se o pensamento, que navega nas margens dos esquecimentos, das lembranças, das importâncias e das indiferenças corresse riscos e precisasse ser de alguma forma observado e monitorado de perto quando trata da catástrofe. Talvez porque, como Elizabeth Costello diz a Paul West no romance de Coetzee (COETZEE, 2004), aquilo que escrevemos (ou filmamos, ou desfilamos) faz não apenas o público mas também a nós mesmos melhores ou piores. Observar e criticar a mensagem é uma maneira de dizer que o meio importa. No caso do desfile da Viradouro, no entanto, a alegação parece ser de que o tema não é apropriado de modo algum ao meio – não que disso não se fala assim em um desfile de escola de samba, mas antes que disso não se fala em um desfile de escola de samba de modo algum. Ou seja, o meio é inapropriado para o tema – não importa como ele seja tratado. O argumento da alegação parece ser que os desfiles de carnaval não são a forma apropriada de se pensar na catástrofe. Resta a pergunta, é claro, sobre o que é que pode pensar as escolas de samba desfilando na avenida.

2. A disciplina do enredo
A história dos desfiles das escolas de samba está repleto de episódios de censuras diretas ou indiretas, de proibições e de interferências de autoridades de todo tipo. A turbulenta história dos desfiles de escola de samba é uma trama de conflito com autoridades constituídas. Em 1937, por exemplo, um ato de um delegado, Dulcídio Gonçalves, interrompeu os desfiles na Praça Onze antes mesmo da Mangueira, do Prazer da Serrinha e de outras 14 escolas desfilarem. Os anos 30 foram anos pesados em que a repressão deu forma e conteúdo aos desfiles. Interferências de outras autoridades também afetaram os desfiles. Em 1960, a Império Serrano teve que modificar seu samba e o nome do seu enredo após representação da embaixada do Paraguai, já que o desfile, chamado “A retirada da Laguna” mencionava negativamente personagens e episódios do tempo de Solano Lopes. Depois de uma complicada negociação, a escola modificou seu samba e o enredo passou a se chamar “Confraternização Latino-Americana”, já que o governo federal da época dizia se esforçar para estabelecer políticas convergentes na região (ver, por exemplo, CABRAL (1996) ou COSTA (2001)). Ainda mais dramático foi a censura nos anos do regime militar.8 Em particular, o famoso desfile da Império Serrano de 1969 (“Heróis da Liberdade”) que teve em seu samba, composto por Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola e Manuel Ferreira a palavra “revolução” substituída pela palavra “evolução”. Mais recentemente, no clássico desfile da Beija-Flor de 1989 (“Ratos e Urubus Larguem Minha Fantasia”), o carro que viria com uma reprodução do Cristo-Redentor foi proibido por interferência da Igreja Católica. Joãosinho Trinta, que havia preparado um desfile Brechtiano sobre a indigência e a suntuosidade na vida dos que desfilam na avenida, tapou o carro com pano preto e colocou sobre ele um cartaz onde se lia “Mesmo proibido, olhai por nós”. Ali, Joãosinho insinua que, para os artistas de rua, até mesmo os ícones de devoção são invocados indiretamente e, apenas através de um véu preto, podem abençoar. O sagrado tem que ser mantido longe da rua, protegido, ainda que por um pano preto, das hordas que, só assim, podem pedir sua proteção.
A proibição do carro da Viradouro orienta este texto. O arrepio, decidiu a liminar, não pode ser considerado por uma escola de samba levando em conta a catástrofe do extermínio em massa de pessoas. Além de uma possível incompreensão do que se tornaram os desfiles de escola de samba nos últimos 50 anos – e de como a noção de carnaval mobilizou a história do gênero – há duas questões importantes e relacionadas entre si que a proibição traz à tona. Primeira, se certos temas são de fato incompatíveis com a arte de rua que não poderia tratar de coisas pungentes, mortais, decisivas ou politicamente muito sensíveis. As ruas deveriam se contentar com as migalhas do que pode ser pensado. Segunda, se certos temas não podem estar associados ao espírito geral de folia já que esta invoca uma alegria e uma descontração incompatíveis com o pungente, com o mortal, com o decisivo ou com o politicamente muito sensível. Ou seja, a proibição convoca questões acerca da compatibilidade entre catástrofe e carnaval. E, considerando os desfiles de escolas de samba, acerca de se há uma tonalidade em que o catastrófico não pode ser pensado. Este texto não pretende muito mais do que se aproximar destas questões. Não se trata de responde-las ou solucioná-las, mas antes de torna-las vívidas.

3. Arte e folia
A arte urbana dos desfiles de escola de samba é uma evocação. O desfile é obra de arte total de rua que congrega música, dança, escultura, instalação, performance e teatro. Elementos de cada ala contribuem para um conjunto global que dá sentido a toda obra. Da maneira como conhecemos hoje, os desfiles tem talvez oitenta anos, mas sua natureza foi se transformando a cada década, a cada desfile. O elemento comum da evocação permitiu que os desfiles se transformassem de ranchos e blocos para a capacidade de desenvolver um enredo por meio dos seus componentes, dispostos em diferentes alas uniformizadas e, ao mesmo tempo, integrados pelo canto comum.
O desfile é assim um malabarismo de diacronias e sincronias: o enredo se desenvolve ao longo das alas e o samba-enredo fala de todo enredo, e é cantado repetidamente; por outro lado todos cantam juntos e todo tipo de elemento plástico dá unidade ao conjunto do desfile. É um malabarismo complicado que muitas vezes falha: o samba atravessa, os carros destoam, as alas se atrasam e criam brancos, o samba não empolga os componentes. O desfile das escolas de samba é morfogênico: inventa uma forma. Mais que isso, faz do espírito carnavalesco um ingrediente utilizado de diferentes modos para obter certos efeitos. Há elementos fixos (muitos deles estabelecidos pelos critérios mesmos do julgamento dos desfiles): samba-enredo, ala das baianas, mestre-sala e porta-bandeira, comissão de frente, bateria sem certos instrumentos entre outros. Estes elementos, contudo, servem de restrições para a composição – oferecem uma gramática a partir da qual coisas distintas podem ser articuladas. Por causa disso mesmo, os desfiles tem uma forma em grande medida aberta. Como toda arte aberta, o desfile de escola de samba está pra jogo: sua história é parte de sua forma.
Porém a proibição do carro da Viradouro em 2008 descreve os desfiles como tendo um compromisso com a folia, com a alegria, a descontração e o erotismo. A pressuposição, que seria independente do tratamento que fosse dada à catástrofe no desfile da escola, é que o terrível não pode ser tratado com descontração. Como se o erotismo próximo do massacre não pudesse produzir pensamentos diferentes daqueles da Repubblica di Salò. A pressuposição parece ser a de que não pode haver liberdade temática para os desfiles de escola de samba porque a forma dos desfiles em si mesma restringe aquilo de que pode tratar. O que a proibição do carro alegórico traz a tona poderia ser entendido em termos da natureza mesma da seriedade: temas sérios requerem tratamentos ou tonalidades de certa natureza? Ou, antes, aquilo que é instituído como sério, fica instituído assim apenas porque algo impede que apareça em alguns contextos eles mesmos menos sérios? Serão a alegria e o erotismo incompatíveis com alguns assuntos demasiado sérios que por sua vez não poderiam ser considerados senão sob certas condições que o carnavalesco e o popular não atendem? Será simplesmente que as escolas de samba são parte de uma baixa cultura que não estaria equipada para pensar em questões mortais?

4. Shoah e Maafa
Nos últimos 50 anos, os desfiles de escolas de samba aceleraram sua história no sentido de que passaram por muitas transformações – e transformações que derivaram em que diferentes coisas passaram a ser cabíveis nos desfiles das escolas. Um elemento importante introduzido pelos desfiles do Salgueiro de Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues nos anos 60 e início dos anos 70 foi os temas da história africana do Brasil. Pamplona, formado na Escola de Belas Artes do Rio e cenógrafo do Teatro Municipal, entrou no carnaval do Salgueiro em 1960 e procurou um enredo histórico ainda não abordado pelos desfiles no passado. Obteve naquele ano o primeiro título para o Salgueiro com o enredo sobre Zumbi dos Palmares. Em 1963 o Salgueiro ganhou outra vez o carnaval sozinho pela primeira vez com um enredo que tratava de Chica da Silva, como uma heroína negra. No ano seguinte, foi a vez de Chico Rei. O desfile de 1964 foi precisamente, portanto, sobre a Maafa – a catástrofe africana. A Maafa foi composta pela organização de campos de trabalho forçado em dois ou três continentes, pelo organização da vida das pessoas em função do trabalho produtivo, do tráfico sistemático de pessoas e do extermínio de todos os considerados inadequados para o regime de trabalho.9 Assim como a Shoah ou outras catástrofes, a Maafa também foi um episódio (longo) de escravização e genocídio cometido de maneira sistemática e legitimada de tal maneira que não havia espaço, no sistema escravagista, para nenhum recurso, nenhum apelo, nenhuma instância de implementação de justiça. Assim como a Shoah, a Maafa também é vista pela história dos vencedores como o massacre contra um povo (ou um conjunto dos povos). Do ponto de vista dos escravizados e dizimados, trata-se de um ataque sem razão nenhuma. Sem presságio. Sem antecedentes. Sem fio condutor. Como diz o samba do Salgueiro daquele ano, “um dia, ...[a] tranquilidade sucumbiu, quando os portugueses invadiram, capturando homens para fazê-los escravos no Brasil”. A história contada no enredo do Salgueiro – a de Chico Rei – é uma história de adaptação ao status quo escravocrata. O rei capturado compra sua alforria – e a alforria de seu pessoal – e depois compra terras e tem escravos, adota o nome de Francisco e se converte ao catolicismo e, por fim, ergue a igreja de Santa Efigênia do Alto da Cruz em Ouro Preto, uma igreja para os negros alforriados. Trata-se de uma história de cooptação do escravo – mas também, como viu o enredo de Pamplona, de uma história negra de êxito. Uma história, contudo, traçada pela migração forçada, pelas mortes precoces e pelo assassinato dos inábeis. Também pela destituição de toda uma maneira de pensar e de saber – a cooptação de Chico Rei coroa um epistemicídio sistemático.
Os carros de navios negreiros, com todo seu sofrimento e desolação, passaram a se multiplicar nos desfiles. O tema já havia sido enredo do Salgueiro em 1957 (“Navio Negreiro”), e continuou sendo uma constante nos carnavais. Por exemplo, em 2012 dois carros exuberantes de navios negreiros entraram na avenida, da Beija-Flor (em “São Luís – Poema Encantado de Amor”) e da Vila Isabel (em “Você Semba De Lá Que Eu Sambo De Cá – o Canto Livre de Angola”). Nestas alegorias, frequentemente há passistas que seguem a cadência da escola, sorriem e dançam. Talvez se possa dizer que a presença dos navios negreiros banalizou a Maafa e que, talvez, a liminar procurou evitar que o mesmo se desse com a Shoah. O argumento não está presente nos documentos que nortearam a proibição do carro alegórico da Viradouro em 2008 que não faz nenhuma menção à Maafa e nem sequer ao que aparece nos desfiles das escolas nos últimos anos. Porém o argumento em si mesmo é duvidoso: os muitos carros alegóricos fizeram parte de uma presença constante do tema da catástrofe africana no carnaval em um país onde não há sequer um museu dedicado ao massacre perpetrado pelo status quo brasileiro e por seu antecedente colonial. Ainda que possa ter banalizado a associação entre carnaval e navios negreiros, as alegorias fixaram na cabeça do público que foi através de navios de concentração que a população africana chegou para quase toda morrer nos campos de trabalhos forçados no Brasil. Os carros também evocam a destituição dos coletivos que foi a catástrofe africana. Talvez um efeito similar pudesse ser alcançado com alegorias como aquela que Paulo Barros tentou colocar na Sapucaí. Talvez a história de muitos judeus, ciganos e outras vítimas da Shoah no Brasil ficasse evidenciada e refletida pela alegoria. De todo modo, aquilo que os desfiles promovem é múltiplo: é da ordem de um resgate de uma identidade, mas também da capacidade de crueldade, da memória e, potencialmente, do arrepiante.10
Desde o Estado-Novo, haviam determinações de que os desfiles se limitassem a enredos nacionais e a temas que surgissem da história (oficial) do Brasil. Os desfiles do Salgueiro nos anos 60 e 70 introduziram muitas modificações junto com a temática da história africana. A imagem também era de que os desfiles eram uma manifestação folclórica mais ou menos estável e estática. Nada como uma obra de arte total parecia estar em jogo nestas determinações. A partir dos anos 1960, os desfiles começaram a fazer mais do que ecoar a história aceita, mas também a pressioná-la, encurvá-la, apresentá-la a contrapelo de modo que os heróis negros preponderassem (como o carnaval mencionado de Zumbi dos Palmares em 1960, Aleijadinho em 1961 e como na história da liberdade no Brasil em 1967). Em 1971, com “Festa para um rei negro”, a escola tratou do primeiro rei negro reconhecido internacionalmente, Haile Selassie, o Ras Tafari.
Lentamente, desde os anos 1930, quando o enredo era uma quesito relativamente de menor importância no julgamento dos desfiles, os carnavais passaram a tratar de um tema. Também ao longo do tempo, os desfiles passaram a ser embriões de engajamentos e, ao mesmo tempo, passaram a se relacionar, graças a Pamplona e Rodrigues, com a comunidade artística do Rio. Gradualmente, os desfiles passaram a ser assinados e o enredo passou a ser um elemento motriz de todos os outros – ficou consolidada a ideia de que os desfiles tinham autores que tratavam os enredos. Estes eram os carnavalescos que passaram a imprimir suas marcas nos desfiles – as cores de Max Lopes, as alegorias leves de Rosa Magalhães, os metálicos de Fernando Pinto etc. Os carnavalescos passaram a ser disputados pelas escolas com base em sua obra passada. Os desfiles deixaram de ser então tanto arte coletiva de uma comunidade, e passaram a ser, implementados por uma comunidade estruturada de músicos e dançarinos, uma manifestação de autor.

5. Carnaval de autor
A ideia de um carnaval de autor pode ser comparado com aquela de cinema de autor. No cinema de autor, o filme inteiro é assinado: fotografia, roteiro, direção de elenco, cadência. Tudo é assinado e, assim, ao invés de uma arte cooperativa, os diretores deram aos filmes com suas marcas pessoais. Em particular, a partir dos anos 1960 – o tempo de Pamplona no Salgueiro – o cinema de autor se difundiu com diretores provenientes do neorrealismo italiano, da geração alemã de Fassbinder e Herzog e no cinema novo brasileiro. A difusão do cinema de autor teve muita relação com a imagem de cinema como forma de arte completamente clara no Cahier du Cinéma que pautou a Nouvelle Vague francesa. Truffaut, naquela publicação, investia contra alguns roteiristas consagrados em um realismo psicológico envelhecido e abjeto (ver LE BERRE 1994). Este era o ponto nevrálgico do argumento: os roteiristas até então ditavam o teor da produção, restava ao diretor ser um burocrata dos enquadramentos. Com a montagem insubordinada, personagens sedutores e movimentos de câmera insinuantes, o Bout de Souffle de Godard virou o paradigma de cinema de autor. A reviravolta pode ser entendida aqui como uma rebeldia do diretor contra a trama pronta, contra o roteiro imperativo. Algo parecido pode ser dito da intervenção da geração de Pamplona (e de Rodrigues, mas também de Maria Augusta, Fernando Pinto e Joãosinho Trinta). O Salgueiro foi um laboratório que permitiu usar os desfiles para experimentar elementos plásticos, materiais, temas, cores e até passos de dança como a ala de dançarinos de minueto levados para avenida em 1963. O Salgueiro introduziu o elemento de experimentação nos desfiles, desafiando os aspectos formulaicos arraigados na maneira como os enredos eram apresentados até então. Por isso mesmo, aquela geração abriu caminhos para um carnaval de autor em que o tema importa menos do que a montagem, a disposição das alas, a ousadia dos passos e a insinuação dos materiais.

O carnaval de autor e sua experimentação tornou o carnaval vivo e instigante – não se trata mais de uma repetição de uma fórmula, mas de uma negociação original a cada ano com restrições impostas pela história, pelo regulamento e pelo traço do autor. Como manifestação artística, o desfile passou a poder ser lido como uma obra de arte total também no sentido europeu: a expressão de um autor com uma ideia na cabeça e seus recursos de expressão na mão. Há, ainda, um elemento relativamente alheio ao cinema de autor e outras formas de arte total: a presença de um corpo de jurados que a partir de dez quesitos determinam qual é a melhor escola que se apresentou nas noites de desfile na Sapucaí. Um paralelo direto deste jurado pode ser encontrada na forma de arte total das tragédias áticas que se apresentavam em um festival competitivo na cidade (rural) de Dionísia. Ali, os autores se esforçavam para ter um bom desempenho competitivo, e isto acontecia se eles conseguissem inovar dentro dos elementos estabelecidos do teatro grego. A competição, em ambos os casos, oferece um outro limite à experimentação – ela tem que se enquadrar em expectativas de quem julga. O cinema de autor também responde a este tipo de restrição: há o público a ser satisfeito, e há os festivais de cinema que premiam anualmente alguns filmes. Assim, Cannes ou Berlin funcionam um pouco como os certames de Dionísia ou da Sapucaí: oferecem parâmetros com os quais os autores negociam. É sempre uma negociação complicada onde frequentemente dois passos a frente são sucedidos por um passo atrás – certas inovações de vanguarda são lentamente assimiladas pelos filmes, e carnavais, ao longo do tempo.
O carnaval de autor negocia com estes parâmetros de diferentes maneiras. Assim, desde os anos 1960 e sobretudo ao longo dos anos 1980 e 1990 muitas inovações foram premiadas e muitas outras condenadas pelos jurados. Se “Kizomba – A Festa da Raça”, de Milton Siqueira, Paulo César Cardoso e Ilvamar Magalhães conquistou o título para a Vila Isabel em 1988 introduzindo todo tipo de materiais e cores africanos – da palha ao barro das construções de Timbuktu –para substituir os paetês e brilhos tradicionais do carnaval, o “Ratos e Urubus” de Joãosinho Trinta, talvez o carnaval mais inovador de todos não deu o título à Beija-Flor em 1989. A ousadia de Ney Ayan na Império Serrano em 1991, com “É Por Aí Que Eu Vou”, onde caminhões não decorados cruzaram a Sapucaí sem disfarces para tratar dos caminhoneiros, foi penalizada com a saída da escola do Grupo Especial. Em todo caso, não são os temas propriamente que decidem o destino dos carnavais, é antes a maneira como os temas são desenvolvidos na avenida, como o enredo é desenvolvido e como a inovação da realização negocia com os parâmetros fixos estabelecidos e com a história dos desfiles.

6. Carnavalização e sacralização
O apelo a ideia de um carnaval de autor talvez sirva para tornar o desfile de escolas de samba mais próximo das formas de arte total como o cinema onde podemos atribuir a responsabilidade não a um coletivo mas a quem assina. Esta aproximação permite perguntar porque a Shoah não pode aparecer em um desfile de escola de samba se aparece em filmes (e poemas, romances e peças de teatro). Uma questão mais ampla é se a interdição da Shoah se aplica a qualquer forma de carnaval e se, mesmo se ela pudesse ser tratada por autores, ela ainda assim seria tema inapropriado para expressões de arte coletiva. Essa questão ampla diz respeito à compatibilidade mesma entre catástrofe e carnavalização, entre assuntos viscerais e a descontração da folia. O carnaval tem uma tradição de abordar temas proibidos e até macabros (ver HUMPHREY 2001). A carnavalização é um artifício que deixa os temas mais palatáveis e permite que, permeados de uma euforia por vezes desvairada, outras vozes sejam ouvidas, outras perspectivas possam ser canalizadas. A carnavalização é uma desarrumação que torna explícito a fragilidade das construções a partir das quais vidas são moldadas. Ela expõe um gradiente de arbitrariedade que torna sério o seu objeto – neste sentido, ela contrasta com o que é sagrado que é colocado fora dos limites11 (em particular, fora dos limites dos processos carnavalizadores).
Sem explorar os dispositivos de carnavalização, este texto se restringe aos desfiles de escola de samba no Rio de Janeiro e engaja o carnaval de fato em uma forma autoral e de fácil leitura para quem entende arte como tendo assinaturas individuais. É neste contexto que é interessante pensar no que conduz a proibição do carro sobre a Shoah, em comparação tanto com a presença ubíqua de elementos alegóricos sobre a Maafa – talvez em algum sentido carnavalizando-a – quanto com os filmes e textos que, também autorais, fazem uso da catástrofe para conduzir uma trama. Com diferentes intensidades de carnavalização, os desfiles propõem-se a abordar assuntos, a fazer associações, a considerar elementos conjuntamente e a olhar alguma coisa de um modo inusitado. Trata-se de um empreendimento estético – é a estética que apela, que conclama e que engaja em uma obra de arte total. Por isso, ela tem sua força. Proibir a estética dos desfiles de trazer a baila uma catástrofe é desacreditar na sua capacidade de encontrar um modo original ainda que apropriado uma questão.
Talvez se possa dizer que a Maafa e a Shoah são diferentes porque a última ocorreu há mais tempo e assim é menos parte de uma história recente. Primeiro, há que se considerar que a distância cronológica entre 1888 e 1957 de um lado e entre 1945 e 2008 do outro não é tão marcada. Porém, mais importante que isso, é que a história e suas marcas são presente tanto quanto passado: os vestígios destas catástrofes estão presentes hoje como em 1957 e como 2008. Ou seja, estas catástrofes modelaram muitas instituições, práticas, subjetividades e estruturas políticas de hoje. Ambas tiveram enorme impacto para além das supostas identidades de suas vítimas – e ambas marcaram o destino dos descendentes destas pessoas. Talvez a diferença esteja antes na imagem mediatizada de uma tragédia – uma imagem oficial que substitui os poucos minutos de filmagem dos campos nos dias seguintes à Liberação. Há uma visão da Shoah, composta por crematórios, câmaras de gás, cercas eletrificadas e kapos que trabalhavam pelo privilégio de comer o suficiente. Esta visão, seguramente aterradora, está vívida e presente graças a presença da catástrofe na mídia. Já a Maafa parece distante porque suas marcas foram apagadas e nem sequer há uma imagem icônica dos navios transportadores de gente ou dos açoites genocidas a que eram submetidos os insubmissos e os incapazes. As catástrofes procuram destruir suas marcas, e em geral conseguem. Que uma catástrofe tenha conseguido imagens icônicas que a tornem vívida na memória coletiva não deveria deixa-la mais presente que outras, ela apenas está mais nítida – e este é o efeito da imagem mediática que a relembra.
Parece que o que está em jogo na proibição – como no caso do Cristo Redentor da Beija-Flor de 1989 ou da revolução da Império Serrano de 1969 – é que o que é tomado como sagrado não pode ser alvo de carnavalização. O sagrado é precisamente aquilo que deve ser preservado – aquilo que merece seriedade, merece ser poupado de toda operação que o faça ser pensado junto com outras coisas. A Shoah adquiriu um elemento de sagrado – o que, em certo sentido, preserva sua memória mas ao preço de deixa-la impensada em alguns contextos. Olhar para a memória é Uma questão que aparece é se a sacralização (dependente de instituições que sacralizam) é o melhor a se fazer com a memória da questão ou se o caminho da multiplicidade e da proliferação de referencias ao evento presta um melhor serviço à difusão por meio de sua maior dispersão. Outra questão, no entanto, se aplica a Maafa: ausente dos espaços instituintes de sacralização, ela fica completamente disponível para ser carnavalizada?
A sacralização é anátema da carnavalização: o sagrado é o intocado pelos dispositivos que produzem carnaval. Os desfiles de escolas de samba do Rio, no entanto, criaram uma outra matriz de sacralidade cristalizada em sua estética e em sua história. Trata-se de uma sacralidade alternativa aos mecanismos de sacralização das instituições: a estética tem uma capacidade persuasiva porque ela desloca o sagrado, reinventa as inteligibilidades. A matriz de sacralidade dos desfiles impõe restrições internas ao que pode acontecer no Sambódromo em dia de carnaval. Este texto procurou enfatizar esta matriz focando no gradual surgimento do desfile de autor onde a obra de arte total de rua é assinada. Este foco fez perder de vista um pouco da generalidade dos processos de carnavalização em prol de tornar os desfiles mais próximos de outras formas de arte total, em particular do cinema. Os desfiles de escola de samba, deste modo, aparecem vividamente ainda contrastados com artes totais alheias à carnavalização. Este contraste ilumina outro, entre a catástrofe judaica e a catástrofe africana como temas que por sua vez permite ver como há mais de uma medida para o que pode sair na Sapucaí. Afinal o que ainda falta na história estética dos desfiles de escolas de samba para que eles possam parecer capazes de pensar qualquer catástrofe, independente de credo ou raça?

Referências:
AGAMBEN, G.  Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I, tr. Henrique Burigo, segunda edição., Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz, São Paulo: Boitempo, 2008.
ARENDT, H. Eichman em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal, tr. de José Rubens Siqueira, São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BAUMAN, Z. Modernity and holocaust, Cambridge: Polity, 1989.
CABRAL, S. As escolas de samba do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Lumiar, 1996.
CELAN, P. Gesammelte Werke, ed. B. Allemann, S. Reichert, R. Bücher, Frankfurt: Suhrkamp, 2000.
COETZEE, J. M. Elizabeth Costello, Londres: Vintage, 2004.
COSTA, H. 100 anos de carnaval no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Irmãos Vitale, 2001
CRUZ, T. P. As escolas de samba sob a vigilância e censura na ditadura militar: memórias e esquecimentos, Tese defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
FACKENHEIM, To Mend the World: Foundations of Future Jewish Thought,, Nova Iorque: Schocken, 1988.
Humphrey, C. The politics of Carnival, Manchester: Manchester University Press, 2001.
LE BERRE, C. Truffaut au travail, Paris: Cahier du Cinéma, 1994
ROBERSON, E. The Maafa and beyond, Columbia: Kujichagulia, 1995.
SEXTON, A, The Awful Rowing Toward God, Boston: Houghton Mifflin, 1975




giovedì 24 dicembre 2015

Evidências (primeira) e Transmutá de Tateann


Evidências (primeira)

Transmutá:

em nome do cais
do trilho
e do espírito banzo

ele me disse “sim”
ele disse “não”
ele disse: talvez

em nome do capataz
do grilho
e do espírito claustro

ele me disse “sim”
ele disse “não”
ele disse, talvez

em nome do maiz
o milho
e seu espírito quântico

ele me disse “sim”
ele disse “não”
ele disse! talvez?

em nome do saravá
do brio
e do espírito solto

ele me disse “sim”
ele disse “não”
ele disse tao vez

em nome do ai
do íleo
e do espírito sângueo

em nome do hepático
do rínio
e do espírito pâncreas

ele me fez

renome Orí-zoma
bile tática
instinto drapetômano

ele me fez

o xamânico bicho
ancestral biônico
animal ilícito

ele me fez

tectônico rito
continente risco
y o espírito pranto

ele tex
tura

de pele
cura
quebranto
lura
acalanto
de pele es
cura

era tanto
de areia
de fundo
de mar
de low
cura

Ilê me disse “sim”
Ikú “não”
ao amém

NÃO!

e Ele dissen-

tão vem

Tata

Atotô,

Baba.

o curandeiro palhico é o pai,
em seu canto,
Sapatá
dançarino varíoloco o filho,
em seu banho,
Odoyá,
doburu é o espírito do milho,
em seu manto:
pipocá

para transmutá
para transmutá
para trans

mu

tatá
tatá

ta ta

tá tá


Mais Tateann

Rostos negados

Silogismo parece haicai
já que argumentos são musiquinhas.

Os dias.

Se eu pudesse conviver com esquecimentos,
com cada estranho,
me lembraria por todos.

Abri meu tambor de Fez, já que o couro
furou.
Lá dentro tinha um cartão de embarque e uma caneta:
"Reinventar a composição química da terra,
reinventar meus olhos.
Grades são feitas de loterias sem regras
pesam.

Minhas memórias se derretem no ralo.
Minhas memórias são saliva,
moléculas de placidez.
Estou todo vestido da cabeça aos pés, meus sapatos combinam com minha cara.
Estou com as calças arregaçadas sobre um ralo e sinto o cheiro.
Um cheiro.

Medos são estrada, semáforo e guarda de trânsito de tudo o que eu senti,
mas não senti nada, senti o mar de insensibilidade.
Um mar.
Uma poça d’água de insensatez.

Nem controlo o que olho––olho para os sapatos, distraio da cara.
Muito menos que o perigo de ultraser e não tenho fôlego para o fastio
––eis minha placidez; tufões serenos, os continentes a afundar.
O vento sopra dos relógios."

Tentei me lembrar já se era Tarfon, Shamai ou Hilel
que deixaram em Fez o cartão de embarque no tambor.
Tentei me lembrar.
O salário é considerável.


venerdì 18 dicembre 2015

One eyed (Meena Kandasamy)

the pot sees just another noisy child

the glass sees an eager and clumsy hand

the water sees a parched throat slaking thirst

but the teacher sees a girl breaking the rule

the doctor sees a medical emergency

the school sees a potential embarrassment

the press sees a headline and a photofeature

dhanam sees a world torn in half.

her left eye, lid open but light slapped away,

the price for a taste of that touchable water.


Check out here

Torpor

Neste poema de Bagul, o horizonte aberto: surge um barco no mar, uma vela,
e nela uns deuses novos, o nome das coisas,
o nome das velas
o nome dos barcos,
o nome dos pedaços das velas e dos barcos -
um jeito de proceder com o mar,
um jeito de juntar o oceano que chega ao Índico ou ao Caribe
com a persistência dos meus pares em seguir vivendo
de conchas, de peixes, de sal, de iodo ou de luz.
Houve um dia em que os nomes tomaram conta dos modos,
houve um dia em que a mordida de quem quer acordar outra vez amanhã
se misturou ao que não era nada.

Esta mistura dos dalits com as diferenças sexuais e com
as identidades ancestrais faz as máscaras ficarem rasgadas,
recortadas.
E elas ainda tampam.

Before the Vedas (Baburao Bagul)

You lived before the birth of the Vedas
even before the birth of the Almighty
looking at the frightening material
pained and anxious you raised your hands
and prayed
those prayers went to make the Vedic verse,
it is you who celebrated the birth of all gods,
and named them happily
oh the mighty humans,
you named the sun
and the sun got its identity,
you named the moon
and the moon got its fame
only you gave a name to this world
and it was accepted with honour
oh the creative, the genius humans,
you are the cause
because of you so beautiful,
so lively is the world. -
See more at: http://sanhati.com/excerpted/6049/#sthash.SfaCrU7V.dpuf

Torpor dravídico

Meio tonto, meio doente, situado em um fim de linha. Leio Limbale. Um romance. Penso nos dalits como são retratados por Libale, nunca são deixados sós na sua subalternidade - há sempre patrões, e diferenças sexuais, e aproveitadores, e ancestrais. Encontro um texto esquizotrans assim:

Os pes encabulados, surda, os dentes pretos de fumaça de carros, de todos os cigarros e um punhado de submissão, de falta de gozo, de barriga doída de lombriga. Caspas e pétalas de flores cometendo o brilho do seu cabelo já ralo. Intocável. Desde pequena, intocável. E desvanescida. Vinda de casta derradeira, um fruto podre nascida escolhida pra ser pior que ratos, ser pior que qualquer bicho, mão de obra barata. As posições retorcidas da coluna pra carregar as bacias, o pescoço duro de aguentar lenha de patrão, de senhora, mãos habituadas a pedir esmola e a guardar sapatos na entrada do Templo.

Há muito não lhe importunava os ombros de fora, as vestes rasgadas e se contentava com folhas verdes, folhas de árvores. Teve um tempo em que sentiu força pra mudar de casta, furar o cerco, subir na escala, alcançar a pirâmide... Talvez se não fosse tão escura, tão feia, tão fêmea. Foi na época da rebelião hormonal que se instalou em sua cútis que exigiu mais respeito, mais dinheiro e mais atenção, e até conseguiu alguns ouvidos, nesse tempo seus devaneios lhe pareciam escandalosos: se imaginava dançante dos templos de shiva nataraja, da mais alta hierarquia das dançarinas. As que abençoam com mãos e cantos e também fazem milagres. Não lhe importava que isso fosse coisa de homens, queria carregar o deus amado em seus ombros fortalecidos de carregar roupas encardidas, do pai, dos irmãos, das tias, tudo numa bacia gigante, sua companhia.

Não odiara os ingleses, nem os arianos, pelo menos não o bastante – sua impostação era puro amor, sem nem ressentimentos contra as descrições escassas sobre sua personalidade viva. Teve poderes e fez ressecar feridas com toques de unhas. Sua força atômica não empunhou peixeira, nem dardo, nem cabelos assanhados. Achou que bastava ser feiticeira. O que lhe sobrava agora era um estranho fetiche com sapatos de turistas. Polia-os e sofria de graxa, de costura, imitava brilhos, usava dez anéis roubados nos dedinhos dos pés e parecia a beira do colapso. Não morria. Quatro cachorros lhe seguiam e ela cuidava dos seus fiéis andarilhos, que latiam e protegiam da noite sem teto dormida no puxado do templo. Sim, ainda era abençoada pois dormia perto do templo e às vezes de noite cantava e embalava no sono alguns companheiros de destino.

Intocável. Será que por isso nunca casou, será que por isso nunca deu cria? Porque disso sempre fugira e nunca, nunca aconteceu. Era por demais dos deuses, e eles sabiam disso, o que atrapalhava era a hierarquia, da qual não tinha clareza mas obedecia. Já pouco lhe sobrara de certeza e quase nenhuma feitiçaria. Os deuses a queriam carregando a extinção com a ponta dos dedos, na ponta dos pés. Mas ela pisava no chão. Foi com muito atrapalho interno que um dia roubou um sapato do templo, e foi essa toda a maldição consequente. Primeiro a alegria, os sapatos eram perfeitos para seus pés e eram fortes, de material sagrado. Depois uma gastura terrível, quase uma falta de ar. E súbita. Coro de vaca nelore, que escárnio!

Ela vestiu o escárnio. No início com timidez e apenas quando dormia em seus quartos mais secretos; não queria ser vista já que tudo nela contrastava com aquele sapato de couro bem nascido, bem criado, bem matado e bem cortado. Profaníssimo. E nela tudo era lama do nariz, tudo era desgostura, tudo era gerações de improviso ardido. Não era sapato de sua classe, nem de sua casta, nem de sua cor, nem de seu domicílio, nem de sua imperfeição. Seus quatro cachorros de guarda entendiam hedonistas que aquele conforto caia bem e já estava apropriado. Eles eram veículos, entre o santo e as heresias incontáveis, não eram criaturas de um só mundo, nem pisavam sempre nos mesmos chãos. E seguiam ela e seus sapatos torpes e confortáveis. O sagrado despedaçado em utensílios perde a boa aura mas os cachorros não seguem a aura, seguem o fedor onde fizeram ninho, onde se acolhem com toda a cumplicidade ou com toda indiferença. Os cachorros sim seguiam templo adentro, sem parar na porta como a pastora porca que era intocável. Eles entravam e engoliam farelos alheios a qualquer solenidade ou embriaguez. O que alimenta não tem procedência. As vezes ficavam por cerimônias inteiras, se coçando, se lambendo, se arrastando no chão do templo. E depois voltavam ao fedor familiar de sua intocável, que eles achavam roçável. Ela então se retirava para um bueiro feito privado e ali sim colocava seus sapatos para virar deusa intocável, inatingível, inalienável. De uma religião clandestina, prolífica e piedosa.

Depois de algumas semanas ela perdeu mais esta cerimônia e passou a ficar na porta do templo também com seus sapatos. Por que ela haveria de ter pudor? Pudor é para quem tem recônditos e ela era escancarada, pedia, implorava, se arrastava, lambia os sapatos – podia vestir o descalabro. E se sentia deusa, fora do picadeiro, mas deusa. Pelo menos do tornozelo para baixo. Seu sapato era um candelabro aceso, lhe acendia. De onde estes sapatos, lhes perguntavam os que passavam com ou sem fortuna. E ela se arrastava, é tudo o que eu tenho, é demais? As vezes até tirava os sapatos e recolhia moedas com eles. Dava sorte. Já não conseguia falar senão para implorar, para mostrar seus sofrimentos e cobrar por eles. Sua voz saía já implorada, esganiçada e quando por descuido e raramente saía-lhe uma tonalidade diferente, quando por exemplo ralhava com alguém reclamando seu pedaço de chão perto da luz, seus cachorros latiam e estranhavam, já que moravam nos grunhidos esganiçados, agoniados, chorados de sua intocável. Não era junto dela cheia de força, cheia de ímpetos que eles moravam, moravam ao pé da fraca, da desabada, da nojenta.

Existem duas tramas entre os intocáveis – e talvez até entre os outros, os que se tocam. Tem a estória de alguém que chega, e tem a história de alguém que parte. Pode ser um rato, um coiote, um guru ou pode ser uma infecção que apareceu de surpresa ou deixou um corpo em paz. E às vezes as tramas se esbarram, quem uma vez veio, volta. Quem algum dia já chegou, desaparece. Quem uma vez infectou, cura. Quem uma vez resolveu o desconforto, traz a maldição. No lodo os complôs saem desbotados, úmidos, dissolvidos. Num meio-dia de monções o templo esvaziou no meio da tempestade. Ninguém entrava, ninguém saia, apenas a água que inundava já quase todo o pequeno santuário de Ganesh quase submergindo sua trompa e a água que era jogada para fora pelos sacerdotes que com cuidado secavam as relíquias, os ex-votos, os cálices bentos. Mas a intocável de sapatos de couro estava com fome, e sentia febre, e sentia calafrios, descalibrada e surda, feia, fêmea e maldita. Ela e outros quantos desesperados ficavam debaixo de uma lona na porta do templo, esperando que alguém chegasse com uma compaixão redentora. Ela não tinha mais para onde ir, mal conseguia se mover com suas pernas tortas, e arrastada para sua ratoeira só poderia arder de febre com fome sem os seus cachorros que não sairiam do templo enquanto não estiasse. Debaixo de chuva e de vento, com os elementos conspirados contra ela e com o desespero do delírio sua cara era ainda mais dolorida, era um buraco negro de desconsolo, como uma parede sem portas. E poderia vir um fiel, um devoto com fortuna que pudesse olhar para baixo e no meio da água sem cartografia abrisse o bolso e tirasse alguma moeda ou algum pedaço de pão. Era miudinho.

E veio. Era um Sri. Barbas brancas e a roupa salpicada de nobreza suja. Iluminado no meio da cinzura do dia estragado. O Sri parou e largou sobre sua mão um pedaço de pão e ainda um figo seco, daqueles que os sábios mordiscam depois de dias subnutridos para que fiquem sabendo apenas do que acham que é preciso saber. Ele entregou a comida lentamente e depois olhou fixamente para seus sapatos. Em seguida fez um sinal com a mão indicando que iria se sentar ao seu lado, debaixo da lona, debaixo da chuva. Que coisa precisaria acontecer agora? Ele se sentou com muito cuidado e sem nenhuma velocidade. Recostou sobre a pilastra do templo e tocou a intocável, não na pele, não na carne, mas no sapato. E disse, os sapatos, eu conheço estes sapatos. A intocável delirava e já nem lhe importava mais nada senão o figo que engolia, o pão que se desfarelava na sua boca. Os sapatos são roubados na porta do templo, ele disse. E ela apenas pensou retorcida entre duas poças fundas de água suja: e o que me traz este agouro, mais tormenta? Quando se rouba um sapato na porta do templo, ele dizia, uma pessoa calçada vai sair do templo com os pés pelados, triscando no chão. É como se seguisse no templo, é como se seguisse em terreno sagrado, é como se não pisasse mais na diferença entre o templo e todo o resto dos chãos. Perder os sapatos é perder uma compostura. Quase nunca se roubam sapatos, quase nunca na porta do templo – já que a fúria dos que sustentam o mundo pode sempre se voltar contra as mãos ladras. Mas ela, a intocável, foi ela que nem temeu fúria alguma – ela não podia entrar no templo, porque haveria de andar descalça? Assim falava o Sri, devagar como se cada palavra fosse um mantra escolhido para a ocasião, como quem fala com cuidado ou sem certeza. Quando uma fúria assim é enfrentada, a geografia da santidade muda. Algum pé roça qualquer parte como se fosse sagrado já que é, já que o templo não pode ter portas e aquele lugar inundado onde eles estavam – já recostados sobre muitos centrímetros de lama – era um lugar que não tinha lugar. O Sri falava e ela saia de si como os famintos fazem, os famintos daquela fome que não mata mas que também não ajuda a viver. Ela não sabia se resmungava ou se tentava encontrar um jeito de levantar a voz e corrê-lo de lá – ou talvez apenas ficar em silêncio e esperar para ver até quando aquele vento ia soprar sem direção.

Ele falava que ele também vivia na porta dos templos, sempre indo e voltando, sempre excogitando o templo pela cidade, a cidade adentro. Seu retiro era nas suas viagens, província a província, indo de porta em porta e ali fazia um ashram, ali fazia discípulos. Ela não queria mestres, queria talvez um pouco mais de figo seco e se decidiu a extender a mão em sua cara, sem som, sem grunhido, que ele falasse já que ela não escutava quase nada do que não lesse em sua cara. Ele parou de falar e, para sua surpresa, colocou a mão no bolso e retirou exatamente um figo, seco e ainda maior que o primeiro, e depositou nos seus dedos. Ele dizia que teve muitos filhos quando morava no norte, fez fortuna, perdeu todo o dinheiro, ficou ainda mais rico, abandonou a cidade em um trem. Tive uma filha criada no exterior. Ela fazia filmes, fazia documentários e estava sempre viajando por toda parte. E ela era devota de Ganesh. Colecionava Ganeshas de ouro, de prata, de diamantes, tudo o que não gastava em roupas e nas viagens, gastava em deuses bibelôs em sua estante. Ele era também aficcionado de Ganesh. Mas não gostava das coleções, preferia que os outros tomassem conta do que é precioso. Ele preferia cuidar do que é descartável. Ganesh tinha uma tromba, não era turqueza, não era rubi e nem de esmeralda, era imprevisível. E ainda assim, ele gostava de olhar para a cor da turqueza, ter uma pedra no seu bolso, junto aos figos, junto aos pães. Ainda que parecesse de tão pouca utilidade no seu bolso. O sapato era de sua filha, ele disse. Ela veio ao templo e voltou descalça.

Era esta a armadilha, achou a intocável, olhando fixamente para os lábios do Sri, com a cabeça empenada para frente como se estivesse debruçada sobre cada palavra. Ela ultimamente as vezes dormia de sapatos. Mexeu um tanto os dedos dos dois pés, sorvendo aquele ambiente enxarcado e ainda assim uma casa, uma corpo para seu corpo. Ele colocou de novo a mão sobre o sapato. E então lentamente começou a se retorcer em direção a um pé esquerdo e começou a beijar a sola do sapato, e o pequeno salto e depois o resto do couro em volta da sola. Ele beijava como quem lambia. Lambuzava. E ela, intocável. Parada debaixo do temporal, sem mais nada senão sua capacidade de se perder em contemplações. Contemplava os pequenos deslocamentos do pescoço do outro maltrapilho, o pescoço esbarrava entre aquilo no que ele rastejava a língua e naquilo que ele não tocava: ele lhe lambia ou beijava os sapatos? Ela olhou para as núvens no horizonte mais escuro: o oriente é o oriente. Os Sris passam, mas a dobra entre o céu e a terra permanece. A chuva apertava. Ele se largou no chão, e em alguns minutos ficou coberto por uma poça, ela olhou para aquela imagem crente se desmanchando e estendeu uma mão – como aprendeu a nunca fazer para uma pessoa já que qualquer um era superior demais. Ele então modeu-lhe o sapato. Com dentes frágeis, talvez só dentes ausentes, a gengiva nua que se acostumara a morder mesmo sem mandíbula. Como se figo fosse carne. Como se figo fosse seco – ele na poça de lama com a boca na sola do sapato da intocável como se a água tivesse cabelos que ele pudesse agarrar. O sapato, enxarcado, se tornava de outra substância. As monções furiosas, a mordida frouxa da boca desmantelada, o cheiro do suor lavado – dali podiam sair caules e miudezas. Uma outra substância. Uma substância anônima e, ainda assim, como dos parias que nascem nos becos abertas nas paredes, prenhe de ardências. Uma substância sem dono, sem objeto, sem contorno e que, avulsa, não tinha corpo, nem era dela e nem era de qualquer sadu. Pleiades de células mortas. Era da matéria extraviada que o sapato se inoculara. Um coito.

Na poça de água com o iluminado dentro, a mendiga via o céu nublado tremido e ele que lhe olhava com o pescoço encurvado e a boca debruçada na sola do sapato como se quisesse um chão. E ele recusava sua mão estendida. Ficava ali sem bordas como se suas gengivas pudessem amparar a situação. Ali germinam galáxias inteiras, segundos duram milênios, horas duram minutos. Passou o tempo de secar o ar e vieram ladrando os quatro cachorros, saídos do templo e fiéis. Como um cipreste, secando pelo chão. A boca largou o sapato, as roupas do homem molhado ainda se escorregaram pela lama e o arrastaram para perto da mureta onde chafurdavam os quatro cães. Arrancaram-lhe um dos sapatos e ele teve que se levantar com o pé pelado, escorrendo água. Olhou para baixo e entrou no templo.





mercoledì 16 dicembre 2015

Ontem, agora

tropeço pedaço despeço
perdão despedaço

MC Bicho Bicha na Decurators


O texto do MC Bicho Bicha na Decurators:

O poder da bicha
É o poder do bicho
Do bicho que devora quieto
Do bicho papo reto
Do bicho que se entrega
Tuas feras soltas, tuas asas
Teus ciscos, teus rabiscos.
O poder do que cresce no lixo,
do carrapicho
do teu mijo

O poder do bicho bicha
É o poder larval
Que te seduz, como um animal
Que te desmonta
Não segura tuas pontas
Te afronta, te deixa tonta
Te espicha a salsicha
Te esguicha
Até que cai a ficha
Nem tenho filo nem espécie,
Sou só bicha.

Como todos os bichos
Concentrados num só animal
O filho da terra
Que não quer ser só mais um mano humano
Devastador.
Chama a mina colorida
Que é feroz e graciosa
A mina que é a pachamama,
É condor, serpente e llama
Peixe, girino, iguana
É uma mina americana
pode mais do que o Obama,
Que o papa e o dalai-lama
Chega junto, te inflama
E não fica cercada, fechada,
Amordaçada, domesticada, encurralada,
Apertada, silenciada, atropelada
Que ela não é só natureza, morou?
Que é só coisa do IBAMA
Ela quebra a cama
Essa mina, a pachamama.
e eu sou seu chifre caribu, dadivosa
Que eu sou homem-viado
O mestre das renas doces
Que se entregam aos caçadores
Que agradecem no jantar
Que este aqui é o meu planeta, vagabundo
E pra comer tem que pagar
Não com o dinheiro do açougue, filé
Mas com a carne do teu bucho
E a ossada que você usa, mané
Pra te sustentar

Caribuuuuuu

Escuta o som da terra, mano
O som da lava, da água, do fogo, do chão. Da terra que não se compra
Nem se arrenda a prestação
É a nostalgia da onça,
Do pato, da cabra, do porco
Do mato, do tronco, da seiva, do lago. Da cinza, diamante, do ouro
Nas moedas de um milhão
A nostalgia dos processos indisciplinados
Nas máquinas que industriais engravatados
Entregam aos somalis escravizados
Que ficam milhões de horas encalacrados
No chão da fábrica amarelado
Fazendo lucro camuflado
Vendidos por outro imigrante proletarizado
Que largou de ser um bakuníndio
Pra rodar a manivela do desejo líquido
nos tentáculos ávidos atávicos hiperbólicos
de Chluthlu
Caribuuu

Meu nome é ruptura,
É V de humanidade
É esquecer a espécie, parceiro
Quero som que faz teus osso requebrá
Geral enviadá, malandro revirá
Reprogramar teu travesseiro
Correr com os equezeiro
As nega colando velero
Misturada nos maloqueiro
E todos os batuqueiro
Montando açucareiro.

Emecida Bicho Bicha
Esse viadão assombração
É o homem-caribú
(dadivosa)
Que te oferece cerdo cru
Pra tu comer ou pra comer teu macucu
Não é umas reninha, é trucuçu
Onde tem bicho tem bicha, xará
Onde tem baba de carniça
tem terremoto em teu angu.

domenica 22 novembre 2015

O começo do dia

Dia, dia, dia. Dia mais rápido do que eu queria às 9 horas da manhã.
Penso nos tontos, nos mareados que nem sabem como começou o dia.
Penso e me encurvo.
Deve ser um ardil para miasmas, esse pensamento.
Astúcia
Eu testemunhei o começo do dia, como um mártir,
e nem sei como começou o dia.

lunedì 16 novembre 2015

Wirklischkeitwund

Quais são as facas que feriram Ela de suicídio?
Em um rio, amolo as minhas facas.
Bem longe das grandes cidades, bem longe de onde uma vez sentado na pedra
gozei.
São das minhas facas as cicatrizes, me pergunta o Sancho Panza, em palavras lentas.
São.
Ou são de outras facas, assim como as minhas.
Ou são apenas maneiras de se esticar para ter um lugar ao sol.
As mangueiras que não se movem ficam plantadas.
Olhando a matéria usurpar e envelhecer.

domenica 8 novembre 2015

O livro?

Minutos são minúcias:
ora a natureza é que é vã
e ora o vão é que é natural -
nos detalhes os dias são adiados,
crescem as exceções, os suplementos, as diferenças e os excessos
e não cabem no grande número de coisas de que está cheio o universo.
Leibniz escreveu que Deus precisou fazer um mundo variado,
para que fosse perfeito. Justo mundo, mas imundo.
Teve que encontrar lugar para o fim de tudo.
Todas as coisas grandes e pequenas voltam ao pó,
e o pó que as recebe é assim um hotel em que cada minúcia
tem um minuto.

Snake (Lawrence)




A snake came to my water-trough
On a hot, hot day, and I in pyjamas for the heat,
To drink there.
In the deep, strange-scented shade of the great dark carob-tree
I came down the steps with my pitcher
And must wait, must stand and wait, for there he was at the trough before
me.

He reached down from a fissure in the earth-wall in the gloom
And trailed his yellow-brown slackness soft-bellied down, over the edge of
the stone trough
And rested his throat upon the stone bottom,
i o And where the water had dripped from the tap, in a small clearness,
He sipped with his straight mouth,
Softly drank through his straight gums, into his slack long body,
Silently.

Someone was before me at my water-trough,
And I, like a second comer, waiting.

He lifted his head from his drinking, as cattle do,
And looked at me vaguely, as drinking cattle do,
And flickered his two-forked tongue from his lips, and mused a moment,
And stooped and drank a little more,
Being earth-brown, earth-golden from the burning bowels of the earth
On the day of Sicilian July, with Etna smoking.
The voice of my education said to me
He must be killed,
For in Sicily the black, black snakes are innocent, the gold are venomous.

And voices in me said, If you were a man
You would take a stick and break him now, and finish him off.

But must I confess how I liked him,
How glad I was he had come like a guest in quiet, to drink at my water-trough
And depart peaceful, pacified, and thankless,
Into the burning bowels of this earth?

Was it cowardice, that I dared not kill him? Was it perversity, that I longed to talk to him? Was it humility, to feel so honoured?
I felt so honoured.

And yet those voices:
If you were not afraid, you would kill him!

And truly I was afraid, I was most afraid, But even so, honoured still more
That he should seek my hospitality
From out the dark door of the secret earth.

He drank enough
And lifted his head, dreamily, as one who has drunken,
And flickered his tongue like a forked night on the air, so black,
Seeming to lick his lips,
And looked around like a god, unseeing, into the air,
And slowly turned his head,
And slowly, very slowly, as if thrice adream,
Proceeded to draw his slow length curving round
And climb again the broken bank of my wall-face.

And as he put his head into that dreadful hole,
And as he slowly drew up, snake-easing his shoulders, and entered farther,
A sort of horror, a sort of protest against his withdrawing into that horrid black hole,
Deliberately going into the blackness, and slowly drawing himself after,
Overcame me now his back was turned.

I looked round, I put down my pitcher,
I picked up a clumsy log
And threw it at the water-trough with a clatter.

I think it did not hit him,
But suddenly that part of him that was left behind convulsed in undignified haste.
Writhed like lightning, and was gone
Into the black hole, the earth-lipped fissure in the wall-front,
At which, in the intense still noon, I stared with fascination.

And immediately I regretted it.
I thought how paltry, how vulgar, what a mean act!
I despised myself and the voices of my accursed human education.

And I thought of the albatross
And I wished he would come back, my snake.

For he seemed to me again like a king,
Like a king in exile, uncrowned in the underworld,
Now due to be crowned again.

And so, I missed my chance with one of the lords
Of life.
And I have something to expiate:
A pettiness.

Taormina, 1923

Credits: http://homepages.wmich.edu/~cooneys/poems/dhl.snake.html

lunedì 26 ottobre 2015

Um jardim inventado com sapos reais dentro?

Contava a pouco na mesa:
- Minha mãe me via triste e dizia,
"por que você está triste, com pernas e braços?".
É que as tormentas parecem inventadas
por nós mesmos quando temos a comodidade
entre tantos problemas reais de tanta gente,
minuetos tocados pela madrugada entremeados de soluços
enquanto outras e outros acordam
para um trabalho que rasga suas forças.
Eu ouvia isso e chorava mais: por todas as dores,
a minha e todas as outras.
E via os sapos pularem para fora das minhas neuroses.

martedì 6 ottobre 2015

Não somos bonobos

Ontem estava tórrido e seco e todas a minha erudição se derreteu.
Fui ao curso de feminismos e filosofia falar sobre o pornoterrorismo.
Debaixo do braço, o livro da Diana Torres
com todos os meus rabiscos nas margens, rostos sorrindo,
setas, riscos, traços.
Ela dava para os homens, eu dizia, e eles achavam que tinham
que pagar a cerveja, ou um jantar, ou um passeio de barco.
E o prazer deles era assim bem maior?
Ou eram eles que tinham que humilhar o prazer dela?
Que porra é essa?
Estava tórrido e seco e toda a minha erudição se derreteu.
Eu falei que ela experimentou no corpo a diferença sexual.
Mas onde mais alguém pode experimentar diferença?
Perdi de comer a pinha.
Afinal, por que não somos bonobos?
Estes mesmos que imaginamos ainda que sejam apenas chimpanzés disfarçados?
E nem sequer fingimos ser bonobos.
Perdi de comer a pinha.

mercoledì 16 settembre 2015

Sorte no jogo (ars poetica)

Ginsberg mandou olhar pra lama dentro de mim
ela é rala.
Moore falou que tem genuíno - e porém
meu alicerce de alma ficou truncado por uma miopia de mentiras.
Minhas sinceridades, sempre berradas no meu ouvido pelo meu alter
ego confesso, me entorpecem.
Nem é minha lama genuína nem minha genuína lama que precisam ser escritos.
Nem sequer a história descabida dos meus sentimentos.
É minha testa batida na quina da mesa.

venerdì 11 settembre 2015

A espreita e o espectro

Por uma fresta entre os pelos brancos da gata e
o castelo do funcionário na QI 7 do lago sul, Margot,
uma bruxa, assobia. Ela está velha e na sua espinha dorsal
retorce com um rodo na mão uma raposa. Já não é uma piaçaba e a natureza
que domou seu corpo é sacerdotisa e antes disso é soberana.
Uma velha não dá muita confiança para a outra.
Mas distraída, a Tituba assobia - e a gata fica parada.
A natureza tem seus afazeres.

Na parada de ônibus na pista principal do bairro
Francisca, com dez genes da Angola, a louca,
não é papa e com um filho no chão serve sucos
e bolos e pães e gelo para quem vem trabalhar no hospital.
As bestas me entendem, mesmo que nunca me respondam.
Também meus ombros me entendem, mas não me respondem
se o mandato que eu tenho sobre eles
é da sua preferência.

mercoledì 26 agosto 2015

Jude (nova versão)

* Há anos venho cuidando deste poema. Ainda não sei se ele está pronto para o mundo. Mas hoje me pareceu que a ideia merecia outra tentativa.

Terra Mais Santa

por toda a minha vida tenho sido perseguido por um dedo em riste
que me fala que não tenho direito a nada a não ser que justifique
minha memória tem uma mesa cheia de petições negadas, pedidos indeferidos
espalhados pelas músculos de um ossada ousada e acanhada, curta e triste
as instâncias de tribunal em cada glândula, não deixam que ela se estique
e o coração, batendo com esporas nas costas, faz só os barulhos permitidos.

“convence-me que mereces o que queres ou queira outra coisa, desista”
falou-me tantas vezes um júri, martelando veredictos antes do meu braço mexer
aprendi a prender o fôlego todo até que haja suficientes credenciais
meus desejos viraram ordens mandadas, meus prazeres itens de alguma lista,
temo o que pode machucar, preparo que meus amores virão me abater
e não consigo respirar o oxigênio tranqüilo do que não acaba mais.

alguém venha e me conte que é possível
um campo de concentração que produza alegrias em medida industrial
prazeres casuais, júbilos constantes, injeções de euforia
benções, êxtases, orgasmos - todos frequentes e
para milhões de pessoas a cada dia, apenas para fazê-las estar bem
(as portas sempre abertas, é claro)
Auschwitz, Monowitz, Birkenau de felicidades a cada dia maiores
para multidões em frenesi sem entender porque foram escolhidas
para tanta bonança.

por favor, me ajude a juntar os tijolos.

lunedì 24 agosto 2015

O fio

Você pode me dizer por que as coisas estão por um fio?
Porque algum brio as colocou lá.

mercoledì 19 agosto 2015

Uma Bishop lida ontem no fifi na casa que ela tinha em Ouro Preto - Casa Mariana

Cego,
O girassol é amarelo.
Todo o resto é mentira.

Quibungos - ontem no fifi 7 de Ouro Preto



Quibungos: A vingança do pó
Hilan Bensusan


O que que você fez para merecer isto? O merecimento apela para uma transação ainda que implícita: aqui se faz, aqui se paga. Mérito. Quem tem mérito tem uma recompensa espiritual devida, diz a etimologia de meritum. Meritum tira merecimento, e tira ter direito, por exemplo, à merenda. Mérito diz respeito a uma contrapartida por um serviço prestado. (E demérito ao uma contrapartida a um estrago ocasionado.) Meritum aponta para uma dívida, portanto, a um estado em que há um crédito – ter um mérito é como ter um crédito. Porém não se trata apenas de ter um crédito em uma instituição, em um sistema financeiro ou em um cartório de registros específico. O mérito é cósmico – ele aponta para uma justiça de transações cósmicas, recompensas cósmicas, contrapartidas cósmicas, serviços cósmicos, estragos cósmicos. O mérito se insere em um sistema de reparação, aquilo que associa à origem do mal – o mal surge de alguma parte e, de modo recôndito ou explícito, da ação de alguém. O mérito invoca alguma agência – se o que se passa comigo tem mérito ou demérito é porque há algum responsável pelas contas destas transações cósmicas. Aqui se faz, aqui se paga. Porém, como formulava em sua primeira lei da ecologia humana Garrett Hardin, não se pode fazer uma coisa só. Hardin ele mesmo, depois de pregar o controle populacional por anos, se matou aplicando-se auto-eutanásia e deixando 5 filhos.

O discurso do mérito é o discurso da agência – e se o mérito está disperso, também está dispersa a agência. Uma ação pode ter mérito em uma praça – por exemplo, junto aos beneficiários de energia mais barata – e demérito em outra praça – por exemplo, junto aos rios, aos patos, à Gaia. É por isso que Isabelle Stengers fala da intrusão de Gaia. Não é, como deixa clara a ideia de Lovelock de uma vingança de Gaia, que a Terra chegou agora e instituiu sua jurisprudência. É que seu tempo é outro. Ou bem, seu tempo era outro antes do antropoceno. A intrusão de Gaia não é primordialmente a intrusão de uma vingança, nem uma declaração de guerra, nem mesmo a descoberta de uma outra forma de vida que se mistura ela mesma com a vida mesma no regime cósmico sublunar. A intrusão de Gaia é sobre a animação. Sobre o que é animado o suficiente para se sublevar, para que a força que faz abaixar a cabeça seja também a força que devora.

Merecimento é cósmico. O demérito – aquilo que surge de um estrago ocasionado – é também cósmico. Não é só uma dívida em algum banco ou praça, é algo que pode ser cobrado de alguma parte qualquer. Mérito e demérito são transações cósmicas, mas quando dizemos o que que eu fiz para merecer isso?, invocamos alguma agência contábil, e ainda não sabemos qual. Pode ser, por exemplo, o grande árbitro de tudo, uma agência que pondera nossas boas e más ações e, por necessidade, faz mal quando castiga, faz bem quando premia. E mais, faz mal de acordo com o demérito e bem de acordo com o mérito. E é possível que o árbitro leve em consideração algo mais do que as transações entre o bem e o bem, entre o mal e o mal: pode ser que dê o frio conforme o cobertor. Trata-se do juízo de Deus, cósmico o suficiente. E pode ser que, por exemplo, haja muitas cortes de justiça, muitas praças e não se pode fazer uma coisa só. Há tantas instâncias contábeis do mérito e do demérito quanto agências – uma natureza sem agências é uma natureza onde não há mérito, nem crédito, nem árbitro, nem vinganças.

Vinganças e justiças invocam uma à outra. Nemesis é muitas vezes enviada de Dike e associada a Erinyes; elas atuam muitas vezes em bando. A indignação, a retribuição, a punição – as deusas do crédito e do mérito, do débito e do demérito; as deusas de um universo capaz de fazer promessas. Elas são guardiãs das promessas cósmicas. São agências contáveis – são instâncias de memória. Erinyes vem do sangue da genitália de Urano que caiu na terra quando Chronos o castrou. Dike é filha de Zeus e Themis (Hesíodo), mas talvez também de Nomos e Eusebia. Nemesis é filha da Nyx. Elas surgem do Tempo, do Céu, do Comando, da Ordenação e da Noite. São também as guardiãs de uma necessidade: de dia se faz sob o céu, diz o comando, de noite se paga sob o céu. Ou seja, elas invocam a agência no cosmos – a arché, comando e começo. Trata-se de um sistema que não é aquele de um agrupamento de humanos, diz respeito a todo o resto – méritos e deméritos são adquiridos no comércio com qualquer humano e com qualquer não-humano. A justiça é talvez o lado de dentro da vingança. Clamar por vingança é querer justiça – os justiceiros, que estão se movendo do lado de dentro, são os que se engajam nas vendettas. Olho por olho, dente por dente, sangue por sangue: o demérito cósmico nos faz despreocupar com a sorte dos demais, e nos tranquilizar com a nossa sorte – basta que a mereçamos. E começamos a fazer o cálculo diário das obrigações e permissões, o cálculo dos deméritos e das vinganças – e aquele dos prêmios. Nosso cálculo, já aqui, tem que ser ele também cósmico.

Até onde podemos estragar ou prestar serviços – e acumular méritos e deméritos? Talvez haja zonas de trégua – onde não haja agência, não há instância contábil, nem há crédito, demérito, dívida, dádiva. Onde não há agência não há genuíno comércio, de nenhuma espécie. Uma natureza inanimada é o exorcismo de Nemesis (e de Dike, e de Erinyes) – apenas uma agência que impõe sobre todo o resto suas leis, seus comandos. Nada, sob o manto da natureza inanimada, tem protagonismo para poder contar mérito, ter dívida, merecer ou se vingar. O inanimismo é um exercício de subserviência ontológica – os inanimados são aqueles que jamais transitam na vingança. A natureza, por outro lado, é uma espécie de Pax Americana onde ninguém reclama, ninguém protesta, ninguém concede – e ninguém merece. Viver na natureza é viver sem méritos. Aquilo que é tratado como natural, fica fora do espaço da justiça; fora de qualquer âmbito de reivindicação, de qualquer protesto. O que é posto na inanimação é retirado de qualquer política. A produção de inanimação é portanto um empreendimento teratogênico – e gera atrocidades congênitas. Arremessar alguma coisa ao pó é um empreendimento de quem cria cuervos. Os monstros que emergem do exorcismo da agência são como lava: ninguém pode medir, dizia Nietzsche, a inflamabilidade de um corpo. Exorcizar a agência é esmagá-la em uma economia restrita onde tudo é recurso – uma economia de proprietários e seus dividendos.

As propriedades, elas mesmas, transmitem mérito ou demérito para quem as tem, porém elas são imunes umas às outras já que não entram em nenhum contato que não seja aquele estabelecido pela leis gerais. Meritum, em certo sentido, se assemelha a munus – o termo em volta do qual Roberto Esposito apresenta uma etimologia pra comunidade e para imunidade e, com isso, apresenta as bases de uma biopolítica. Munus – ou munia – indica uma tarefa, ou um dever – ou ainda uma obrigação de prestar um serviço. Munus é um serviço aos outros, e aquele que o pratica adquire um meritum diante dos outros a quem este serviço é executado. Uma comunidade é uma distribuição de serviços e deveres – os agentes se entrelaçam porque tem alguma coisa em comum (um serviço conjunto que serve a todos). Por outro lado, aquilo que está imune está dispensado deste intercâmbio – não presta serviço, não demanda serviço. A natureza é o jeito de imunizar algumas coisas – a elas não se deve nada, elas não distribuem mérito ou demérito. Recursos não participam de comunidades, recursos não tem uma biopolítica – são servos ontológicos atrelados a uma suposta inanimação estrutural e a uma economia restrita em que a eles nunca cabe a preponderância.

A vingança é uma marca da animação – mas de uma animação tão disputada que pode ser a animação do próprio inanimado como atesta o comando de fidelidade ao pó: voltarás a ele e assim ele se vingará de tudo o mais que fizestes desde que dele saístes. Quando dele saístes, ele tornastes um recurso: o teu pó, a ousada alçada da tua ossada. Mas o pó clama a Chronos, que corta a genitália de Urano e deixa marcas de sangue na terra. É o decorrer dos dias que vinga – é o futuro que é o juiz. Mesmo onde não há animação, decorre o tempo e decorre sobre o chão. O chão e o tempo tem seus vulcanismos, os vulcanismos monstruosos das agências exorcizadas. O próprio pó que guarda em si a ameaça de um mundo animado onde aqui se faz, aqui se paga, onde regem as forças que calculam e distribuem méritos e deméritos. E se o pó, aquilo que é natural e inanimado, se erigir em um manifestação de Cthulhu, em um parlamento dos outros, retorcendo as coisas em um vulcanismo monstruoso como aquele que dá forma ao que passou anos sedimentando, faz sujeito do que estava por anos apenas asssujeitado?

Além do tempo e do chão, a lava animada da vingança também se faz de associação. O plural de inanimado nem sempre é inanimado: as alianças reconfiguram as forças e são as sociedades de moléculas que produzem agência – pelo menos se agência têm, por exemplo, os humanos. As associações são o que transforma pó em osso, osso em ossada, ossada em núcleo de uma alçada. Pó, pó, mais pó e pronto, enquanto durar esta rede de pós, aparece animação. Aos inanimados acontece o que acontece aos fracos, eles se associam. O monstruoso é a associação que não é reconhecida – aquela que agrega pessoas a mais pó, a agência que vem de ingredientes servis, o Golem que cresceu e que quando desaba se vinga daquele que o fez nascer e morrer. A larva da animação está por tudo o que pode ser acoplado, em tudo o que em uma conexão pode produzir vingança. Tudo guarda assim a semente de uma vingança – mais primeva e rústica das animações. E como as associações não se mantêm entre aqueles que se desmerecem, a matriz de mérito e demérito periga se espalhar por todo tijolo posto a serviço e por todo mandamento emitido. O espaço do mérito é também um espaço messiânico: o espaço da salvação. Derrida insinua que todas as coisas guardam uma messianicidade. Cada uma delas pode ser decisiva em um contexto onde nenhuma outra coisa poderia encaminhar uma saída; cada gota pode ser a gota d'água que dispara a vingança ou que remedia a sede.

Uma tonalidade recorrente da trama da vingança é a tonalidade da surpresa. De onde menos se espera: a vingança é um prato que se come frio. Ela demora. Ela pode demorar porque ela depende da castração feita por Chronos – e ela depende muitas vezes de que ela não seja mais esperada. Ela é de um tempo que não é esperado. Não se vinga o que se deve em um registro conhecido e estabelecido. Neste caso, trata-se de justiça, ou de finanças, ou pelo menos de contratos. A vingança é da hora do que está para além do esperado, do que está para além do repetido que é o futuro previsto. A vingança é da ordem do acidente: o monstruoso da tsunami e o da revolução. A origem da vingança é a origem do monstruoso: o monstruoso mesmo é da ordem do inesperado, do acidente, do que não cabe no repetido que é o futuro. O monstruoso é o mutilado – a vingança é o que retorce as normas da justiça já que é a justiça do lado de fora. É este o elemento mais incisivo do caráter cósmico da vingança, ela não atende a regras comerciais, nem espera o trabalho do reconhecimento. Ela nem sequer espera trabalho algum, ela é afeita aos becos, às moitas – Heráclito, dizem, disse mais recentemente que a política se esconde em moitas de natureza. Pois é assim a agência disfarçada do inanimado: imprevista. A vingança insere no presente a ordem do mérito e do demérito: não é apenas dos acordos que fizemos que virão os dias por vir, é também dos serviços que prestei, dos estragos que ocasionei. Do mérito e do demérito. O futuro, ou o prato que resfria, é também cósmico.

Uma personagem central da trama da vingança é a presença dos outros. Ela sempre vem, em algum sentido, de fora. Das esposas. Das putas. Das bichas. Das bruxas. Das abjetas. Das escravas. De Gaia. De Cthulhu, dos pássaros de Hitchcock, dos porcos de Porcile, da microbiota contra a antibiota, dos Triebe recalcados, dos ressentimentos terceirizados, dos excluídos do pensamento e das cabeças abaixadas. E, de súbito, aparecem aqueles que agora se vingam – que retomam um tempo, que fazem alianças cósmicas, que pareciam inanimados. Este é o ato da vingança: inesperadamente aparece uma outra matriz de méritos e deméritos e é isso então que eu fiz para merecer isso. A emergência de uma vingança é a emergência de uma outra narrativa – de uma outra protagonista e de uma outra narradora e de uma outra justiça. É esta a abjeção: aquilo que era apenas barro virou matéria rebelde, o que era matéria-prima virou devoradora. O dia da caça. O merecimento pergunta por uma agência contábil: sob os olhos de quem mereço o que aconteceu? A trama da emergência de uma nova animação é a trama do que surge daquilo que foi imunizado e que agora aparece desmerecendo o que antes estava apartado do jogo cósmico das retribuições ou que simplesmente aparece fazendo a pergunta que inaugura a política: por que existe alguém e não apenas ninguém? Ou ainda: que que você fez para merecer isto?

Os Bantos tem um nome para um tipo especial de monstro – e com o nome uma lenda, um pedaço de ontologia dos afetos e um chamariz para algum sentimento. É o Quibungo. O quibungo é uma imagem do assustador, e o assustador nos põe a examinar nosso mérito e nosso demérito: que que eu fiz para merecer isto? O quibungo pertence à categoria geral dos monstros devoradores – os bichos-papões. Ou seja, ele não discrimina o que come por meio de que castigo quer exercer – ele engole tudo. A classe dos devoradores tem como matriarca – ou pelo menos como patrona – o chão, que transforma resíduos em coisas novas que terminam na boca do chão. É de onde saem os frutos, os tubérculos e dos grotões as águas. É chão o engolidor de tudo que é sublunar, é Gaia na sua forma Nanã, a mãe antiga. A lama que devora porque cobre as vísceras da Terra – o Tártaro. O quibungo pertence a classe dos que devoram indiscriminadamente, é como um chão, uma lama, uma pele movediça. Onívoro, porque come tudo. E ele pertence também à classe dos monstros de sopetão: os que aparecem a qualquer hora, inesperados. É portanto um monstro devorador e de sopetão – quem o vê de frente, não vê mais que um rosto – muro branco e buraco negro, mas antes muro negro e buraco cintilante. O quibungo é negro como tudo o que é banto. Ele se apresenta de frente como um rosto humano, como um rosto que é um outro que pode ser aniquilado mas que pede que não o aniquilem. Um rosto de olhar e de palavra. Um rosto que se apresenta, que se expõe, que se entrega. Porém na nuca, o quibungo traz suas mandíbulas devoradoras. Na nuca, que é a parte do corpo que se expõe apenas quando a cabeça abaixa, quando a agência fica soterrada.

A nuca do quibungo é a cara da vingança. A nuca: uma articulação do ânimo, da altivez, da subserviência – e uma articulação do recôndito, do sopetão. Outra vez, o sopetão, ou o acidente, carregam uma monstruosidade – fora do ordinário. A vingança é uma irrupção e sua tectônica pertence àquela das urgências. Ela instaura um outro ritmo porque instaura uma outra agenda, uma outra matriz de importâncias e um outro tempo. O quibungo aparece nos relatos coletados por Nina Rodrigues como um monstro que coleta pessoas (sobretudo crianças – uma forma de comer um prato frio) e as enfia na goela da nuca. No relato da caçada ao quibungo, o quibungo come as crias da cachorra sempre, e então ela se disfarça e esconde as novas crias. O coelho informa ao quibungo que a cachorra está disfarçada vestindo uma saia e sentada sobre um buraco onde estão seus filhotes. Segue-se uma caça onde os homens matam o quibungo e a cachorra mata o coelho. No outro relato, um homem chega com uma espingarda e mata o quibungo e recupera seus filhos de dentro da goela da nuca do monstro. O quibungo é uma marca do terror, do terrorismo. Ele escolhe suas vítimas, a vingança é uma urgência e só enquanto urgência ela se articula com a contingência. As oportunidades aparecem ao Quibungo – mas ele parece ter uma direção. Ainda que uma direção monstruosa como o cuidado de quem executa a vendetta ao esquadrinhar toda uma localidade para se certificar de que não tenha sobrado nenhum daqueles que precisam ser justiçados. A ira da vendetta é cósmica: ela não conhece limites como nenhum vulcanismo conhece fronteira.

A boca devoradora do Quibungo está na nuca. A nuca é uma espécie de fronteira. A nuca é o lugar onde a coluna se conecta ao crânio, é onde há um vão entre a parte do monstro que planeja e a parte que o mantém ereto. A nuca é onde a cabeça começa a ficar erguida e onde começa a se reclinar – é o vão onde a ação e o pensamento se desconectam. No quibungo, ele é um buraco que morde como uma boca – dentada. É o órgão da altivez, da negação e, também, é onde no quibungo irrompe a negação da negação. É na nuca que a decisão econômica acerca da servidão ou da violência, da sobrevivência ou da rebeldia tem lugar. Ela é o órgão da emancipação, e a emancipação no quibungo é dentada. Trata-se de uma nuca dentata. Uma nuca de devoração, com os dentes da vingança. Os hindus contam que o demônio Adi queria vingar seu pai e se apresentou a Shiva como se fosse Parvati, mas com sua vagina cheia de dentes pontudos. A vagina dentata também aparece nos relatos de súcubes que são seguidoras de Lilith e que seduzem os homens e devoram-lhes a genitália. A devoração da genitália, como arrancar a genitália é marca da vingança na Odisséia. Entre os intrumentos anti-estupro, aliás, há aqueles que procedem pela vingança dentata como o rape-axe de Sonnet Elhers que é uma camisinha feminina dentada. A vingança é uma mordida. A mordida que é a marca de uma animação recôndita, de uma animação desconsiderada. A vagina não é só território a ser ocupado – ela tem o protagonismo do que mostra os dentes. Assim também o quibungo, que mostra os dentes através do órgão da servidão (e da rebeldia). O protagonismo do pescoço negro aparece também na forma da nuca dentada. Da servidão que se vinga devorando.

A cabeça que abaixa e levanta, pela nuca, guarda uma tensão mandibular: no quibungo ela se abre como uma boca – dentes que devoram. O quibungo tem uma segunda boca, uma boca recôndita, subjacente: a boca que se cala ou que engole. Quando a cabeça se ergue, a boca fica fechada. Quando ela se abaixa, ficam seus dentes abertos, a boca da nuca escancarada e, de acordo com o tamanho da força que abaixa a cabeça, por ali pode ser engolida qualquer coisa. Na nuca o quibungo tem a boca dos seus ossos, de sua medula. E a boca está na nuca porque por ali passa a escolha pela sobrevivência. E é pela nuca que se cortam cabeças; através dela se enforca, se guilhotina. Por ela se decepa, se decapita – é na nuca que o corpo se torna acéfalo. A cabeça cortada, por sua vez, pode adquirir uma animação sem nuca, uma animação sem movimento – e o corpo acéfalo sem orientação. O pescoço marca uma vulnerabilidade. Vulnerabilidade, porque carrega. Saint Denis é este bispo que carrega a própria cabeça, fazendo com as mãos a tarefa da nuca. A nuca apenas segura a cabeça – mas é justamente disso que se trata, orientar o corpo. Conectando a coluna vertebral ao cérebro, a nuca é onde está o atlas, que carrega nas costas o globo.

O atlas é a primeira vértebra cervical e também a primeira vértebra da coluna. Está conectado com o processo odontóide – ou seja, o atlas é o reverso da boca, é as costas da mandíbula. A nuca é assim como um prolongamento da boca, como aquilo que se come e se dejeta fosse prolongado naquilo que ergue e que rebaixa. O eixo da boca à nuca é um eixo de vulnerabilidades. Em ambos os lados, um vão que permite movimentos de enorme força – a força da devoração, a força da humilhação. São os músculos potentes que executam as tarefas da sustentação. O atlas é aquilo que deixa a cabeça cair, o a mantêm, e para isso precisa da flexibilidade de uma boca que abre e fecha, de uma dupla articulação que sedimenta e desaba, que acumula e solapa. O vão do reverso da boca no atlas do quibungo é dentado. É a boca da surpresa e a boca da vingança: ela devora para se vingar. A boca das costas é o reverso da boca da frente porque ela devora – e destrói o que está do lado de fora – não para produzir o que está dentro, mas antes destrói o que está fora – e para isso coloca coisas para dentro. No Congo e em Angola, o quibungo é simplesmente um lobo. E ele é da classe dos lobos – e dos lobisomens, das cucas. Mas na Bahia, o quibungo virou antropófago. Ele se tornou um bicho-papão negro que engole para se vingar.



Desta antropofagia se aproxima Marcelo D'Salete na sua novela gráfica Cumbe. O quibungo habita a fazenda, perto dos mocambos onde ficam os escravos – é por ali que circula o quibungo, sua monstruosidade não é povoamento das matas, é artifício da escravidão, da desanimação. O quibungo aparece nos desenhos de D'Salete como parte de um vulcanismo negro, e um vulcanismo antropófago que está pronto para se contrapor às práticas colonizadoras nos becos, nas quebradas, nos breus. Ao mesmo tempo, o quibungo é antopofágico porque se posta como monstro negro pós-colonial, como resíduo de devoração de uma boca que contra-diz o que lhe disseram quando fizeram o lobo virar um ente inanimado. Esta boca reversa poderia dizer alguma coisa assim, com Oswald de Andrade: Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago: o Visconde de Cairu: é verdade muitas vezes repetida. Mas não foram os cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo porque somos fortes e vingativos como o jabuti.

O quibungo é um monstro pós-colonial e antropófago. Ele tem a cara da vingança – da vingança do que foi feito pó. Daquilo que foi engolido e que, sim, tem uma boca subjacente, uma boca na retaguarda. Pensar o quibungo é pensar que há sujeito no abjeto e que há muito mais matrizes de mérito e demérito do que congregam os sistemas de justiça. O quibungo é uma intrusão – como a de Gaia, como a do suposto inanimado, como a do pó – é uma intrusão do inesperado. Neste sentido, ele é um vingador para a pós-colonialidade, com sua antropofagia e com seu vulcanismo negro. Ele é monstruoso, mas esperar calorosamente por ele é esperar pela deglutição que vem.


domenica 2 agosto 2015

Confissão sem lugar

Eu, eu mesmo, aquele que nasceu comigo,
não encontra um lugar de repouso entre as pessoas.
É redemoinho, nadando com esforço de sobrevivência
de um recife para outro, de uma beirada para outra,
onde está a chaminé, a varanda na soleira?
Sempre gostei dos estrangeiros,
que me ensinavam que eu não era de onde eu era,
que nem eu vinha de onde eu vinha.
Ali de onde o desalojado vem, não vem ninguém.
Sempre gostei dos desabrigados,
os que sentem a nostalgia de um abrigo,
de um país, de um lugar.
Gostava daquela nostalgia porque as coisas
na nostalgia ficam próximas
mas não podemos tocar.
Os países distantes são os que moro
porque são distantes - e eu não encontro.
Corro de um braço a outro,
de uma voz a outra,
e todas as vozes me expulsam
e todos os braços me exiliam.
Não paro de ir sem descanso de uma margem à outra -
não acho a margem.

martedì 28 luglio 2015

Being Up For Grabs: an anarcheology

Being Up For Grabs é meu livro que sai em breve. Para celebrar, copio aqui uma das três anarqueologias nele presente.


Apocrypha from the Sahagún Colloquia and the bringers of movement (3)

In 1524, twelve Franciscan friars arrived in Mexico to make sure the conversion of the pagans was going in a suitable direction after Cortez’s Conquista. Some years later, they convened in Tepeculco under Bernardino de Sahagún with twelve tlamatinime, priests and wise men of the place, to discuss, in Nahuatl, matters of how things are. The manuscript made by Sahagún and his indigenous collaborators transcribing the colloquia came to light years later, but always in an incomplete format. The material that circulated featured subservient and easily convinced natives. But, out of Sahagún’s material – composed of two books (one of thirty and the other of twenty-one chapters) – only the first fourteen chapters were available. The missing chapters included parts where the natives described their creed more thoroughly. Sahagún, himself a historian of the so-called New Spain1 and considered one of the first anthropologists2, has changed the structure of his book of colloquia quite dramatically throughout the years.3 It is unclear what precise effect he hoped his transcriptions would have, but the manuscript that ended up circulating (and was later published4) does little more than portray the tlamatinime as ready to convert to Christianity.

There is a considerable amount of controversy about the historical accuracy of the document. Some say that it is no more than a piece of literature, ultimately having evangelical purposes, while an increasing number of scholars grant it historical veracity. The issue, however, has become more complicated in the last few years, as two supposed fragments of the transcriptions of the colloquia have emerged. They were found in a monastery in Popocatépetl, Veracruz, in relatively good condition. They display the Spanish version and parts of the Nahuatl version of the two fragments. They have supposedly been copied by hand from the original transcriptions and preserved for centuries, hidden in the obscurity of the monastery library. The authenticity of the fragments is under all sorts of religious, historical, ethnographical and anarcheological scrutiny. A factor in favor of their legitimacy is that they both express mostly the views of the tlamatinime, with almost no substantial counter from the twelve friars. This, however, is not decisive. The monks could have kept the manuscripts for several reasons unrelated to it being historically factual.

In any case, the first fragment includes two lines present in the published version in chapter 7 of the first book – lines 1017 and 1018. It seems to fit well in chapter 7, specifically between lines 1016 and 1017, and could have been removed for censorship... The lines of the fragment are therefore referred to as VII-1016-2, VII-1016-3 and so forth, VII-1016-1 being the line published as 1016. The second fragment seems to fit somewhere in the lost chapter 16, also of the first book. As the chapter is otherwise entirely lost, the lines are referred here as XVI-?-1, XVI-?-2, etc. What appears here has been translated from the Spanish version.

VII-1016-2 because every sun rises and sets,
the sun that creates a day
as much as its absence that creates a night
the sun that creates years, generations, eras.
VII-1016-6 One sun after the other.
It was in Teotihuacan
that our present horizon emerged.
This is the fifth sun,
a sun that doesn’t rule by water, air, earth or fire
VII-1016-11 like the previous ones, but by movement.
Its navel nothing but the friction
of one ruler against another
and its Chicoóztoc5 is not one but many.
The sacred place shines in different mountains
VII-1016-16 and in valleys, lakes, cities and holes.
The gods of the fifth sun
are moving forces, they don’t have addresses,
they have roads.
They erode.
VII-1016-21 They digest. They burn. They flood.
It was the Fifth Sun that burned away the previous four;
it is not a static sun
but one that has a different light each day.
As those who destroyed all the other stabilities,
VII-1016-26 they liberators.
We suspect that this is why some macehuals,
common people, welcomed you in their spasms;
because you were also dissolvers,
destroyers of a rule,
VII-1016-31 you brought changes, shifts, alterations, new starts.
Little some of us knew
That you were bringing
a celebration of the un-moved.

The spirit of the huehuehlahtolli6
VII-1016-36 is that a god frees us from an order,
from another need.
A god is what shakes the perennial.
None of them can rule all because
since Nanahuatzin7 went to fire in Teotihuacan,
VII-1016-41 other gods have bumped into their realms.
gods of the ancient customs
were not those that command,
but those that disrupt.
We need them to displace the commanders.
VII-1016-46 We invoke them to shake what is about,
to bring up the riot and to go away.
We invoke them because without disruption,
we wouldn’t have been born,
we wouldn’t have grown.
VII-1016-51 They make us move.

The tzitzimine, by contrast, are the keepers.
Those who preserve.
The gods come and exorcise
the devils of fixity
VII-1016-56 because they come unnoticed.
This is why gods are several –
the world is full of chains,
VII-1016-59 full of traps.
VII-1017 That’s why gods are invoked,
VII-1018 that’s why we pray for them.

So you see that your gods didn’t protect you
from the holy hands of the Conquerors.
They couldn’t because they are not out there
and if they were, they would have recognized
XVI-?-5 the presence of a greater Force
and perhaps they would be first to bow their heads.

And then some priests have contested:
Much as there are turmoil and havoc
amid our peoples since you have arrived,
XVI-?-10 we should see your arrival as an event
of the Fifth Sun.
We are in the horizon of disruption
and our gods are revered
because they are those who unsettle the affairs.
XVI-?-15 They are those who undo the chains
and leave things unheld
and, as such, open to new rulers;
for no God can both free us and protect us.
To unchain is to erode a determination.
XVI-?-20 To protect is to cherish it.
Whatever we worship in the Fifth Sun
is to be worshiped not as shelter but as roads.
Our gods are here to free us,
and those who advertise their protection
XVI-?-25 are in deviant ways –
even though we are entitled to wish protection
when our land is invaded by murders like you.

Many tsitsimine have come to us recently.
They advertise security
XVI-?-30 or redemption, or a superior order.
They cannot resist the heat of the Fifth Sun.
Yet they make their bites,
like you do with all this small tsitsimine
that you brought to infect us
XVI-?-35 and kill us and make us feel unprotected.

The huehuehlahtolli is all for what unchains,
for holier is what makes us escape,
and sacred is forgiving.
Our gods are those who forgive,
XVI-?-40 forgo and forget.
Like in your Bible the debt is cancelled
after a number of years
and promises are forgotten.
Such are the acts of our gods in the Fifth Sun.
XVI-?-45 They are forgivers.
They are many, they are everywhere
because they don’t dwell in small numbers,
and because this sun brings dispute,
our ancient tlamatinime
XVI-?-50 had different liturgies
and they spot movement
in different places
and fixity in different places
depending on taste, season, transport.
XVI-?-55 For movement itself cannot be caught,
except in movement.

This is why, as you have noticed,
hesitation, deception,
lack of decision and of certainty
XVI-?-60 are appreciated by some of us, priests.
Under the Fifth Sun, they are virtues,
because they manifest movement.
Even though they are painful
they bring about what redeems us
XVI-?-65 and show us the road out.
So I advise you: beware.
We live in the horizon of uncertainty,
and no Conquest will dispel it.
As for us, we seek and treasure
XVI-?-70 what we don’t know.
It is less heavy on us.
We distrust what seems to merely repeat,
for the Fifth Sun is the sun
of what is loose.